‘13 Reasons Why’, série da Netflix lançada no final de março e focada em temas como bullying e suicídio adolescente, criou um debate intenso sobre a maneira como o assunto é abordado. Enquanto parte da população elogia a iniciativa de promover uma discussão pública sobre um tema ainda tabu, a maioria dos especialistas aponta para outra direção: o risco de romantizar o ato de tirar a própria vida, que pode influenciar jovens a imitar Hannah Baker, protagonista da série, no fenômeno conhecido como “copycat effect”.
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Ao longo dos anos, pesquisas psiquiátricas vêm mostrando consistentemente uma relação entre a representação – em contextos como o noticiário e a cultura pop – e um aumento no índice de suicídios como um todo. Para estudiosos, o ponto central soa óbvio: não há problema algum em a sociedade discutir o “suicídio”. Isso é extremamente positivo e ele é, sim, uma questão de saúde pública. Mas a forma como a pauta é abordada também é fundamental: 13 Reasons Why pouco auxilia nessa discussão.
“Não é uma questão simples, de causa e efeito. A série é simplista. Uma das recomendações básicas da OMS ao retratar o suicídio em obras de ficção é que não se deve atribuir culpas. Hannah coloca culpa em todos: colegas, escola... É algo muito maniqueísta”, diz Osmar Ratzke, presidente da Associação Paranaense de Psiquiatria (APPSIQ).
Problema global
Para além da opinião sobre a qualidade artística da série, uma questão levantada com insistência é o perigo que um roteiro como este gera sobre um público jovem e ainda imaturo, que muitas vezes não pôde discutir suas dificuldades com um adulto: segundo dados do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, cerca de 50% dos quadros clínicos de doença mental, que podem levar ao suicídio, começam ainda na adolescência (aos 14 anos) e 75% dos casos têm início antes dos 24 anos de idade.
Dados complementares
- Cerca de 800.000 pessoas morrem de suicídio por ano
- O número de suicidas em potencial é muito mais alto: estima-se que, para cada adulto que morreu por suicídio, há outras 20 pessoas que tentaram e sobreviveram.
- É a 2ª principal causa de morte entre jovens (15 a 29 anos)
- 1,7% das mortes do mundo são por suicídio (17ª causa)
Para Michael Carr-Gregg, especialista em saúde mental na infância e adolescência da Sociedade Psicológica Australiana, os jovens estão expostos diariamente a diferentes situações que “romantizam, glamorizam, sanitizam e normalizam o suicídio”. Ao mesmo tempo, o risco do bullying e a sensação de deslocamento podem ser potencializados por uma vida cada vez mais conectada. “Quando se tem esse universo digital onde a batalha de selfies ocorre o dia inteiro, é difícil se ver como normal”, argumenta, em entrevista à Gazeta do Povo.
Dados de pesquisas recentes são bastante claros: de acordo com Steven Stack, professor do departamento de psiquiatria e neurociência comportamental da Wayne State University, nos EUA, mais de metade das pessoas que tentaram suicídio afirmam terem sofrido bullying na internet. Ele então acaba servindo como um gatilho a mais, não como causa isolada, para quem já possui problemas prévios. “Pode-se argumentar que quem tentou suicídio estava mais deprimido, ou tinha outras desordens mentais, usava mais drogas, e assim por diante. Mas mesmo considerando estes e outros fatores sócio-demográficos, as vítimas de bullying eram 52% mais aptas a tentar tirar a própria vida do que quem não havia sofrido com isso”, destaca.
Se é verdade que o tema do suicídio ainda é pouco discutido no espaço público, a questão é que a forma sobre como fazer essa discussão – na mídia e na cultura – também é determinante nos efeitos que ela gera sobre a sociedade. Segundo Dan Raidenberg, co-presidente da International Media and Suicide Task Force, “o contágio do suicídio a partir de notícias em meios de comunicação é real”.
