A história da judoca Rafaela Silva foi cindida em duas partes em agosto deste ano. Nascida na comunidade da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, Rafaela trouxe para o Brasil o primeiro ouro olímpico nos Jogos Rio-2016, ao derrotar a mongol Sumiya Dorjsuren, na final da categoria leve (até 57 kg).
A alquimia da medalha dourada gerou uma metamorfose radical na vida da atleta de 24 anos: de vítima de preconceitos, virou símbolo de respeito e esperança para crianças país afora. Comprou casa própria, carro e reformou a casa dos pais. Mesmo assim, ela demonstra ceticismo quanto ao futuro do judô no país.
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Mudou bastante. Antes, eu brincava na rua com amigos, andando de bermuda e chinelo, e a gente via o pessoal passando de carro e fechando as janelas, com desconfiança. Agora, as pessoas param o carro para pedir uma foto, querem um abraço, elogiam minha história. Dizem que inspirei os filhos deles a seguir o caminho do esporte.
Os jovens, não só de comunidades, mas de projetos sociais, viram que com força de vontade e trabalho dá pra conseguir a medalha. Independentemente de onde você mora. Quando voltei à Cidade de Deus, passei motivação para as crianças, que só veem o pessoal correndo com armas. Se eu saí de lá, eles também podem mudar de vida.
As oportunidades existem. Mas nem todo mundo quer aproveitar. É difícil dizer que temos muitos talentos, mas sem oportunidades. Porque elas existem. Do pessoal que começou a treinar comigo, nem todos seguiram carreira. Meninos que sumiam dos treinos porque tinham sido presos. Meninas da minha idade com dois filhos sem conseguir sustentar nem um. Levei 14 anos para conquistar o ouro. Não pode ter pressa.
A crise apareceu, mas nossas contas continuam chegando em casa. Logo após a Olimpíada, comecei a renovação de contrato com a Embratel, meu único patrocínio pessoal. Mas de novo não surgiu nada. Não mudou muito. A crise preocupa todo mundo, mas a gente espera que melhore, porque a nossa vida, nossa carreira, não acabam após os Jogos. Todas essas dificuldades vão prejudicar a melhoria do nosso esporte.
Antes eu não queria nem entrar nas redes sociais. As pessoas só queriam me agredir, falavam da minha família. Chegaram a falar que eu nunca seria melhor do que ninguém porque eu sou negra. Agora, se coloco um ‘bom dia’, tenho 500 curtidas. As pessoas pedem pelo amor de Deus para eu respondê-las. É muito bacana poder trocar esse carinho com elas.
Quando as pessoas veem um ídolo assumindo algo assim, dois ou três falam mal, mas o restante vai aceitar. Se eu fosse uma pessoa comum, ou antes da medalha, não sei se teria todo esse carinho. Nunca tinha colocado isso em público porque sei da violência que vem acontecendo.
Vou começar a competir em fevereiro, no Grand Slam de Paris. A próxima Olimpíada será em Tóquio, então a gente não tem vaga garantida. Tem de conquistar. Por enquanto sou a segunda do ranking mundial, mas tudo pode mudar rapidamente. Vai ser bem concorrido. Mas vou batalhar até o fim para garantir mais uma medalha para o Brasil em 2020.
Estou fora dessas coisas aí (risos).
* O jornalista viajou a convite do Enecob.
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