O que determina que uma mulher é, de fato, uma mulher? A discussão rende entre antropólogos, sociólogos, sexólogos e se estende ao campo esportivo. A curitibana Isabelle Neris acaba de adicionar um novo capítulo a esse debate. A cabeleireira de 25 anos tornou-se a primeira transexual do Brasil autorizada a disputar competições de voleibol feminino oficiais.
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O caso agitou os bastidores do vôlei nacional: a partir dos estudos para autorizar a inserção dela em jogos femininos, a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) decidiu rever seus critérios e, conforme apurado pela reportagem, deve publicar uma nota oficial em que adota os mesmos critérios do Comitê Olímpico Internacional (COI) para a atuação de atletas transexuais: provar baixo nível de testosterona no último ano, independentemente da cirurgia para mudar de sexo.
O processo de aceitação da central em jogos da federação estadual seguiu outros critérios, aceitos até aqui pela CBV. Isabelle teve o reconhecimento oficial da Justiça para ser identificada como mulher, com alteração do nome e gênero em certidão de nascimento e RG no ano passado e, deste então, o clube Voleiras solicitava à Federação Paranaense de Voleibol (FPV) a inclusão dela em campeonatos oficiais.
“Eu estava com muito medo de ser excomungada do vôlei”
A resposta veio na semana passada, com o “sim” do presidente da federação, Neuri Barbieri (também vice-presidente da CBV) e do superintendente da federação, Jandrey Vincentin, para disputar a Taça Curitiba, de 20 a 24 de março.
“Eu estava com muito medo da resposta, de ser excomungada do vôlei. É um caso novo [no Brasil]. No começo, achei que nunca ia poder jogar, então, só treinava. Não queria trazer problemas ao time e enfrentar muito preconceito. Mas minhas companheiras foram atrás de informação e conseguimos”, conta Isabelle, que começou a tomar hormônios femininos e fazer as cirurgias de mudança de sexo aos 17 anos.
Com 1,75 m, a altura dela é menor em relação à média das jogadoras profissionais (a levantadora da seleção, Dani Lins, tem 1,81m, por exemplo); e Isabelle reconhece que não tem o braço pesado de outras jogadoras. A força física ser maior em corpos masculinos é um dos principais argumentos de quem considera inviável uma transexual jogar com mulheres.
A “solução” para manter o equilíbrio seria a adoção de um limite máximo aceitável de testosterona no sangue das atletas. Por causa do tratamento, o nível de testosterona de Isabelle, medido em um exame laboratorial, é menor de que a média nas mulheres.
Para efeitos de inscrição, até agora a CBV só exigia documentos de identificação em que constasse “feminino” como identificação de sexo. Esse critério, somado ao fato de Isabelle nunca ter disputado uma partida oficial por equipes masculinas, é o que determinou a autorização da FPV para que ela jogue a Taça Curitiba e outras promovidas pela federação.
“Já tinha ouvido ofensas dentro da quadra e das arquibancadas em competições mistas. Foi muito constrangedor”
Mas não foi o ponto final da questão. Ao contrário: as pesquisas e consultas feitas pelo superintendente da federação para a decisão estimularam a CBV a rever seu posicionamento. Sua nota oficial deve seguir o que determina o COI desde fevereiro de 2016: atletas transexuais têm de comprovar baixos níveis de testosterona no último ano. A FPV, por sua vez, destaca que, enquanto não houver estudos que comprovem vantagem para as equipes com atletas transexuais, manterá a determinação de liberar a participação delas nas competições.
À parte ao debate, Isabelle aproveita o momento. No último final de semana, disputou a Copa do Dia Internacional da Mulher, promovido pelo time de São José dos Pinhais, Galatasaray. As Voleiras ficaram em 4º lugar. Mais importante que o lugar no pódio, porém, foi a movimentação das equipes para apoiá-la contra o preconceito de gênero.
“Queria muito jogar, até por causa do tema da competição. Fizeram um uniforme para as jogadoras com a inscrição ‘#SomosTodosIsabelle’. Foi minha estreia em torneios só femininos e sabia de onde viriam os olhares de reprovação. Já tinha ouvido ofensas dentro da quadra e das arquibancadas em competições mistas, foi muito constrangedor”, diz a jogadora que teve os primeiros contatos com a modalidade aos 8 anos, quando ainda se assumia como menino, nas equipes de base do extinto Rexona, projeto mantido pelo ex-técnico da seleção brasileira Bernardinho.