Aos 44 anos, o carioca Francisco Sarno já era um técnico experiente quando comandou o Coritiba contra o Santos em 22 de outubro de 1969, no antigo Estádio Belfort Duarte – atual Couto Pereira –, pela 14ª rodada do Torneio Roberto Gomes Pedrosa.
A tradicional preleção, no entanto, não poderia ser mais transparente. O adversário do Coxa não era qualquer um. Era o Santos de Pelé.
“O Sarno chegou no vestiário, reuniu todo mundo para a preleção, que normalmente levava 40, 45 minutos. Ele cumprimentou a todos e falou: Olha, gente, hoje vai ser diferente. Hoje eu não vou falar nada. Entrem em campo e seja o que Deus quiser”, recorda o goleiro Joel Mendes, titular alviverde à época.
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"Hoje eu não vou falar nada. Entrem em campo e seja o que Deus quiser"
Até que demorou. Foram necessários 35 minutos após o primeiro apito do árbitro Arnaldo César Coelho para que Edson Arantes do Nascimento abrisse o placar. O ídolo coxa-branca Krüger chegou a empatar no fim do primeiro tempo, mas Pelé fez mais um na etapa final. Depois, Edu decretou o 3 a 1.
Neste 23 de outubro de 2020, quando o mineiro de Três Corações completa 80 anos de idade, fica mais fácil compreender o ataque de sinceridade de Sarno. Naquele jogo, Pelé marcou seus gols de número 994 e 995. Dali a um mês, o Rei anotaria o milésimo, no Maracanã.
“Não tinha como segurar o Santos. Perdemos com dois de Pelé, mas o Coritiba fez uma boa apresentação”, conforta-se Mendes, que acabou indicado ao Santos pelo próprio Rei do futebol.
Nos gramados do Paraná, Pelé desfilou sua majestade
Pelé ainda era um adolescente quando balançou a rede pela primeira vez em jogos disputados no estado do Paraná. Em 19 de maio de 1957, aos 16 anos, saiu do banco de reservas para marcar duas vezes na goleada santista sobre o Londrina, por 7 a 1, no Estádio Vitorino Gonçalves Dias.
No ano seguinte, já coroado campeão mundial na Suécia, enfrentou o Coritiba quatro dias antes do Natal. E, de cabeça, deixou um presente para o goleiro Waldomiro no empate por 1 a 1.
“Dono de um “rush” tremendo, rapidíssimo, ‘dibla’ notavelmente, e chuta muito bem com os dois pés. Marcou um gol maravilho de cabeça e justificou plenamente o interesse da torcida”, escreveu a Gazeta do Povo, na sessão de atuações individuais da partida amistosa.
O Coxa pagou 500 mil cruzeiros para receber o Peixe (ou seria Pelé?) no Belfort Duarte. Lucrou quase 300 mil cruzeiros em uma tarde chuvosa de domingo.
Edson retornou a Curitiba em 1959. Não marcou, mas ajudou o Santos a vencer o Alviverde por 1 a 0 – Sormani foi o artilheiro da tarde de 11 de outubro. Então com 15 anos de idade, vizinho do estádio, o futuro ídolo do Athletico Barcímio Sicupira Júnior assistiu in loco.
“Eu vi o Pelé jogar pela primeira vez em 1959, numa partida contra o Coritiba. Ele era soldado. Veio vestido de soldado”, rememora o Craque da 8.
“Quem não viu Pelé jogar não vai acreditar no que ele fazia”, completa.
Sicupira
De outro planeta
E o que Pelé fazia de tão diferente? Como se tornou o maior artilheiro do mundo, com 1282 gols? Não faltam testemunhas para responder.
“Fisicamente, ele era completo. Forte, rápido, saltava como ninguém, tinha velocidade. E, meu amigo, o craque, o diferente, aquele de outro planeta, pensa cinco segundos na frente dos outros. Quando o marcador pensava, ele já tinha feito”, detalha o defensor Cláudio Marques, que marcou época no Coritiba.
“Pelé era aquele fissurado, aquele cara que não parava de treinar. Velocidade, impulsão. Quando você via, ele estava treinando. Acabava o treinamento ele ficava mais duas horas lá”, atesta o zagueiro Oberdan, revelado pelo Alviverde e parceiro do Rei por quase duas décadas no time da Vila Belmiro.
Para Joel Mendes, a qualidade técnica de Pelé era incomparável, assim como a capacidade de antever os lances e a batida na bola. Mas um aspecto era ainda mais impressionante.
“Ele tinha uma arrancada muito rápida e violenta. Quando ele ia pra cima do seu marcador, porque ele ia pra cima mesmo, os adversários ficavam dois ou três metros para trás. E olha que eu joguei com ele no fim de carreira, imagina como não era quando mais novo”, fala o goleiro, que permaneceu no Peixe entre 1970 e 1975.
