O Brasil é o país com maior carga tributária para empresas, de acordo com levantamento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo de países com economias mais desenvolvidas. Nesse contexto, as estratégias de offshores se tornam mais atrativas para quem possui grandes somas de dinheiro.
O Ministro da Economia Paulo Guedes, que fez boa parte de sua fortuna apostando em planos econômicos, tem uma offshore milionária em paraíso fiscal, tendo depositado em novembro de 2014 US$ 9,5 milhões em uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas. Já o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também possui recursos financeiros no exterior. As informações foram reveladas pela série de reportagens batizadas de "Pandora Papers".
Ambos os valores foram declarados às autoridades governamentais, mas por se tratar de uma realidade muito distante da maioria dos brasileiros, a questão ensejou diversas confusões e narrativas políticas em relação a eventuais crimes decorrentes da prática. Tire suas dúvidas a seguir:
1- O que é um paraíso fiscal?
Os paraísos fiscais são locais onde empresas, empresários, family offices e indivíduos super-ricos mantêm dinheiro em contas offshore para fazer elisão fiscal, evitando impostos, além de diversos outros benefícios possíveis.
Também conhecidos como centros financeiros offshore (OFCs), esses paraísos fiscais geralmente são jurisdições pequenas e de baixa tributação em locais remotos, como em determinadas ilhas do Caribe. Esses países ou regiões buscam atrair ativos financeiros por meio de políticas cambiais estáveis, poucos impostos, desburocratização, poucos controles e, principalmente, alto compromisso com o sigilo.
2- Quais os principais paraísos fiscais do mundo?
Entre os principais países considerados paraísos fiscais pode-se citar Bermudas, Malta, Mônaco, Irlanda, Luxemburgo e Ilhas Virgens Britânicas — o país que sedia a offshore de Guedes.
3- O que é uma offshore?
O termo vem do inglês e significa “afastado da costa” ou “além da fronteira”. Trata-se de uma organização ou conta bancária em território estrangeiro, com o objetivo de aproveitar os benefícios fiscais de regiões consideradas tax friendly (com taxas favoráveis), via de regra abaixo de 20% da renda dos envolvidos, ou até mesmo de isenção total, atraindo investidores e empreendedores.
4- A prática de ter uma offshore é lícita?
A criação de uma empresa offshore em qualquer paraíso fiscal não constitui per si evasão fiscal (descumprimento no pagamento de impostos) ou lavagem de dinheiro.
5- Ter uma offshore é uma prática comum?
De acordo com relatório do Institute on Taxation and Economic Policy, entre as companhias que integram a Fortune 500, lista anual da revista Fortune que contém as 500 maiores corporações dos Estados Unidos por receita total, há ao menos 366 que operam uma ou mais subsidiárias em países paraísos fiscais.
E, assim como as grandes corporações, os indivíduos podem tirar proveito das brechas financeiras que os países estrangeiros oferecem.
6- É preciso ter muito dinheiro para criar uma offshore?
“Não existe almoço grátis”: criar uma offshore envolve muitos custos operacionais, o que significa ser necessário um determinado montante patrimonial a fim de compensar a operação.
Algumas instituições financeiras oferecem o serviço de offshore a partir de US$ 250 mil, o equivalente a R$ 1,369 milhão na cotação desta terça-feira (5).
Contudo, é possível realizar as chamadas aplicações offshore em valores muito inferiores, isto é, em ativos atrelados à bolsas internacionais, ou mesmo renda fixa, a partir de fundos de investimentos. Os valores variam entre R$ 500 e R$ 5 mil para aplicação em fundos como da Western, Pimco, Dahlia Global, Mobius Emerging Market.
7- Quais os benefícios de se ter uma offshore?
Há diversos benefícios pelos quais tantos indivíduos buscam ter uma offshore.
A mais comum de ser citada é a redução ou isenção de impostos, isto é, trata-se de um mecanismo de elisão fiscal. Os impostos reduzidos nos países de destino propiciam maiores ganhos em seu empreendimento, permitindo gerar e multiplicar riquezas, assim como expandir negócios.
Além disso, as offshores facilitam a sucessão familiar, como parece ser o caso da modalidade de Paulo Guedes, em favor de sua filha Paula Drumond Guedes e de sua esposa Maria Cristina Bolívar Guedes.
Quando se trata de transmitir posses de bens e empresas, a offshore permite que o processo seja mais fácil e ágil por não fazer parte do inventário, com as cotas de direito do fundador do negócio sendo transferidas para seu sucessor.
Naturalmente o patrimônio é convertido para uma moeda considerada mais forte, confiável e estável do que o Real (R$), via de regra dólares ou euro.