O chamado suicídio imitativo é particularmente impulsionado pelo grau de detalhe utilizado nos textos ou nas reconstituições em vídeo, que pode acabar incentivando novos casos. “O aumento nos casos tem a ver com a frequência das notícias, sua colocação, imagens, detalhes dos meios utilizados e a linguagem utilizada”, afirmou Raidenberg recentemente durante um evento da OMS.
Diversas pesquisas provam não ser possível negar que a reprodução de modelos ou comportamentos suicidas expostos na mídia é um problema real. “Existe evidência substancial de que algumas pessoas expostas a modelos suicidas na mídia copiam esse comportamento”, declara Stack que, em um estudo compilando mais de 50 pesquisas diferentes sobre os efeitos da mídia em produzir novos suicídios, mapeou os tipos de representações mais perigosas no sentido de impulsionar novas mortes.
A literatura médica também demonstra que suicídios de celebridades aumentam em 5,27 vezes mais as chances de provocar o “copycat effect” após aparecerem na mídia, e suicídios de mulheres também geram um importante efeito imitativo – um aumento de 4,89 vezes. Por outro lado, quando o tema é abordado de forma responsável e apresenta o suicídio sob uma luz negativa, estudos apontam uma redução em 99% dos casos quando comparados às demais notícias e representações de violência autoinfligida.
Aparece, então, a diferença clara entre um debate que conscientiza a respeito do suicídio e um que nasce da sua glamorização. “O suicídio [gerado pelo copycat effect] resulta de um excesso de definições positivas frente às definições negativas a respeito dele próprio”, resume Stack, que faz o alerta: “definições positivas incluem cobertura sensacionalista, a glorificação da pessoa morta, o foco em aspectos positivos da vítima e as racionalizações”.
Ainda segundo o psiquiatra, a busca por racionalizar os motivos do suicida, quando é feita em um espaço público como a mídia e a cultura pop, ajuda a legitimar o suicídio aos olhos de pessoas vulneráveis que já estariam considerando tirar a própria vida, funcionando então mais como validação de um modelo de comportamento, do que com um canal catalisador de uma reflexão.
O suicídio na cultura pop
A Organização Mundial da Saúde (OMS) mantém uma cartilha para jornalistas exercerem o que considera a forma “responsável” de reportar: entre as recomendações, a OMS indica o uso de uma linguagem que não apresente o suicídio como normal ou como solução, pede que não sejam dados detalhes sobre o lugar ou o método suicida, e adverte sobre a necessidade de não reportar com frequência esse tipo de casos. Insistindo no ponto levantado por Stack, a OMS também diz que a apresentação de um caso de suicídio, caso seja necessária, deve ser encarada como uma oportunidade de conscientização, e sempre vir acompanhada de informações sobre onde procurar ajuda.
Mas o risco não se resume ao factual: o “copycat effect” também pode ser gerado por obras de ficção. Antes de 13 Reasons Why, talvez o filme mais próximo que tenha gerado relativa repercussão sobre o tema foi “Sociedade dos Poetas Mortos” – a crítica ali foi pela mesma romantização, embora mais suave, além da atribuição da culpa; o filme estrelado por Robin Williams, porém, não trazia um grafismo didático do ato do suicídio em si.
A preocupação dos especialistas é que o seriado da Netflix possa causar um efeito de imitação no mundo real, conhecido como “efeito Werther”, nome inspirado no protagonista do livro “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, publicado em 1774.
A popularidade da obra, cujo personagem se mata em decorrência de um amor impossível, desencadeou na Europa uma série de suicídios na época de sua publicação. No entanto, também é inegável diferença de alcance quando comparamos pessoas com acesso à literatura na Europa dos séculos XVIII e XIX e jovens com acesso ao Netflix em 2017: estima-se que apenas 38% dos alemães soubessem ler quando Goethe publicou o livro, dentro de uma população estimada de 17 milhões de pessoas; já o Netflix possui mais de 100 milhões de assinantes ao redor do mundo, enquanto aproximadamente 60% da população brasileira, hoje ultrapassando a casa dos 200 milhões, possui acesso à internet.
