O contrabando de cigarros vem sendo há muitos anos a “bola da vez” para os contrabandistas, no Brasil. Não à toa que o produto paraguaio lidera o ranking de apreensões da Receita Federal, com 56% do volume, totalizando 2,5 bilhões de unidades apreendidas apenas entre janeiro a junho deste ano.
E além do setor do tabaco, outras indústrias também vêm enfrentando a concorrência desleal do mercado ilegal, que por sinal se acirra em períodos de economia desaquecida. Considerando 13 setores em 2018, são R$ 193,1 bilhões de perdas setoriais e sonegação, segundo levantamento do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade.
Mesmo que cada segmento tenha sua peculiaridade, as formas de enfrentamento acabam sendo parecidas. Em comum, uma forte dependência do trabalho das forças policiais e de fiscalização, uma considerável sensibilidade às oscilações do mercado e, por fim, uma demanda que poderia compensar essas duas questões: uma legislação mais simples, principalmente na área tributária.
O #DentroDaLei conversou com representante de alguns setores, como os de TV por assinatura, material esportivo, combustíveis e óculos, para ter um panorama de como eles andam enfrentando o mercado ilegal.
TV por assinatura: desemprego e aumentos de impostos afugentam clientes
O setor de TV por assinatura é mais um que está sendo duramente atingido pela crise econômica. Desde 2014, de acordo com a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), esta indústria já perdeu 3 milhões de assinantes, principalmente entre os consumidores de baixa renda, mais afetados pelo desemprego.
Um dos reflexos da crise, a pirataria, vem crescendo "assustadoramente", segundo o presidente da ABTA, Oscar Simões. Estima-se que conexões clandestinas cheguem a 4,5 milhões de lares - o número em 2017 era de 4,2 milhões, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), do IBGE.
"Isso provoca um prejuízo de R$ 9 bilhões por ano às empresas do setor e aos governos, que deixam de arrecadar cerca de R$ 1 bilhão por ano em impostos", contabiliza o executivo, que lembra que a pirataria também cresce com a chegada de novas formas de acesso ilícito aos conteúdos de TV por assinatura, seja por aparelhos decodificadores clandestinos ou por sites que compartilham canais pagos de modo irregular.
"Não há dúvida de que a redução e simplificação de impostos aumenta a demanda por este serviço"
Oscar Simões, presidente da ABTA
Para Simões, a política tributária é decisiva na expansão ou contração do setor de TV por assinatura. "Não há dúvida de que a redução e simplificação de impostos aumenta a demanda por este serviço", afirma.
Para comprovar isso, ele mostra um estudo da Fipe, que indica que cada ponto percentual de aumento no preço deste serviço pode reduzir a base de assinantes em 1,95%. O mesmo estudo estimou que o aumento da carga tributária poderia provocar a exclusão de quase 2 milhões de consumidores do serviço de TV paga.
Aumento que, inclusive, já aconteceu nos últimos anos em pelo menos 15 estados e no Distrito Federal, através das alíquotas do ICMS para a TV por assinatura.
Além da simplificação tributária, Simões cobra que o estado contribua coibindo as atividades ilícitas. "Por parte das empresas, o aumento de demanda gera mais investimentos e empregos. E esperamos também uma mudança de cultura de um estrato da sociedade que ainda tolera a ilegalidade", afirma.
O setor de TV por assinatura movimenta em torno de R$ 30 bilhões por ano no Brasil, segundo a Anatel. E de acordo com a Ancine, sem um combate eficiente à pirataria, o setor de TV por assinatura pode deixar de gerar até cerca de 150 mil empregos nos próximos dez anos.
Óculos falsificados: um problema de saúde pública
"O mercado óptico está em quinto lugar na escala de artigos falsificados. Em todo o país, óculos sem qualidade movimentam cerca de R$ 8 bilhões ao ano, quase 60% do mercado". É assim que o presidente da Sindióptica-RS (Sindicato do Comércio Varejista de Material Óptico, Fotográfico e Cinematográfico do Rio Grande do Sul), André Roncatto, resume a situação do setor.
Após anos enfrentando as incertezas do mercado, o segmento já acredita em uma real retomada de crescimento, após uma queda de 2,1% no faturamento em 2018 (R$ 21,5 bilhões) em comparação a 2017 (R$21,9 bilhões). No primeiro trimestre de 2019, o setor registrou crescimento de 3,7% frente ao fechamento de 2018.
Em contrapartida, o setor tem sido obrigado a encarar duas "novidades" vindas do mercado ilegal. Uma é o contrabando de materiais fabricados com lixo reciclável, que entram no país por cerca de R$ 1. Além disso, o comércio de produtos falsificados se estendeu em grande proporção, segundo ele, para os óculos de grau. "Um verdadeiro atentado à saúde pública", afirma.
"A sociedade precisa entender estes efeitos perversos. Já seria uma grande contribuição o simples fato de não adquirir produtos contrabandeados"
André Roncatto, presidente da Sindióptica-RS
Até por isso, Roncatto também vê a necessidade de que o estado promova ações que vão além da repressão e das mudanças na política tributária. "É prudente realizar uma ampla campanha de conscientização junto ao consumidor sobre a aquisição de produtos ilegais", ressalta.
"Hoje, não vivemos apenas a era dos sacoleiros das compras no Paraguai. O momento é outro. A informalidade que invade as ruas alimenta o crime organizado, que coopta imigrantes e pessoas em vulnerabilidade social. Na outra ponta, lojistas encerram as atividades", lamenta. "A sociedade precisa entender estes efeitos perversos. Já seria uma grande contribuição o simples fato de não adquirir produtos contrabandeados."
