Os cabelos são brancos como a neve. O olhar é doce e direto. A roupa é colorida e, ao mesmo tempo, discreta. Os brincos e anéis enfeitam a aparência que já se transformou muitas vezes ao longo do tempo. Contrariando qualquer tipo de imaginário comportamental sobre uma senhora de 99 anos, dona Íris Bigarella abre as portas de seu lar – que fica no décimo segundo andar de um charmoso prédio curitibano, tão charmoso quanto ela.
Aluna assídua das aulas de pilates, mãe de 3, avó de 5 e bisavó de 6, dona Íris se define como ‘uma grande buscadora’. Nascida em terras paranaenses, seu coração sempre foi viajante. Já morou na Europa, passou temporadas nos Estados Unidos e em outros tantos destinos, mas se sente verdadeiramente em casa quando está aqui.
“Sou curitibana de nascimento e paixão. Eu amo Curitiba.”
Seja na capital paranaense ou em qualquer outro lugar, o fato é que Íris já viu, ouviu, sentiu e viveu muitas coisas. Chegou ao mundo 1 ano e 6 meses depois da Semana de Arte Moderna, em 1922. Provavelmente ouviu conversas dos adultos sobre a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. Era adolescente no início da Segunda Guerra Mundial, e adulta quando a primeira emissora de televisão adentrou às terras brasileiras, em 1950.
Viu todas as vezes que o Brasil ergueu a taça de campeão em uma Copa do Mundo. Viveu o processo de redemocratização do país. Certamente ficou sabendo da posse do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, em 2009, e dos ataques às Torres Gêmeas, em 2001. E, é claro, enfrentou uma pandemia mundial com início em dezembro de 2019. Dentre tantos acontecimentos, o que mais a impressionou ao longo desse tempo, foi o avanço da tecnologia.
Ela é ‘hater’ do WhatsApp e ‘fã’ dos e-mails que, segundo ela, são muito mais precisos, diretos e estáveis. Gosta de fazer pesquisas no computador, de escrever e de se comunicar com os amigos. Apesar desses hobbies, uma de suas grandes paixões é, e sempre foi a viagem entre as linhas de um livro. A leitura é uma atividade que ela não abandona.
Já passou da época dos romances, gosta mesmo é de ler sobre pesquisas, autoconhecimento e espiritualidade. Sua vida é uma daquelas que daria um bom livro, e não é que deu mesmo? Na comemoração de seu aniversário de 99 anos, dona Íris Bigarella lançou o livro ‘Como chegar feliz aos cem anos’, pela Editora Chiado. A obra reúne suas histórias, descobertas e relações com a existência, além das conquistas que obteve ao longo da jornada.
Pioneirismo e reinvenções
Dona Íris se formou na época em que as universidades estavam se formando. Por ser mulher, a geração e o período em que viveu a privaram de algumas coisas. Mas isso não a transformou em uma pessoa limitada, muito pelo contrário. Sempre viajou, estudou sobre as mais diversas áreas do conhecimento, como história, antropologia e psicologia e, definitivamente, aproveitou (e aproveita) a vida.
Viúva do professor, geógrafo, geólogo e engenheiro químico, que é referência internacional em Geociências, João José Bigarella, Íris guarda memórias e lembranças que dizem, por si só, como o marido foi uma grande pessoa. Ambos trabalharam ativamente na causa ambiental, com a criação de associações e diferentes trabalhos de incentivo e preservação do meio ambiente.
A editora Patrícia Papp, neta mais velha, da filha mais velha de dona Íris, comenta que a avó foi uma grande apoiadora de João Bigarella nesse e em outros movimentos. “Meu avô foi uma figura muito importante, e ela sempre esteve ao lado dele. Às vezes na frente, às vezes atrás, mas sempre junto.”
A morte do companheiro foi um momento complicado para Íris, que, a partir daquele ponto, teve que recalcular suas rotas. Devido à idade e a outras circunstâncias, ter uma acompanhante 24 horas por dia, se transformou em uma obrigação. Aceitar isso, no começo, foi difícil. Era como se a vida quisesse privá-la da autonomia e liberdade que sempre teve. Mas, com o tempo, se adaptou à nova realidade. “Acabei me acostumando. Já fazem anos que eu sempre tenho uma cuidadora, e não deixa de ser uma boa companhia.”, comenta.
A acompanhante Cleuza Borges começou a trabalhar com dona Íris há 1 mês. Seus turnos são de dois dias em dois dias – ela reveza os horários com uma outra profissional – e, apesar de estar há pouco tempo na função, já se acostumou com a rotina da senhora quase centenária. “Ela levanta cedo, anda pelo apartamento e faz a ginástica dela. Tem seus horários de refeições, faz as atividades e a meditação. Às vezes, caminhamos um pouco e, lá pelas 21h/ 22h, ela vai dormir.”
Natural de Minas Gerais, Cleuza veio para Curitiba ‘tentar a vida’. Ao receber a mensagem de uma conhecida sobre a divulgação de uma vaga de acompanhante, não pensou duas vezes. No primeiro dia de trabalho, dona Íris a presenteou com seu próprio livro ‘Chegando feliz aos cem anos’. De vez enquanto, as duas emendam bate-papos sobre trechos da obra.
Os conhecimentos profundos e variados que dona Íris carrega na bagagem, chamam a atenção de quem senta para conversar com ela. Patrícia Papp, a neta mais velha da matriarca, comenta que a avó sempre foi muito ativa intelectualmente, e distribui pílulas de sabedoria por onde passa, sem deixar o comodismo bater à porta de ninguém. "Acontece de eu acordar em uma segunda-feira de manhã, abrir meu e-mail e ver que a primeira mensagem que aparece é dela, dizendo: 'o que você está fazendo para mudar o mundo?'", afirma a editora.
Zona de conforto é um lugar que dona Íris definitivamente não gosta de visitar. Se sua vida fosse uma tela de pintura, provavelmente seria um daqueles quadros com muitas cores – seguindo uma lógica bem diferente da sala de estar com tons neutros de seu próprio apartamento, onde passa a maior parte dos dias.
Fazer valer a pena
Tal qual um pote de ouro no final do arco-íris: assim são os domingos de dona Íris, que espera a semana inteira para ir à chácara de uma das filhas. É o momento de rever a família, acumular um pouco mais de história e acompanhar, de pertinho, o desenvolvimento de mais arbustos em sua grande árvore genealógica.
A editora e neta de dona Íris, Patrícia Papp, também marca presença nos almoços dominicais, e entende o momento como um grande encontro, uma festividade entre as gerações. Não é de hoje que Patrícia coleciona boas memórias com a avó. “Sempre fomos próximas. Lembro muito da casa dela, do fogão a lenha, do cheiro do pão sendo feito, das caminhadas e de muitas outras coisas.”
Uma recordação recente da editora com a avó, foi o dia do lançamento do livro ‘Chegando feliz aos cem anos’, que representou a comemoração dos 99 anos de dona Íris. Patrícia comenta que a celebração do centenário da avó promete ser ainda mais especial e, talvez, tenha o lançamento de um novo livro de poesias.
Entre palavras, estudos, pesquisas e uma imensa autenticidade, dona Íris já escreveu quase um século de vida. Para a percepção humana do tempo, esse é um longo período. Mas, dependendo do ângulo, da dimensão e, até mesmo, da fé de cada um, os 100 anos de idade podem ser uma espécie de recorte, ou um pedaço da existência.
Seja como for, o capítulo de um livro, uma coleção inteira de livros ou um livro avulso: fazer valer a pena é o que dá sentido. E dona Íris fez, está fazendo e ainda fará com que muitas gerações percebam isso.