Nelio Naja se olha no espelho do acanhado casebre onde vive: "Deixei uma ponte queimada. Há um cânion entre o muay thai e eu."| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Às vésperas do UFC 198, neste sábado (14), às 19h45, na Arena da Baixada, o grande responsável por transformar Curitiba em ‘solo sagrado das artes marciais’ passará bem longe do maior evento brasileiro de MMA da história – o terceiro maior da história do campeonato.

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Todos os dias, o carioca Nelio Borges de Souza vê seu rosto refletido em um pequeno espelho pendurado na improvisada porta de casa. O acanhado lar, que na verdade é um amontoado de tijolos localizado em um barranco logo abaixo de uma linha férrea em Almirante Tamandaré, na região metropolitana de Curitiba, não tem água encanada nem luz elétrica. O único cômodo coberto agrupa quarto e cozinha em um espaço que dificilmente passa de dois metros quadrados.

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Aos 63 anos, esta é a realidade de Nelio Naja, homem responsável por plantar a semente que transformou Anderson Silva em uma lenda das artes marciais mistas (MMA). Introdutor do muay thai no Brasil, no fim da década de 1970, o Grão Mestre deu as costas para o esporte que consagrou toda uma geração de lutadores paranaenses. Hoje, com bom humor, é ele quem luta diariamente.

‘Naja não sabe do próprio valor para o esporte’

“A importância do Nelio Borges de Souza para a arte marcial é tão grande que talvez nem ele saiba, não tenha a dimensão”.

A frase de Rudimar Fedrigo, criador da academia Chute Boxe e discípulo direto de Nelio Naja, é consenso entre os praticantes de muay thai. A técnica implantada pelo carioca na década de 1970 transformou Curitiba em celeiro do esporte e fixou as bases para a capital paranaense se tornar referência também no MMA.

“Todos os brasileiros que estão lutando no UFC tem um pouco dele. Ele plantou a semente. Não fosse ele, tudo seria diferente, não sei até que ponto, mas seria”, acredita Fábio Noguchi, também aluno de Naja, que hoje vive em situação precária em Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba.

Tanto Fedrigo quanto Noguchi afirmam que há alguns anos tentaram ajudar o mestre organizando uma turnê de seminários que teria toda a renda revertida para ele. Porém, Naja recusou a ajuda porque queria cortar sua relação com o muay thai.

Ao tomarem conhecimento da situação atual de Nelio, seus discípulos estão preparando um jantar para arrecadar dinheiro para ajuda imediata. No entanto, a intenção é encontrar uma moradia decente para veterano do boxe tailandês.

“O mestre Naja significa muito para os lutadores. Estamos organizando um jantar para o dia 7 de fevereiro. Queremos criar também a Copa Nelio Naja de muay thai e destinar o dinheiro a ele”, fala Rafael Pereira, da academia Thai Naja.(FR)

Nelio se define como um ermitão. Optou pelo isolamento e transformou seu paradeiro em quase segredo de estado. Tem pouco contato com os vizinhos – diz preferir o abraço de uma árvore para matar a solidão – e sempre anda vestido com roupas militares, presente de uma loja. "Dizem que é o padrão mais econômico", brinca.

Carrega consigo um bastão de bambu, apetrecho que virou seu apelido nas ruas de terra batida de Tamandaré. Sua única fonte de renda vem de uma pensão que, nas próprias palavras, está "muito defasada".

Falar de muay thai com ele é como falar de um amor superado. "Minha relação é só saudosa. Não tenho vínculo nenhum", diz, transparecendo o sotaque e a voz calma. "Deixei uma ponte queimada. Há um cânion entre o muay thai e eu", completa filosófico o Grão Mestre, que literalmente transformou seu certificado em cinzas.

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Seu legado no esporte segue inabalado. Nascido no Rio em 29 de novembro de 1952, Nelio conheceu a luta enquanto servia a Aeronáutica, onde foi paraquedista e se formou um dos primeiros faixas-preta de tae kwon do no país.

Em 1976, Naja mudou-se para Curitiba e adaptou técnicas orientais para criar o muay thai brasileiro. "Dizem que quem gosta, procura. Eu fui atrás [do conhecimento]", conta. Ele garante ter passado um período na Tailândia, mas não dá detalhes da experiência. O boxe tailandês curitibano, portanto, ganhou toques da primeira arte marcial do criador. A nomenclatura dos golpes, ao invés de ser falada na língua original, passou a ser ensinada em coreano.

A vestimenta também foi repaginada. "Botamos o quimono por causa do frio. Ninguém ia ficar só de calção no inverno de Curitiba, né?", relembra.

Seus discípulos continuaram a evolução. Rudimar Fedrigo criou a academia Chute Boxe, referência mundial no vale-tudo a partir dos anos 90. Fábio Noguchi passou os ensinamentos ao Spider, maior campeão da história do UFC.

Apesar de aprovar o MMA como esporte, Nelio Naja raramente assiste à aplicação bem-sucedida de sua técnica. Hoje, seu sonho é conseguir discípulos para ministrar aulas de defesa tática pessoal, além de conseguir um pouco mais de conforto para viver.

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Há alguns anos, ele chegou a morar dentro um ônibus que serve como obstáculo de uma escola de treinamento tático para policiais e militares. "Ali foi a parte boa. Cheguei a dormir ao ar livre", admite Nelio, que perdeu contato com a esposa e os três filhos.

Certa vez, largou tudo para procurar pedras preciosas no Serrado. "Caí em um golpe", lamenta.

Mesmo vivendo em condição precária, a personificação do muay thai nacional evita pedir ajuda aos amigos. Também não recusa nenhuma doação. Sereno, não acredita que mereça mais do que tem por causa de sua trajetória.

"Sou feliz diante das adversidades, isso me torna melhor", diz, com postura altruísta quanto a seu papel na história do esporte. "Se não fosse eu, outro qualquer ocuparia esse espaço", aponta.

Colaborou: Rafael Pereira.

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