Quinto maior país do mundo e localizado no coração da América Latina, o Brasil faz fronteira direta com dez vizinhos. Ao todo, são mais 17 mil quilômetros de fronteiras marcadas por terra e água, tornando o monitoramento completo da área uma missão quase impossível e facilitando a entrada ilegal dos mais diversos produtos - de eletrônicos a cigarros.
Um estudo encomendado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) apontou que, no ano passado, 54% dos cigarros consumidos no Brasil tinham origem ilegal. Apenas 4% destes são produzidos dentro do território brasileiro, em fábricas clandestinas. Todo o restante vem do Paraguai, entrando ilegalmente pela fronteira com o Paraná e o Mato Grosso do Sul.
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Isso acontece porque é lucrativo produzir cigarros no país vizinho para revender ilegalmente no Brasil. O cigarro é o quarto produto mais tributado no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), com uma taxa de 80,4%. "O imposto para cigarro no Paraguai é muito baixo, inferior a 20%. E ele produz mais de dez vezes o que a população consome, então tem muito excedente", explica o policial Fernando Oliveira, chefe do núcleo de comunicação da Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Encruzilhadas
O cigarro é apenas um exemplo entre vários outros produtos que chegam ao país irregularmente pelo Oeste do Paraná. O estudo "Rotas do crime - As encruzilhadas do contrabando", feito pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf) em 2016, aponta que por essa região também chegam eletrônicos, medicamentos, cosméticos e bebidas, assim como drogas e armas. A região também faz fronteira com a Argentina, de onde vêm alimentos, itens de vestuário e bebidas.
A distribuição das mercadorias acontece por terra e por meio de vários tipos de veículos: caminhões, carretas, ônibus e até carros de passeio são usados pelos contrabandistas. "Os produtos descaminhados e contrabandeados acabam atingindo o Brasil inteiro. Muita coisa vai para São Paulo, mas muita chega também ao Norte e Nordeste do país", diz o auditor fiscal da Receita Federal Sandro Huttner.
Esses produtos vão parar em diversos tipos de centros comerciais em todas as regiões do país - das grandes metrópoles aos pequenos municípios do interior. Por serem uma parte relativamente "normal" do cotidiano do brasileiro, é fácil esquecer que essas mercadorias não são apenas mais baratas, mas também podem ter qualidade inferior e sua presença no Brasil deriva da evasão fiscal.
"Não é verdade essa visão de que comprar produtos falsos e contrabandeados não tem nenhum risco. Na verdade, [o consumidor] está financiando quem está por trás desse comércio e coloca, também, sua saúde em perigo. Por exemplo, comprando produtos que não obedecem regulamentos técnicos, como carregadores e baterias de celulares falsos que explodem. Quem traz esses produtos do Paraguai, quem contrabandeia produtos da China, enfim, quem é financiado por esse comércio, são as instituições criminosas, que não têm preocupação com os consumidores. Querem obter lucro fácil”, aponta o presidente-executivo do ETCO, Edson Vismona.
Ele destaca a ligação de contrabandistas com o crime organizado, financiando o tráfico de drogas e armas. "No fim, tudo isso se converte em um dinheiro ilícito, fruto de uma prática criminosa, que acaba indo parar na mão dos criminosos".
De Norte a Sul
De modo geral, as principais rotas de acesso de contrabando no Brasil são as BRs 277 e 163. Juntas, elas cortam o Paraná do oeste até o Porto de Paranaguá, no Litoral - no caso da BR-277, que não sai deste Estado -, e o país de Norte a Sul, no caso da BR-163, que tem mais de 3,5 mil quilômetros de extensão. "Todo o contrabando que entra no Brasil, por fronteira seca ou por via fluvial, em algum momento deverá cruzar por uma delas", afirma o estudo do Idesf.
Já a distribuição para os grandes centros é feita por meio das rodovias estaduais, assim como rotas municipais. São as mesmas usadas no cotidiano por qualquer cidadão, e que muitas vezes estão em melhores condições de rodagem, muitas delas contando até mesmo com praças de pedágio. Dados da Confederação Nacional de Transportes (CNT) apontam que há mais de 1,7 milhão de quilômetros de estradas implantadas no país inteiro, considerando as rodovias federais, estaduais e municipais. Destes, apenas 12,4% eram pavimentados à época do último levantamento, divulgado em 2017.
Precisamente por causa da dimensão desse tipo de operação e do tamanho do território brasileiro, essa é uma prática difícil de ser combatida. Estima-se que somente entre 5% e 10% das mercadorias contrabandeadas no Brasil são apreendidas. Para o presidente do Idesf, Luciano Stremel Barros, é preciso combater em outra frente: com políticas tributárias que diminuam o rendimento dessas atividades.
"O contrabando só existe porque ele tem um mecanismo muito positivo: ele dá muito lucro. Então, todas as medidas repressivas são importantes mas, em um país que tem uma fronteira tão extensa, a repressão se torna muito difícil", opina. "Se atacarmos a lógica econômica desse mercado irregular teremos mais êxito do que se abordarmos esse problema somente com repressão", completa Barros.
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O peso do contrabando
Além de ser uma prática criminalizada, o contrabando, mesmo de produtos cotidianos e aparentemente inofensivos, como peças de vestuário ou perfumaria, tem um peso real para a economia, ao mesmo tempo em que se mistura com outras práticas ilegais. "Os principais problemas são relacionados à indústria nacional, que sofre com a concorrência desleal. Além disso, quem comete esse tipo de crime acaba usando a mesma logística que é usada para transportar [ilegalmente] armas, drogas e cigarro", exemplifica Sandro Huttner, da Receita Federal.
Segundo o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), em 2018, o Brasil perdeu R$ 193 bilhões para o mercado ilegal. Esse valor é a soma do prejuízo a 13 setores industriais e a estimativa dos impostos que deixam de ser arrecadados. A maior parte das perdas fica concentrada no setor de vestuário (R$ 58,4 bilhões), seguido pela indústria do tabaco (R$ 14,3 bilhões) e de medicamentos (R$ 10 bilhões), mas a lista inclui ainda defensivos agrícolas, combustíveis, brinquedos e perfumaria, entre outros.
"O contrabando não arrecada um centavo de tributo e não contribui para uma economia sadia e de concorrência leal", enfatiza Luciano Barros, do Idesf. "Ele tem uma margem de lucratividade muito maior do que uma empresa legalmente estabelecida, que paga seus tributos, que contribui com funções sociais, que contrata mão-de-obra formal, alavancando as economias regionais. O contrabando vem para destruir toda essa lógica", conclui Luciano Barros, do Idesf.