Na última década, por exemplo, o Real passou a valer um terço do que valia em relação ao dólar. Além disso, dólar e euro também possuem maior liquidez no mercado cambial, o que contribui para facilitar depósitos e investimentos com maior liberdade e facilidade.
As offshores são modalidades jurídicas que contribuem também para maior privacidade ao garantirem o sigilo dos titulares. Além disso, os beneficiários não precisam se identificar e participar das negociações para a composição de uma offshore, podendo indicar um responsável legal para tanto.
As offshores se estabelecem em países considerados mais estáveis, isto é, com juros mais baixos, que conferem aos financiamentos taxas mais baixas do que as brasileiras, o que pode ajudar na capitalização de alguns negócios. E, por fim, a depender da localização, há maior facilidade de acesso a outros mercados pelo mundo.
Portanto, uma offshore protege os ativos, simplifica a gestão de seu patrimônio geral e conta com condições tributárias mais favoráveis, podendo os beneficiários serem tanto pessoas físicas quanto jurídicas.
8- Se ter offshore é legal, qual o possível problema?
O artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal proíbe funcionários do alto escalão de manter aplicações financeiras, no Brasil ou no exterior, passíveis de ser afetadas por políticas governamentais. A proibição não se refere a toda e qualquer política oficial, mas apenas àquelas sobre as quais “a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função”.
Para evitar isso, toda autoridade que integrará a equipe ministerial preenche uma detalhada Declaração Confidencial de Informações, em que lista patrimônios, e eventuais conflitos de interesse. Ela é encaminhada ao Conselho de Ética da Presidência, analisada e julgada.
Paulo Guedes afirmou à Comissão de Ética Pública da Presidência, em maio de 2019, que adotaria medidas para “mitigar ou prevenir” conflito de interesses enquanto estivesse no comando da pasta. A Comissão lhe recomendou “manter inalteradas as posições de seus investimentos durante todo o exercício do cargo”.
Uma prática comum de quem assume cargos notáveis na administração pública é o de colocar os recursos sob a administração de fundos sobre os quais os titulares não possuem interferência, retomando o controle apenas após a saída do cargo. A operação é conhecida como “blind trust”.
Não há informações reveladas pelo Pandora Papers se houve movimentações patrimoniais nesse sentido.
9- Houve conflito de interesses na proposta de reforma tributária?
A declaração de Guedes em julho de apoio à retirada de aumento de tributação para offshores em trâmite no Congresso foi apontada como conflito de interesses. Contudo, é preciso analisar em maior profundidade para compreender a questão.
Inicialmente porque a redação que incluía a medida foi proposta no âmbito da chamada 2ª fase da reforma tributária, encaminhada em 25 de junho deste ano pelo próprio Ministério da Economia à Câmara dos Deputados. Ela propunha o aumento de alíquota para pessoas físicas que detinham investimentos em paraísos fiscais e regimes privilegiados, que passaria para 30%. Isso ocorreria independentemente de efetiva distribuição de resultados, e eventuais variações cambiais positivas também seriam tributadas.
Ou seja, esses elementos da proposta original em tese prejudicam a parcela do patrimônio de Guedes nas Ilhas Virgens, mas foram propostas pelo próprio Ministério que ele comanda.
Contudo, diversos pontos da reforma não foram bem recebidos entre os líderes partidários da Câmara, e o deputado relator Celso Sabino (PSDB/PA) negociou e apresentou mudanças no texto em busca de sua aprovação. E não foram poucas, mas quase duas dezenas de relatórios apresentados até a aprovação pela Casa na primeira semana de setembro. As mudanças em relação às offshores ocorreram já em julho, tal como questões como a tributação de dividendos distribuídos por Fundos Imobiliários para pessoas físicas.
Diante da repercussão negativa inicial, Guedes pormenorizou em 22 de julho as mudanças no texto. “Eu sou um democrata, estou tentando ajudar. Não deu, vamos esperar a próxima, fazer outro dia, outra chance, no futuro, talvez, quem sabe".
10- Há conflito de interesses de Paulo Guedes com o aumento do dólar?
O Real foi uma das moedas que mais se desvalorizaram frente ao dólar desde 2020.
Como Guedes possui parte do patrimônio dolarizado em offshores, uma das críticas e possíveis narrativas sustentadas é que houve decisões de políticas monetárias e públicas que prejudicaram a maior parte da população, mas causaram benefício próprio.
