Um dos principais benefícios da utilização de testamentos é a clareza que eles proporcionam na distribuição de bens e sobre as vontades de quem o expressa
Um dos principais benefícios da utilização de testamentos é a clareza que eles proporcionam na distribuição de bens e sobre as vontades de quem o expressa| Foto: Shutterstock

A trama da novela “Família é Tudo”, da Rede Globo, traz uma situação inusitada: uma avó, que deseja unir os cinco netos que não se veem há anos, coloca em seu testamento que todos terão que morar juntos e trabalhar para reconstruir a gravadora da família. Caso o cumprimento da tarefa não seja satisfatório, eles não poderiam usufruir do patrimônio, que ficaria com um sobrinho ganancioso.

O condicionamento de missões para o recebimento da herança pode ocorrer segundo as leis brasileiras, mas, com algumas limitações. Na trama, o testamento da personagem foi registrado nos Estados Unidos, país que também autoriza a instituição de obrigações pessoais nesse tipo de documento, mas que possui uma maior liberdade sobre as formas e obrigações a serem cumpridas pelos herdeiros. 

Essa é apenas uma diferença de regramento que interfere na estruturação de testamentos no Brasil e no exterior. Especialistas da área apontam que, em qualquer situação, se bem elaborado, o documento pode garantir que a distribuição dos bens ocorra conforme a vontade do falecido, evitando conflitos e litígios. 

O advogado especialista em sucessões Nereu Domingues, sócio-fundador da Domingues Sociedade de Advogados, aponta que a ferramenta às vezes é involuntariamente postergada, por ser considerada simples, mas pode ser a salvação numa situação inesperada.

“O bom é inimigo do ótimo. Registrar um testamento é bom e, ainda que ele não resolva todos os temas do planejamento patrimonial e sucessório familiar, se registrado tempestivamente, pode poupar a família que aqui fica de muitas dificuldades. O planejamento patrimonial e sucessório é bastante amplo e, não raras vezes, a busca da família pelo ótimo coloca os seus membros num emaranhado de alternativas, efeitos familiares, sucessórios, tributários, societários e,  nessa busca pela solução perfeita, podem passar meses e até anos, e não se executa o planejamento dada a quantidade de decisões a serem enfrentadas. Se, no meio da busca pelo ótimo, acontece um falecimento, é muito importante ter o testamento registrado”, aponta.

No Brasil, há distinções, por exemplo, entre o testamento civil e o vital, como explica o advogado Jorge Augusto Nascimento, sócio da Domingues Sociedade de Advogados. No primeiro caso, as disposições tratam dos bens, patrimônio e vontades de uma pessoa a serem executadas após sua morte, é também chamado de desejo de última vontade. O segundo, por sua vez, dá instruções sobre cuidados médicos, tratamentos e gestão patrimonial no caso de uma incapacidade.

Um dos principais benefícios da utilização de testamentos é a clareza que eles proporcionam na distribuição ou administração de bens e sobre as vontades de quem o expressa, como aponta Jorge Augusto. “O documento, se bem estruturado, reduz significativamente as disputas familiares, ao deixar claro quais são os desejos do testador, no caso de falecimento ou incapacidade deste.’ 

Testamento civil: efeitos após o falecimento 

Segundo a última edição do Relatório Cartório em Números, mais de 33,5 mil testamentos foram registrados no Brasil em 2022, aumento de mais de 30% em dez anos.

Jorge Augusto destaca que o testamento civil é uma ferramenta acessível a variados perfis familiares, ao poder ser feito, inclusive, na forma particular, dispensando o cartório, mas que devem ser observados os critérios legais para sua validade, tal como a assinatura de testemunhas. 

“Mesmo naquele que é feito em um tabelionato, por exemplo, levantar laudos de avaliação de capacidade da pessoa, principalmente de saúde mental, torna esse processo mais seguro e com menos possibilidade de impugnações”, detalha.

Também não é possível destinar livremente todos os bens, conforme as normas brasileiras. Ou seja, a lei reserva aos herdeiros necessários — descendentes (filhos, netos, bisnetos, etc.), na falta dos descendentes os ascendentes (pais, avós, bisavós, etc.); e cônjuges/companheiros (marido, esposa, companheiro ou companheira), no mínimo, 50% do patrimônio do falecido. Assim, o testador pode dispor livremente apenas sobre a metade restante dos bens. A regra também pode invalidar doações em vida que ultrapassem esses limites, prejudicando outros herdeiros necessários, por exemplo.