Camisa histórica
Fora de campo, Pelé também era diferente. Em outubro de 1970, quatro meses depois de conquistar o tricampeonato no México, a majestade do futebol retornava à capital paranaense para enfrentar o Athletico pelo Robertão. E a camisa do jogo virou um presente inusitado, de acordo com o zagueiro atleticano Alfredo Gottardi Júnior.
Pouco antes do jogo, na porta do vestiário, uma torcedora do Coritiba portadora de deficiência pediu para que o capitão do Furacão tentasse conseguir a camisa 10 do Rei para ela. Gottardi, então, foi mirou Pelé assim que os times entraram em campo.
“Eu falei: Pelé, o negócio é o seguinte, tem uma torcedora que está em todos os jogos aqui, e pediu para ver se você poderia dar sua camisa”, relata o beque.
Pelé desconversou e a partida começou. No intervalo, voltando ao vestiário, Gottardi foi surpreendido.
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“Ele veio correndo e me entregou a camisa. Para você ver a pessoa que é o Pelé. Sensacional. Além de ser o melhor que o mundo já viu, ele tinha essa bondade. Aquela menina deve estar com essa camisa até hoje”.
Alfredo Gottardi Júnior
Quando o Furacão venceu o Santos de Pelé
No duelo em campo, Gottardi também guarda boas lembranças daquele encontro com o melhor do mundo. A vitória rubro-negra, por 1 a 0, veio com gol do ex-santista Dorval, aos 17 minutos do primeiro tempo.
Mas houve um fator externo influenciou no resultado: o jornalista e ex-técnico da seleção brasileira João Saldanha.
“Alguém levou o João Saldanha na nossa concentração, que era em uma chácara em Colombo. E ele falou que o Santos estava chegando de viagem da África após quase um mês de excursão e que não iria aguentar um ritmo forte, que essa era nossa oportunidade de vencer o Santos”, relembra Gottardi.
Três anos depois, em novembro de 1973, próximo de oficializar sua primeira aposentadoria, Edson reencontrou o Athletico. Desta vez, marcou o gol da vitória por 1 a 0, de cabeça, diante de 26.900 pagantes no Alto da Glória.
Pelé pediu Tião Abatiá na seleção?
Entre os 16 jogos de Pelé atuando no Paraná – com 11 gols marcados –, o Coritiba também pôde comemorar uma vez.
“Ganhamos do Negrão em 1971, com gol de Tião Abatiá. Foi um privilégio dividir o gramado com ele e ganhar uma vez”, afirma Capitão Hidalgo, que enfrentou o Rei do Futebol diversas vezes nos anos 60, no futebol paulista, vestindo as camisas de Juventus e XV de Piracicaba.
“Ganhei de todos os grandes, menos do Santos”, lamenta.
A foto de Abatiá abraçando Pelé após o apito final estampou a reportagem na Gazeta do Povo à época. “Depois da peleja, o Rei do futebol mundial fez elogios à conduta do artilheiro coritibano acreditando que Tião Abatiá ainda poderá defender a nossa seleção”, dizia a legenda.
O triunfo também foi especial para Cláudio Marques. Natural de Santos, filho do revelador de talentos do Peixe Ernesto Marques, o zagueiro e lateral conviveu diariamente com Pelé na década de 1960, quando trabalhava como office-boy no clube da Vila Belmiro.
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“O emblemático mesmo foi isso aí que eu, de moleque, tomava pontapé no traseiro, ele desmanchava meu cabelo cheio de brilhantina e, em outubro 1971, estava dentro do campo marcando o Pelé. E ele me enchendo o saco, falando: vou te dar porrada, moleque”, resgata Marques, que na ocasião havia recém-completado 21 anos.
“Tinha gente saindo pelo ladrão no antigo Couto Pereira. Não tinha fosso, nem nada. Era um alambradinho de arame e um monte de gente pendurada para ver o Pelé, que era de outro planeta”.
Cláudio Marques
Apanha, mas bate? E o 'novo' Pelé?
Quem enfrentou Pelé sabe que por trás do artilheiro implacável também havia outra persona, a do competidor insaciável. “Ele era muito brabo [em campo]. Não admitia que os outros ganhassem dele”, destaca Sicupira.
“Era um jogador que não gostava de perder”, concorda Oberdan, que viu de perto o craque ser caçado em campo, mas que nunca deixou barato a violência.
“Ele levava muita pancada, mas também dava muita pancada. Ele devolvia tudo aquilo que recebia”, emenda o catarinense de Florianópolis.
“Com o Pelé era o seguinte. Você não podia bater nele. Se batesse, ele virava o diabo”, atesta Gottardi.
E quais a chances um novo Pelé surgir? Zero, na visão de Sicupira. “Eu não tenho a menor dúvida que não vai aparecer ninguém”, opina lenda atleticana.
“O Pelé cabeceava como ninguém, matava no peito dentro da área com três em volta dele. Cortava de direita, de esquerda, batia com as duas. Era qualquer coisa de espetacular", descreve.
“Se juntar o Messi, o Neymar, colocar numa panela, não dá metade do Pelé”.
Oberdan