"Vitrine"
Pais lutam por oportunidade nos gramados
Na recepção do Ninho da Gralha, o telefone não para de tocar. Normalmente, são pais à procura de uma vaga para os filhos. A secretária já perdeu a conta: "10, 20 ligações por dia". O local tem capacidade para até 140 garotos, atualmente tem cerca de 90, mas um dia já esteve lotado. Serviu para se constatar que quantidade não significa qualidade. Na sala de espera, contudo, em apenas 15 minutos, dois pais chegaram para acertar pessoalmente o futuro de seus filhos. É normal.
Mauro, por exemplo, é de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Verdureiro, admite perder a mão de obra do filho que o ajuda na feira para a loteria do futebol. O garoto de 16 anos é zagueiro, fez testes em Grêmio, Inter, mas foi parar no Tricolor depois de ir bem em dois torneios.
O pai está lá para fazer um contrato de dois anos, por R$ 800 mensais. Com parte do salário o garoto ajudará a família que inclui ainda mãe e três irmãos. O resto fica para ele gastar em Quatro Barras. É pouco se comparado ao sonho familiar. "É difícil ficar sem o menino em casa, mas não podemos deixar uma oportunidade dessas passar. Aqui no Paraná é uma vitrine", diz Mauro, que, como todos, sonha com a fama e o dinheiro do futebol. "É difícil, mas tem de tentar, né? Se der certo...", diz.
No fim da tarde, Mauro voltaria de ônibus para a cidade natal. No dia seguinte, acordaria às cinco da manhã, direto para a feira. (MR)
Distância não ameniza a cobrança familiar
Um dos piores inimigos da garotada nos CTs é o telefone. Instrumento que facilita a comunicação com a família, também transporta a cobrança exagerada. Um exemplo desse mal foi vivido pelo técnico Geninho, no fim do ano passado, quando treinava o Sport.
Ciro, 21 anos, um dos destaques da equipe, não vinha rendendo bem. Certo dia, chegou ao treino chorando. Em conversa com o técnico, revelou que estava sendo muito pressionado pelos pais, pois havia renovado o contrato e a família reprovara o acerto, achando pouco o aumento. "O Ciro é uma pessoa que tinha uma mãe altamente possessiva. Mas agora parece que as coisas se acertaram um pouco melhor. Antes, os pais moravam longe e a cobrança vinha muito por telefone", afirma Geninho.
Mas o melhor exemplo da influência familiar a longa distância vem de Caxias do Sul, quando Alexandre Cebem treinava as categorias de base do Juventude. O treinador lembra de um garoto que todo dia após o treino recebia a ligação do pai. Reserva na equipe, se contasse a verdade, levava bronca. Resolveu mentir.
"Dizia que havia marcado dois, três gols, barbarizado. Mas todo fim de semana, no jogo, o pai chegava e via o filho na reserva. Um dia ele se indignou e foi pedir a cabeça do treinador à direção, pois achava que o filho estava sendo perseguido", conta Cebem. "São poucos os garotos que não deixam a pressão interferir." (MR)
As brincadeiras da garotada que se prepara para mais um dia de treinamento puxado em clube da capital paranaense escondem uma dura realidade dos gramados: a extinção do que um dia fez do Brasil o país do futebol.
O jeito "irresponsável" de jogar bola e a alegria, a passos largos, estão dando lugar a uma pressão incomum para quem ainda tem um corpo de menino, mas foi alçado antecipadamente à vida adulta. O futebol passou a ser questão de sobrevivência.
O assunto andou esquecido com recentes exemplos de sucesso prematuro como Neymar. Mas voltou à tona com a morte do jogador Róger, que estava no Botafogo de Ribeirão Preto, mas tinha vínculo com o Coritiba.
O jogador do Santos, que aos 14 anos já recebia R$ 25 mil mensais, aos 19 já é uma realidade e contabiliza uma renda de quase meio milhão de reais a cada 30 dias. O ex-camisa 9 do Alviverde, por outro lado, de promessa nas categorias de base estava sendo preterido da reserva no clube paulista. Deprimido, morreu enforcado em um motel na cidade Guarulhos. Aos 21 anos, o jogador teria cometido suicídio segundo apuração inicial da polícia.
"É difícil identificar a causa, pois existem muitas variáveis como personalidade, vida afetiva, familiar, profissional, etc. Mas se aventarmos a hipótese de frustração profissional isso deve servir para uma reflexão profunda", afirma Gilberto Gaertner, psicólogo do esporte e professor da Unicenp.
Influência da família, expectativas financeiras e casos de dificuldades sócio econômicas são alguns pontos citados como principais fatores para uma criança ou adolescente levar nas costas o peso de uma família inteira. Um detalhe que atualmente não é exceção, mas regra, e pode causar danos imensuráveis ao indivíduo.
"Eles nunca vão falar isso para você, mas dentro de casa é o que acontece. Pois se o garoto dá certo, salva todos da família", afirma Alexandre Cebem, técnico das categorias de base do Tricolor. Com a experiência de passagens por Grêmio, Inter, Juventude, Bahia e seleção sub-15, ele é taxativo: "Isso ocorre em 95% dos casos."
A reportagem da Gazeta do Povo fez uma sondagem com 40 atletas das categorias juniores de Paraná e Coritiba (o Atlético não quis participar). Sem identificação, cada um respondeu quatro questões fechadas. A pressão familiar foi confirmada pela maioria.
Mais preocupante, entretanto, é constatar a falta de interesse dos pais com o estudo dos filhos. Quase 70% admitiram ser mais cobrados pelo desempenho em campo do que por outra atividade.
"O futebol hoje é a tábua de salvação de muitas famílias. É um caminho que propicia ascensão rápida, sem a necessidade de estudo", analisa, com preocupação, Clair Kapp, assistente social do Coritiba há 10 anos. Recentemente ela teve de lidar com um exemplo real da pressão familiar. Um atleta da base queria largar o futebol, mas a família tentava dissuadi-lo da ideia. O impasse acabou chegando a Clair, que interveio pela vontade do menino. "Mas isso é um caso extremo", conta ela.
Outros dados interessantes se referem à percepção da dependência da família 72,5% acham que dependem muito de seu desempenho no campo. Sobre a possibilidade de fracasso, 47,5% dizem que só eles se decepcionariam; 52,5% dividem a culpa com os pais.
"Fica evidente a expectativa de uma mudança familiar a partir do sucesso esportivo do filho. Junto disso vêm o peso e a responsabilidade de ter de corresponder a essa expectativa. Mas cabe lembrar que atletas de sucesso não chegam a 1% dos praticantes", diz Gaertner.
Para quem tem pouco, ou quase nada, o dado não chega a ser desencorajador. Em um contexto onde 80% é formado por atletas das classes média baixa e baixa, a esperança derrota com facilidade as estatísticas.
"Tenho uma família humilde que só conseguirá mudar de vida por mim", afirmou um dos garotos à reportagem. "Minha vida depende do futebol, todas as minhas esperanças estão depositadas aqui", complementa o menino.