Além do testador, das testemunhas e dos herdeiros, outra figura importante para assegurar a efetividade desse documento sucessório é o testamenteiro. “É aquele que vai fiscalizar e reconhecer a vontade do testador, uma espécie de guardião dos desejos”, detalha Nereu Domingues. Já o inventariante administrará o patrimônio enquanto ele não for partilhado e recomenda-se que também seja indicado no próprio testamento.

O acompanhamento de um advogado na elaboração dos papéis e na sua atualização, conforme a evolução legal e de realidade patrimonial e familiar do testador, também é essencial para evitar questionamentos posteriores. 

“No caso, por exemplo, do nascimento de um filho especial, vou ter que ter uma regra mais elaborada em relação a quem ajudará esse filho a fazer a gestão. Então, se um fato desse acontece depois da execução de uma operação de planejamento patrimonial e sucessório, mesmo que seja só pelo testamento, é muito importante que o testador revisite o documento”, exemplifica o advogado.

Testamento vital: efeitos após reconhecimento da incapacidade

Embora não haja uma lei específica no Brasil que trate exclusivamente do testamento vital, também conhecido como Diretiva Antecipada de Vontade (DAV), é uma ferramenta fundamentada no princípio da dignidade da pessoa humana e tem validade e aplicação reconhecidas e regulamentadas por uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Em geral, o documento apresenta um conjunto de desejos, previa e expressamente manifestados pelo paciente sobre os cuidados e tratamentos que quer ou não receber no futuro, quando estiver incapacitado de expressar livre e autonomamente sua vontade. Os profissionais envolvidos devem respeitar esses desejos, desde que não contrariem o Código de Ética Médica.

Além disso, nesse instrumento são estabelecidos poderes para representação patrimonial do testador, para serem seguidos enquanto estiver em uma situação de reconhecida incapacidade para se manifestar.“É similar a uma procuração que tem eficácia quando reconhecida a incapacidade da pessoa em se manifestar plenamente”, detalha Jorge Augusto.

A adesão a esse instrumento cresceu no Brasil desde que foi regulamentado pelo CFM e diante dos novos contornos que o tema ganhou diante da pandemia. Entre 2012 e 2021, o total de DAVs subiu de 233 para 781, um crescimento de 235%.  

O advogado explica que, apesar de regulamentadas, a falta de legislação pode trazer alguns entraves no reconhecimento de DAVs no Brasil. Mesmo assim, aos moldes de outros países, elas podem ser fundamentais — e únicas — para preservar a autonomia da vontade do testador e também tirar o peso da responsabilidade de familiares sobre decisões em relação a um familiar em um momento difícil.

“Temos visto que as instituições aceitam o testamento vital, mas sei que elas podem, de alguma maneira, impugnar isso, caso resolvam não aceitar esse documento, com o argumento de falta de legislação específica regulamentando sua existência”, aponta Jorge Augusto, destacando o essencial acompanhamento de profissionais que entendam da ferramenta e dos princípios legais que fundamentam sua existência visando evitar esses questionamentos.

Testamentos internacionais

Quando o indivíduo possui bens no exterior, o ideal é elaborar um testamento específico no país onde o patrimônio está custodiado para evitar disputas e questionamentos posteriores.

“Caso não seja feito esse instrumento local, normalmente é possível apresentar o testamento brasileiro, mas este terá que ser  validado — e traduzido — para ter efeitos lá fora, o que pode demandar tempo e dinheiro. Além disso, muitas vezes, as regras de elaboração são diferentes, ou seja, é melhor tratar cada um dentro da sua especificidade”, detalha Bruno Fediuk de Castro, sócio da Domingues Sociedade de Advogados e especialista na gestão jurídica de patrimônio no exterior.

Um exemplo dessas diferenças está na forte proteção legal dada pelo Brasil aos  herdeiros necessários, limitando a vontade do testador. Em muitos países, essa proteção é menor ou inexistente, permitindo maior liberdade na disposição dos bens.

Chamado de “will” em alguns países, como nos Estados Unidos, em que a ferramenta é amplamente utilizada, em geral, o testamento feito fora do Brasil também exige menos formalidades na estruturação e para validação posterior.

“De qualquer forma, é importante descrever bem quais ativos serão objeto do testamento, as vontades do testador, e indicar aqueles que ficarão responsáveis por cumprir com as decisões ali descritas e as condições desejadas”, aponta Bruno Castro.

Nereu observa ainda que o testamento pode tornar muito mais rápido o acesso dos bens do falecido pela família, no caso de empresas constituídas no exterior, por exemplo. “Evita uma dor de cabeça bem grande e até a perda de dinheiro com os bens parados lá fora sem gestão adequada”.