Guia suicida
Obras que demonstram como cometer um ato suicida são ainda mais perigosas. Em 1991, o jornalista americano Derek Humphry publicou Final Exit, guia explícito que buscava ensinar doentes terminais a provocarem a própria morte – em uma espécie de eutanásia de si mesmos. Pouco tempo antes, Humphry havia ajudado sua esposa, Jean, a se suicidar com uma overdose de medicações após longa batalha com um câncer incurável.
Final Exit foi duramente criticado por especialistas por servir de guia não apenas para doentes terminais, mas para qualquer pessoa com tendências suicidas que comprasse o livro: no ano seguinte à publicação, o índice de mortes auto-infligidas aumentou 313% em Nova York – e em mais de um quarto dos casos um exemplar do livro foi encontrado na cena do suicídio. Uma das cenas mais criticadas de 13 Reasons Why, a morte de Hannah Baker, é acusada de poder exercer o mesmo efeito: servir de “guia didático” para novos suicídios, devido à riqueza de detalhes com que é exibida.
Dados sobre saúde mental
- 90% dos que morrem por suicídio tinham algum tipo de doença mental
- 50% dos casos de doença mental começam aos 14 anos, 75% até os 24
Fonte: National Institute of Mental Health dos EUA
A série ainda vai além: é criada em uma linguagem para ser acessível a jovens entre 13 e 24 anos, uma narrativa com a qual facilmente eles podem criar algum tipo de identificação. É um seriado esteticamente interessante para o “público” com maior tendência ao suicídio. Além, claro, de algo extremamente acessível a eles – muito diferente de “Os Sofrimentos do Jovem Werther”.
“Passei por diversas situações retratadas pelo seriado e me senti muito mal por relembrá-las. Não vejo benefícios para pessoas que tenham problemas semelhantes aos expostos, e que eventualmente se identifiquem com Hannah”, diz A. R., 26 anos, que tentou o suicídio aos 19. “Me imaginei assistindo ao seriado cinco anos atrás, e o quanto isso seria perigoso para minha saúde”, completa.
Mais nocivo do que você imagina
O que 13 Reasons Why faz é justamente o que os especialistas consideram nocivo. “É chocante no sentido de que ela cria o contraste entre algo muito trágico e um glamour da vida, do ambiente. Mas esse contraste, na realidade, é meramente cinematográfico”, pondera Osmar Ratzke, presidente da (APPSIQ). Para ele é preciso esclarecer que o ato de “romantizar” nem sempre se refere a algo positivo: “A trilha sonora é bonita, toda a narrativa é romantizada. O ato de gravar fitas suicidas é extremamente romântico e todos esses elementos facilitam com que pessoas com reais problemas logo se identifiquem”.
Outro grave problema apontado é a linha narrativa, afinal, por quase metade da série, Hannah Baker é retratada como uma jovem normal, com problemas inerentes e normais para qualquer jovem: o que acontece por si só nos seis primeiros capítulos de 13 Reasons Why dificilmente induziria alguém como Hannah, sem nenhum distúrbio psiquiátrico claro, ao suicídio – mas a morte aparece como “solução” clara para a própria Baker desde o início do seriado.
“É estatístico e cientificamente comprovado que em cerca de 90% dos casos há uma patologia mental por trás: o que acontece na primeira metade de 13 Reasons Why são problemas comuns a todo e qualquer adolescente, que serviriam como catalisador para alguém com alguma patologia prévia, mas raramente como fator único”, diz Ratzke.
O próprio gatilho
O Brasil é o oitavo país do mundo com mais suicídios, em números absolutos, e vem experimentando um aumento nas últimas décadas: entre 1990 e 2012, o total de suicídios reportados no país aumentou em 33,3% - crescimento que atingiu todas as faixas etárias, segundo dados do Mapa da Violência.
Nesse contexto, o Centro de Valorização da Vida (CVV), principal lifeline do país, relatou crescimento de 450% no número de atendimentos após o lançamento da série. Especialistas, porém, questionam enxergar esse aumento apenas como algo positivo: da mesma forma que ele mostra que pessoas que antes não sabiam onde poderiam buscar ajuda conseguiram encontrar um lugar, ele também pode indicar uma parcela de pessoas que talvez não estivessem contemplando essa possibilidade e passaram a considerá-la.