Combustíveis: brechas para um modelo de negócios ilegais
No setor dos combustíveis a situação é um tanto diferente. Isso porque o contrabando não oferece uma ameaça relevante. E outros problemas sérios do passado, como a adulteração, bastante disseminada há cerca de 10 anos, foram reduzidos significativamente nos últimos anos, devido a mudanças na legislação e aperto nas fiscalizações.
No entanto, ilegalidades não deixaram de acontecer. Segundo Helvio Rebeschini, diretor de Planejamento Estratégico e Mercado da Plural (Associação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Lubrificantes, Logística e Conveniência), empresários desonestos do setor perceberam que a inadimplência tributária passou a ser mais vantajosa e menos arriscada do que a adulteração dos combustíveis.
"É um problema crescente", alerta, apresentando números de uma pesquisa sobre o potencial tributário do setor, concluída pela Plural em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) em agosto.
"Onde a tributação é alta, como nos cigarros e combustíveis, o crime compensa. Pois dá ao criminoso uma vantagem competitiva absurda sobre o mercado legal"
Helvio Rebeschini, diretor de Planejamento Estratégico e Mercado da Plural
Como resultado, a Plural calcula uma inadimplência de R$ 7,2 bilhões em tributos, só no ano passado. São R$ 5,3 bilhões de só de ICMS, segundo o estudo da FGV. A este número ainda pode se somar, segundo cálculos da Plural, R$ 1,9 bilhão referentes a inadimplência do PIS/Confins, sonegação de tributos decorrente da adulteração de produtos ou de bombas (a chamada "fraude volumétrica") e de ICMS referente a simulações de vendas interestaduais.
Além da crise econômica, Rebesquini vê outros fatores que contribuem para essa situação do setor. "Onde a tributação é alta, como nos cigarros e combustíveis, o crime compensa. Pois dá ao criminoso uma vantagem competitiva absurda sobre o mercado legal", aponta.
Outro problema que ele elenca é a legislação tributária "extremamente complexa". Para ele, isso abre "várias brechas para se fraudar e tornar a fiscalização mais difícil". O executivo também lembra da dificuldade nacional de aplicação séria da lei criminal, que não facilita o trabalho de quem julga.
Assim, essa situação acabou criando uma espécie de "modelo de negócio ilegal", onde empresas em nome de "laranjas" ganham mercado rapidamente, impossibilitam o crescimento do mercado regular e ainda deixam um passivo tributário praticamente impossível de ser recuperado pelo Estado.
"Esse inadimplemento também é ligado à adulteração de combustíveis, que por sua vez é ligado ao contrabando de cigarros e depois de armas e drogas", observa.
Produtos esportivos: Indústria nacional de falsificação
Marcas e produtos altamente desejados e com um bom valor no mercado, como os feitos por grandes indústrias esportivas, fazem crescer os olhos do mercado ilegal. Isso não é exatamente uma novidade - o Brasil importa, produz e até exporta, há décadas, itens falsificados ou contrabandeados nessa área.
Para a diretora presidente da Associação pela Indústria e Comércio Esportivo (Ápice), Marina Carvalho, o combate a isso até vem sendo eficaz, mas só na forma repressiva. Polícia Rodoviária Federal, Ministério da Justiça e Receita Federal têm sido, segundo ela, "muito responsivos e eficientes, trabalhando de maneira contundente".
"Se não há política fiscal falta um braço nessa estratégia"
Marina Carvalho, presidente da Ápice
Mas aí ela aponta um porém: "se não há política fiscal falta um braço nessa estratégia". Representante de um setor que movimenta cerca de R$ 5 bilhões por ano, arrecada perto de R$ 2 bilhões em tributos e gera aproximadamente 20 mil empregos diretos, Marina diz que os números do contrabando e falsificação variam muito de acordo com a situação econômica e cambial do país. Porém, o mercado ilegal normalmente abocanha metade das vendas.
O setor, assim, acaba tendo que enfrentar uma concorrência que, apesar de não entregar um produto com a mesma qualidade, também não arca com uma carga tributária que chega a 48% sobre os produtos na prateleira. "Isso é um estímulo à falsificação e ao contrabando", conclui.
'Lei do Bem', de 2005, fez taxa de contrabando baixar de 75% para menos de 10%
Um exemplo de política tributária até hoje considerado bem-sucedido é uma lei de 2005 para o setor de tecnologia: a chamada Lei do Bem trouxe uma série de benefícios fiscais para este segmento e acabou reduzindo a participação do mercado ilegal de 75%, naquele ano, para 35% em cerca de quatro anos. Hoje estima-se que o contrabando e a pirataria desses produtos responda por menos de 10% do mercado nacional.
Entre os benefícios, a lei garantiu às empresas a redução das alíquotas de PIS e Cofins a zero sobre a receita bruta da venda de unidades de processamento digital, teclados,
modens e computadores, além de possibilitar que despesas com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação fossem deduzidas. A medida também reduziu o IPI sobre os bens necessários para esse setor.
"Essa migração para o mercado legal contribui para a consolidação de uma indústria nacional da área tecnológica – ainda que muito aquém de outros países -, diminuindo a dependência de importações nesse setor e contribuindo para uma paulatina redução dos preços de produtos de informática e popularização de seu acesso à diferentes estratos sociais", conclui um estudo do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).