A despeito de parcela do câmbio ser influenciada em virtude de questões domésticas, como o Credit Default Swap (CDS), conhecido como Risco País, a maior parte do peso dessa equação é medida pela diferença entre a taxa de juros do Brasil com a taxa de juros praticada pelo Banco Central da outra moeda negociada. Dessa forma, diante da pandemia e da queda histórica da Selic para 2%, o Brasil passou a ter juros negativos (inflação maior do que a Selic), o que desestimulou investidores a manterem montantes no país e desvalorizou o Real.
Vale ressaltar que a taxa de juros é definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom), que se reúne oito vezes por ano e é composto pelos oito membros da Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil, e presidido pelo presidente do Banco Central, que tem o voto de qualidade.
Em fevereiro de 2021 foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro projeto de lei de autonomia do Banco Central a fim de mitigar influências do governo na política monetária. A medida teve apoio do Ministro Paulo Guedes.
Além disso, vale ressaltar que o Código de Conduta proíbe apenas os investimentos em "moedas para fins especulativos", mas ao que se sabe até o momento, não havia gestão ativa dos valores da offshore, tampouco decisões embasadas em informações privilegiadas.
Além disso, a distribuição de parcela do portfólio de investimentos em ativos dolarizados é uma prática comum do mercado, com ou sem offshore.
Trata-se do chamado hedge, uma estratégia que busca proteger operações financeiras a grandes variações de preços. A ideia é proteger o investidor do chamado risco de mercado, diminuindo a exposição do patrimônio a grandes volatilidades de determinados ativos.
Assim, se houver depreciação de uma parte da carteira exposta ao Brasil, comumente parcela dos investimentos atrelados ao dólar e ao exterior se valoriza, compensando em parte os prejuízos e equilibrando o montante total.
Além de possuir ativos atrelados ao dólar, investimento em Ouro e até criptomoedas são outros exemplos comuns de hedge a depender do perfil do investidor e do momento do mercado.
11- Há conflito de interesses na assinatura da resolução do CMN?
Em 30 de julho de 2020 Paulo Guedes e Campos Neto assinaram as resoluções da CMN 4.841 e 4.844 e aumentaram de US$ 100 mil para US$ 1 milhão o valor mínimo a partir do qual remessas ao exterior devem ser informadas ao Banco Central.
Também foi modificado o valor mínimo que os estrangeiros podem movimentar em recursos bancários no Brasil sem precisar de declarações específicas, de R$ 10 mil para R$ 100 mil.
Essas questões foram apontadas como possível conflito de interesses, mas a justificativa oficial é que não havia atualizações em relação a esse piso desde 2004 e que ela permite reduzir o custo de monitoramento do Banco Central sem prejudicar o controle. “O poder público continua com acesso às informações detalhadas de ativos de brasileiros no exterior caso haja alguma suspeita”, justificou a instituição à época da alteração.
12- Houve casos semelhantes no passado?
Entre casos públicos brasileiros na última década, destaca-se o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, que criou offshore por razões fiscais e tributárias a fim de comprar um apartamento em Miami em 2012 no valor de US$ 335 mil.
O ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles e o ex-ministro da Justiça do governo Lula Marcio Tomaz Bastos utilizaram o blind trust para evitar conflitos de interesses enquanto estavam na Administração Pública. Não houve quaisquer irregularidades nestes casos.
Já o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega é investigado pela Operação Lava Jato por manter quase US$ 2 milhões em contas não declaradas na Suíça. Em abril de 2021, a 2ª Turma do STF decidiu que a Vara de Curitiba não era o foro competente para julgar Guido Mantega, remetendo esse processo para a Justiça Federal do Distrito Federal.
13- O que deve acontecer daqui para frente?
Nesta segunda-feira (4), o procurador-geral da República, Augusto Aras, determinou a instauração da apuração preliminar sobre o caso. Nessa fase do procedimento, serão recolhidas mais informações sobre o caso, incluindo a apuração do pedido de esclarecimento a Guedes e Roberto Campos Neto.
A oposição conseguiu aprovar nesta terça-feira (5) requerimento para convocação de Paulo Guedes na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados. A proposta foi apresentada pelos deputados Kim Kataguiri (DEM-SP) e Paulo Ramos (PDT-RJ). A data da audiência ainda não está marcada, mas por ter sido convocado, o ministro é obrigado a comparecer.
O PSOL também começou o recolhimento de assinaturas para criação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso.
Já o PT apresentou requerimento nesta terça (5) de convocação de Guedes para prestar esclarecimentos à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado sobre a manutenção de offshores em paraísos fiscais.
Eventuais consequências práticas parecem depender do surgimento de fatos novos, de acordo com avaliação da consultoria política Arko Advice.
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