Quebrar voluntariamente um dedo do pé, lesionar membros insensíveis para estimular a pressão sanguínea: a autoflagelação, ou boosting (’impulsionar’) é uma forma de doping específica dos deficientes que causa arrepios e será especialmente vigiada nos Jogos Paralímpicos do Rio.
O boosting é praticado por atletas com lesões na coluna. Além da paralisia e da perda dos sentidos nos membros inferiores, estas pessoas sofrem também com problemas de pressão arterial e de arritmia cardíaca.
Como consequência, durante um esforço violento, os cadeirantes não têm aumentada sua frequência cardíaca, uma necessidade do corpo em plena atividade física, o que diminui o rendimento e aumenta o cansaço, assim como a capacidade de realizar esforço por período prolongado.
Por isso, alguns desses atletas tentam compensar essas desvantagens autoflagelando os membros insensíveis, nos quais não sentem qualquer tipo de dor, para aumentar a pressão sanguínea, melhorar o aporte de sangue aos músculos e, por consequência, obter melhor rendimento esportivo.
Choques elétricos, feridas sangrentas, bloqueio da sonda urinária para relaxar a bexiga, botas muito apertadas nos membros inferiores, torção dos testículos, fratura do dedão do pé... Com o “boosting”, o catálogo de horrores parece não ter fim.
Métodos
Existem algumas formas comuns de praticar o boosting.
Uma delas é sentar em uma tachinha. Outra é apertar as pernas com uma correia ou cinto.
Alguns paratletas até relataram o uso de choques nas pernas ou nos dedos dos pés. Ainda nos pés, há outros que acertam golpes ou quebram um dos dedos.
Também há a alternativa de trincar ou quebrar um osso.
Em alguns casos o paratleta dobra ou senta-se em cima do saco escrotal, para estrangular os testículos.
Outros ainda enchem a bexiga com a ajuda de um cateter.
A Agência Mundial Antidoping (Wada) e o Comitê Paralímpico Internacional (CPI) realizaram uma investigação que concluiu, com dados de 2008 e 2009, que “apesar de terem consciência dos riscos à saúde, 16,7% dos participantes no estudo admitiram ter recorrido ao boosting para melhorar seu rendimento durante um treino ou uma competição”.
- Risco à saúde -
O problema é que o boosting não é só uma ‘trapaça esportiva’, mas pode também desencadear um problema de saúde grave, já que os atletas que recorrem a essa prática podem sofrer de disreflexia autonômica, um problema médico bem conhecido entre deficientes e que pode afetar a vida cotidiana após uma simples lesão, ferida ou inflamação.
Esta condição provoca um brusco aumento da pressão arterial que pode desencadear, em casos mais graves, derrame ou parada cardíaca.
“Este método é excessivamente perigoso, visto que não é controlável”, explica o doutor Jean-Claude Druvert, chefe-médico da delegação francesa no Rio.
A prática é proibida pelo CPI desde 2004. “Competir em estado de disreflexia autonômica, seja intencional ou não, põe em risco a saúde dos atletas. É também uma maneira de melhorar o rendimento”, lembra Peter van de Vliet, diretor do serviço médico e científico do CPI.
Para detectar um estado de disreflexia autonômica, o CPI decidiu controlar os atletas antes da competição, medindo a pressão. Em Pequim-2008 foram realizado 37 exames e em Londres-2012 outros 41, mas nenhum caso foi registrado.
Para os Jogos Rio-2016, após análise aprofundada de dados de 160 atletas nos últimos anos, o CPI decidiu aumentar o número de controles em abril e, desde então, é negada a participação em competição de qualquer atleta com pressão superior a 160 mmHg (pressão arterial sistólica). Anteriormente a pressão não poderia superar os 180 mmHg.
A medicina considera que um paciente apresenta quadro de hipertensão arterial quando a pressão se encontra acima de 140 mmHg (também há de se levar em conta a pressão arterial diastólica).
“É dever do CPI velar pela saúde dos atletas, pela integridade do esporte e pela proteção dos atletas limpos”, alertou Van de Vliet.
- Exagerar a deficiência -
O boosting não será, contudo, o único problema enfrentado pelos Jogos Paralímpicos. As estatísticas também revelam um número de atletas que exageram suas deficiências, algo sempre difícil de monitorar.
O jornal britânico Sunday Times informou na semana passada a desistência de competir no Rio de Bethany Wood, multimedalhista no atletismo e que sofre de paralisia cerebral, por considerar que atletas em menor desvantagem física foram autorizados a participar na sua categoria. É o que se conhece como ‘Intentional Misrepresentation’ (deturpação intencional).
A natação é um dos esporte na mira do CPI, já que alguns participantes nadam deliberadamente de maneira mais lenta do que são capazes durante as seletivas, nas quais é avaliada a deficiência do atleta, tanto dentro como fora d’água, e só dão tudo de si durante a competição.
O caso que mais chamou a atenção aconteceu em Sidney-2000, quando a equipe espanhola de basquete precisou devolver as medalhas de ouro conquistadas após descobrir-se que 10 dos 12 integrantes haviam aumentado sua deficiência mental a pedido das autoridades federativas. O caso surgiu após um dos membros da equipe, Carlos Ribagorda, revelar a trapaça.
“Existe uma preocupação importante em relação às tentativas dos atletas de burlar o sistema (de controles), mas a linha para provar-se as trapaças além da dúvida é muito tênue”, admitiu Van de Vliet, explicando a dificuldade que é ‘classificar’ os atletas de acordo com seu nível de deficiência.
Isto tudo parece absurdo, mas alguns dos cientistas que controlarão os paratletas nos Jogos Paralímpicos afirmam que um terço dos competidores com lesões na medula podem chegar a se machucar para melhorar o desempenho.