“Ressalto que o trabalho do CVV é extremamente sério e ele precisa ser divulgado, as pessoas que sentirem necessidade podem e devem procurá-los, mas agora não vamos conseguir medir o outro lado, o efeito negativo”, analisa o presidente da APPSIQ.
Dados sobre saúde mental do National Institute of Mental Health dos EUA ratificam essa sensação: segundo o órgão, 10 anos é o tempo médio entre o início dos sintomas e algum tipo de intervenção médica. De qualquer forma, profissionais da área de saúde de Curitiba já lidam com este problema. A reportagem ouviu três profissionais - médicos e enfermeiros - que trabalham com Pronto Atendimento na capital paranaense. Todos foram taxativos: abril apresentou um aumento significativo de casos de tentativas de suicídio – que também podem estar atrelados ao polêmico “Jogo da Baleia Azul”.
“Se antes, durante um final de semana normal, nos deparávamos com uma ou outra situação neste mês, em alguns dias lidamos com sete ou oito situações que apresentavam indícios claros de tentativas de suicídio”, explica um profissional que pediu sigilo.
Panorama nacional
Brasil
6 suicídios por 100.000 habitantes (2015)
Série histórica: 5,9 em 2010; 6,2 em 2005; 5,6 em 2000.
Mulheres: 2,7 por 100.000
Homens: 9,6 por 100.000
*Homens morrem mais não porque tentem se matar mais, mas porque empregam métodos mais agressivos (mulheres são mais afeitas a técnicas com chance de “erro”, como overdose de pílulas, enquanto homens usam mais armas, por exemplo).
Estudo feito pelos pesquisadores Daiane Borges Machado e Darci Neves dos Santos, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com base em diferentes dados de mortalidade no Brasil entre 2000 e 2012 traçou um perfil dos suicídios no Brasil: no país, ainda são os mais velhos que provocam a própria morte com mais frequência – o índice de suicídios acima dos 59 anos é 29% superior à média da população.
Em geral, a maior proporção de mortes ocorre entre homens (que morrem 3,5 vezes mais que as mulheres), os menos escolarizados e os indígenas, cujo índice de suicídios é 132% superior à população geral. A região Sul lidera o país em mortes auto-infligidas, com uma taxa de 9,8 a cada 100 mil habitantes (a média brasileira é 6,0 em 100 mil), mas contraria a tendência nacional e está reduzindo o número de suicídios.
É importante ressaltar que, embora tenha havido um aumento nas mortes em números absolutos, a proporção de suicídios tem ficado estável desde 2000, quando se considera a taxa de mortes por 100 mil habitantes.
Causas e consequências
Em sua cartilha anual de recomendação para a prevenção do suicídio, a OMS aponta as 15 causas mais frequentes observadas no mundo. Abuso de álcool e drogas, luto ou transtornos mentais como esquizofrenia estão entre os fatores que mais levam à retirada da própria vida. A depressão continua sendo a causa número um, proeminente em todas as faixas etárias e sexos, e independentemente dos hábitos cotidianos. De qualquer forma, especialistas não consideram que haja um “culpado”; o suicídio é, em última instância, uma decisão do próprio suicida.
“Não temos dados efetivos sobre quantas pessoas estão em risco real de suicídio. Mas podemos afirmar que não se atribui culpa, não se buscam culpados palpáveis”, diz Osmar Ratzke. “Em 13 Reasons Why, os motivos citados são externos à pessoa. São casualidades externas que ajudam a piorar a situação, mas precisa existir um problema interno que foi inexplorado pela série. É um tema complexo, cheio de tabus e que precisa ser tratado com responsabilidade e auxílio de profissionais especializados”, conclui.
Prevenção ao suicídio no Brasil:
CVV – Telefone 141
OBS: têm circulado correntes nas redes sociais falando para as pessoas compartilharem o número 0800-273-8255 – esse número não funciona; ele é de uma lifeline americana. No Brasil, deve-se ligar para o CVV.
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