É preciso entender a diferença entre os diferentes tipos de ativos digitais que podem ser de cunho patrimonial e existencial| Foto: Divulgação
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A internet está cada vez mais presente na vida de todos e, com isso, milhões de dados online são gerados no mundo a cada segundo. Com o avanço cada vez mais veloz da vida digital, muitos bens e patrimônios deixam de existir no mundo físico para estarem disponíveis apenas na nuvem. Toda essa evolução gera uma lacuna na legislação brasileira no que diz respeito à herança e sucessão. Afinal, como lidar com bens virtuais e dados online em caso de morte?

O Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados não tratam desses temas, o que gera um desafio adicional para o Poder Judiciário decidir sobre casos em que o titular de uma conta no Youtube que gera receita morre, por exemplo. Ou sobre o que acontece com os dados online de quem falece. 

Atualmente, há pelo menos 13 projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que tratam do tema e buscam legislar sobre o assunto. Mas o fato é que não há nada concreto que trate do tema na legislação brasileira. 

Diferentes tipos de ativos digitais

Segundo a  advogada Karoline Kuzmann, sócia do escritório Dal Bello Kuzmann Advocacia Especializada, antes de entender como lidar com o legado virtual após a morte, é preciso entender a diferença entre os diferentes tipos de ativos digitais. “Para compreender isso é necessário fazer uma distinção entre bens digitais de cunho patrimonial e existencial”, explica a advogada.

Os bens digitais de cunho patrimonial são aqueles que são passíveis de conversão em dinheiro. “Temos como exemplo as moedas virtuais, milhas aéreas, créditos e avatares em jogos virtuais, itens pagos em plataformas digitais, tokens não fungíveis (NFTs), perfis em redes sociais de empresas, sites, streamings”, esclarece Karoline Kuzmann.

Já os bens digitais existenciais são as informações capazes de gerar repercussões extrapatrimoniais, como os perfis em redes sociais, blogs, e-mails, mensagens, arquivos em nuvens. 

Além deles, há ainda os bens de caráter dúplice, ou seja, que possuem valor monetário, mas são de cunho personalíssimo, como os perfis dos influenciadores digitais no youtube, tiktok e outras redes.

Como ficam os bens virtuais e os dados online na sucessão

De acordo com a advogada Andressa Dal Bello, também sócia do escritório Dal Bello Kuzmann Advocacia Especializada, como não há legislação específica sobre a transferência de propriedade desses ativos digitais em caso de morte, os tribunais brasileiros têm tomado decisões diferentes sobre esses tipos de casos.

“Temos duas correntes doutrinárias, que também estão presentes nos projetos de lei que tratam do tema. Uma delas é a doutrina majoritária, que entende pela regra da transmissão hereditária dos bens digitais que tenham conteúdo patrimonial e da intransmissibilidade de situações existenciais”, diz Andressa Dal Bello. 

Ou seja, nesse caso, as contas de WhatsApp, Facebook, Telegram, Dropbox, Twitter, e-mails, e similares não seriam passíveis de serem transmitidos a herdeiros do titular. 

Mas há outra corrente, segundo a advogada, que adota a regra da sucessão universal dos bens digitais, de forma irrestrita e absoluta aos herdeiros.

Como não há regras claras sobre o tema, cada plataforma digital pode ter uma regra diferente para lidar com o legado digital dos usuários que morrem. 

“Em relação às contas online, muitas plataformas de redes sociais e serviços online têm suas próprias políticas sobre o que acontece com uma conta quando o titular falece. Algumas permitem que familiares ou representantes legais solicitem a remoção da conta ou a sua transformação em uma conta memorial. É essencial revisar e entender os termos de serviço das plataformas que você utiliza”, explica Andressa Dal Bello. 

Assessoria jurídica facilita destinação de herança digital

Como não há regulamentação em lei sobre herança digital, é imprescindível que os usuários de contas em redes sociais e titulares de bens digitais tenham um plano claro e bem definido se quiserem dar alguma destinação específica para esse tipo de herança. 

“Em relação aos dados armazenados em nuvens, é imprescindível que o titular da herança deixe todas as informações e desejos em uma relação constante em um testamento, para que não seja necessário a intervenção do poder judiciário, que ainda não tem um posicionamento unânime sobre o tema”, explica Karoline Kuzmann.

No caso de bens de cunho patrimonial, como o caso de criptomoedas e milhas aéreas, serão obedecidas as regras de sucessão do Código Civil.

Porém, quando se trata de bens de cunho existencial, as advogadas reforçam que é preciso entender as políticas de uso de cada plataforma, além de prever em testamento a destinação das contas. 

“Caso o falecido deseje conceder acesso aos familiares ou amigos dos bens digitais de caráter existenciais, como WhatsApp, Facebook, Telegram, Dropbox, Twitter, e-mails, e similares, deverá prescrever em testamento seus desejos em relação a cada um dos seus bens digitais, destinando eventual acesso à determinados herdeiros, bem como a distribuição de eventuais senhas”, explica Karoline Kuzmann.

Vantagens de um testamento para transferência de propriedade de ativos digitais

Segundo as advogadas, o testamento é uma ferramenta importante para a destinação adequada dos ativos digitais na hora do planejamento sucessório. 

Desta forma, o titular dos bens pode decidir, por exemplo, um administrador para o conteúdo digital diferente do herdeiro, em especial nos casos de canais no Youtube ou outros ativos que gerem renda. 

“Desta forma, o testador pode determinar um administrador judicial para as contas com caráter econômico, diferente dos herdeiros, e deixar especificado quais os valores mensais, semestrais ou anuais que ele gostaria que fosse destinado a cada herdeiro. Isso porque muitas vezes o criador de conteúdo já tem uma equipe profissional que administra suas plataformas, bem como pelo fato de, na maioria dos casos, os herdeiros não possuírem tal habilidade”, esclarece Andressa Dal bello. 

O testamento também é útil para definir legados sobre determinados conteúdos digitais, como a exploração de vídeos, aulas, cursos, palestras, dando por exemplo uma destinação filantrópica. 

“Outro instrumento que poder ser utilizado é o codicilo, que é o documento que permite que o outorgante esclareça suas últimas vontades em relação a situações como: seu enterro, legar bens de pequeno valor, entre outros”, explica Karoline Kuzmann. “Este instrumento tem a vantagem de ser menos custoso que o testamento, visto que basta ser um documento datado e assinado. Assim, por meio dele, o outorgante pode dar destinação das suas redes sociais, por exemplo”, completa. 

Código Civil pode legislar sobre o tema

Encaminhada ao Senado em abril deste ano, a reforma do Código Civil traz pela primeira vez dispositivos legais sobre herança digital.

Uma das grandes novidades diz respeito à proposta de inclusão de artigos que definem o que são bens digitais, quais os limites da transmissão hereditária e qual a forma de regularização de tais situações jurídicas, tanto no inventário judicial quanto no extrajudicial. 

Além disso, o projeto traz alterações no artigo que trata do codicilo, com o acréscimo de dois parágrafos, sendo o segundo sobre disposições de bens digitais.