O desabafo de Itamar Bernardes há oito dias surpreendeu pela honestidade. Ao invés do discurso comum de exaltação ao desempenho de seu time, a Adap Galo, no empate com o Atlético por 1 a 1 na Arena, o técnico preferiu tocar num tema delicado: a discriminação velada que acompanha os treinadores negros no Brasil.
Bernardes, de 46 anos, diz acreditar que só não recebeu nenhum convite para dirigir um dos três grandes times de Curitiba por causa da cor de sua pele. Assim, ele vê o mercado de trabalho se restringir ao interior do Paraná, onde conquistou os principais feitos de sua carreira: o vice-campeonato estadual pelo Paranavaí em 2003 e o título da Série Prata comandando o Nacional de Rolândia no mesmo ano.
Situação semelhante acontece no restante do futebol brasileiro. Das vinte equipes que compõem a Série A do Nacional, nenhuma é treinada por um negro. O mesmo ocorre na Série B. O fenômeno, porém, não é algo restrito. Nem mesmo países africanos costumam utilizar técnicos de pele escura para dirigir suas seleções. O holandês Frank Rijkaard, bicampeão espanhol e campeão da Copa dos Campeões pelo Barcelona, parece ser a exceção à triste regra.
"Não dá para esconder: o preconceito existe no Brasil, sim. Nós, negros, não temos espaço. Nunca somos avaliados pela nossa capacidade. E com isso, ficamos presos aos clubes do interior. Não dá para ascender profissionalmente", diz o técnico.
Acostumado a desviar dos olhares desconfiados de quem vê um afrodescendente chegar a um restaurante em um carro da moda, Itamar conta que em campo nunca viveu preconceito semelhante. "Em todos os times que passei não tive nenhum problema. Mas eu procuro andar sempre bem arrumado para não dar margem às discriminações", afirma.
Itamar recorda a curta passagem de Lula Pereira pelo Flamengo para sustentar sua teoria "conspiratória". Lula não chegou a completar quatro meses na Gávea. A versão oficial para demissão: resultados inexpressivos. "Será que foi só isso mesmo? A verdade é que a cor atrapalha. Somos todos seres humanos, mas dependendo da cor da pele, seu trabalho é avaliado de forma diferente", protesta.
A reportagem tentou por dois dias, sem sucesso, localizar o técnico Lula Pereira para dar sua versão sobre o racismo camuflado existente no futebol pentacampeão. Após fracassar na missão de levar o Bahia de volta à Segunda Divisão no ano passado, o treinador foi contratado para dirigir o Al-Hazan, da Arábia Saudita, time dos brasileiros Iranildo (ex-Flamengo e Brasiliense) e Geílson (ex-Santos).
Em junho do ano passado, contudo, o treinador deu uma entrevista ao site do Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) em que revela a mesma mágoa de Itamar Bernardes. "A sociedade brasileira é muito preconceituosa quanto à cor da pele. Não acredito que o grande número de jogadores negros que temos não possuam capacidade de se tornar treinadores", diz ele. "Os negros são mais cobrados do que os outros. Eu quero aproveitar essa entrevista para incentivar os jogadores negros a não desistir. Apesar do pouco espaço, temos o mesmo potencial de qualquer outro", reforça.
Recém-chegado à classe dos técnicos, o colombiano Freddy Rincón afirma não ter sido vítima de preconceito explícito depois que trocou a bola pela prancheta e o boné. Antes, porém... "Na final do Paulista de 99, entre Palmeiras e Corinthians, o Paulo Nunes (atacante do Palmeiras) usou todos os xingamentos racistas para me ofender", relembra ele, ex-volante campeão mundial pelo Timão.
Apesar do pouco tempo à beira dos gramados, Rincón também está inserido no grupo de Itamar Bernardes e Lula Pereira. Em dois anos, ele só conseguiu comandar o Iraty, em parte do Paranaense de 2006, e o São Bento, de Sorocaba, atualmente. "Isso (negros não terem espaço em equipes grandes) não tem sentido", rechaça.
Autor do livro A busca de um caminho para o Brasil A trilha de um círculo vicioso (que trata da inclusão do negro na sociedade), o professor universitário e Mestre em finanças e Doutor em administração pela USP, Hélio Santos, estranha a escassez de técnicos negros. "Onde estão antigos craques como Jairzinho, Zé Maria e Luiz Pereira? Foram todos craques de bola que não viraram técnicos ou comentaristas. Lêonidas da Silva, Coutinho, Didi são todos exceções", afirma. "É preconceito, puro racismo. Mas não é só no futebol. O negro é discriminado em todos os segmentos da vida", complementa o professor.
José Carlos de Miranda, presidente do Paraná, confirma que há um "olhar meio de lado" para os treinadores negros em boa parte do Brasil. "Da minha parte não existe preconceito. Sou a favor da igualdade racial. Um cara de esquerda não pode ter algum tipo de discriminação. Mas na prática existe, é só ver que quase 50% dos jogadores são negros, já os técnicos...", comenta. "No Paraná não tem esse problema. Já chegamos a procurar o Lula Pereira, mas não houve acordo financeiro. Nós também já tivemos um negro como técnico, que foi o Sérgio Ramirez", defendeu-se.