O dia 13 de maio é celebrado como o Dia da Abolição da Escravatura. Ainda que antes da Lei Áurea diversas legislações já tivessem mitigado a escravidão no Brasil e ainda que os movimentos abolicionistas no país tivessem ganhado cada vez mais força, ela marcou o fim de um dos capítulos mais tristes da história brasileira.
Quatro legislações aprovadas foram responsáveis por diminuir o contingente de escravos no Brasil antes de 1888, apesar de sua aplicação ser muitas vezes prejudicada.
A primeira delas veio em 1850 e proibiu o tráfico negreiro, sendo chamada de Lei Eusébio de Queirós. Embora sua aplicabilidade tenha sido restrita, a fiscalização aumentou gradativamente e, sobretudo a partir da década de 1870, houve redução considerável do transporte de negros escravizados para o Brasil. Todavia, o tráfico interno permaneceu.
Outra legislação veio em 1871, chamada de Lei do Ventre Livre. Ela determinava que os filhos de escravos nascidos a partir daquela data eram livres. Sua aplicabilidade também teve problemas, já que as opções eram o envio da criança para o governo ou mantê-la na propriedade dos “donos” da mãe. Como se alimentavam e viviam nessas propriedades, as crianças criavam dívidas que seriam pagas com trabalho após atingirem a maioridade.
Já a Lei do Sexagenário, de 1885, estabeleceu a liberdade para os escravos que completassem 60 anos. Em um período histórico em que a expectativa de vida era a metade desta faixa etária, a lei teve poucos efeitos práticos. Simbolicamente, porém, a lei foi relevante, já que os debates parlamentares faziam a causa abolicionista se tornar cada vez mais popular no debate público.
O único censo disponível a registrar o tamanho da população escrava no Brasil é o de 1872. À época, o contingente da escravatura já havia sido reduzido e 15% da população era escrava. Entre a população negra, contudo, mais de um quarto ainda eram escravos.
Dessa forma, a Abolição da Escravatura veio quando os escravos já eram minoria. A despeito disso, não deixa de ser, talvez, a reforma mais liberal que o país já teve.
É como analisa Leandro Narloch, autor de “Escravos: A vida e o cotidiano de 28 brasileiros esquecidos pela história”:
“No século 18, muitos intelectuais (entre eles John Locke, o pai do liberalismo) defenderam que o indivíduo deve ser dono de seu próprio corpo, das suas escolhas e dos frutos do seu trabalho (ou seja, do seu dinheiro). A liberdade para viver e trabalhar como cada um deseja é, desde então, o cerne do liberalismo. O indivíduo é um fim em si mesmo, não pode ser meio para nada - nem para a riqueza do dono da fazenda, tampouco para a construção de uma sociedade socialista. Nada mais contrário a isso que a escravidão, que negava aos negros (e a muitos outros povos que foram vítimas dela na história) a propriedade de si mesmo. Ao acabar com isso, a Lei Áurea foi um enorme avanço liberal no país. Não à toa, diversos abolicionistas eram próximos de ideias liberais, incluindo Luís Gama, filiado ao Partido Liberal Radical”.
À própria sorte
A visão é relativizada pelo Conselheiro da Educafro e autor do e-book “13 de Maio: A Maior Fake News de Nossa História”, Irapuã Santana, para quem a legislação veio de forma tardia — o Brasil foi o último país do Ocidente a acabar com a escravidão:
“Na medida em que houve liberação dos escravos, sem que eles tivessem acesso a propriedades ou educação — que são questões básicas para desenvolver sua identidade — [a abolição] foi uma reforma incompleta e imperfeita: de um lado você liberta os indivíduos, mas de outro não confere possibilidades de eles ascenderem socialmente. Que tipo de política pública foi essa?”. Ele defende que era necessário dar outras saídas aos ex-escravos a fim de que eles pudessem ter uma vida minimamente digna.
Entre as críticas constam a de que a não houve indenização aos ex-escravos, uma proposta legislativa discutida na época, bem como uma compensação pecuniária aos ex-proprietários, algo visto como justo por parte da população.
Além disso, o ambiente de deixar os ex-escravos à própria sorte começou a ser moldado quase quatro décadas antes da abolição da escravatura. A Lei de Terras de 1850 instituiu que nenhum imóvel poderia ser apropriado por intermédio do trabalho: apenas pela compra deste imóvel do Estado. Além de impedir que ex-escravos obtivessem posse de terras por meio do trabalho, a legislação ainda previu subsídios governamentais para a vinda de migrantes, desvalorizando ainda mais a mão de obra de negros libertos. Por consequência, os ex-escravos não poderiam cultivar a terra, tampouco tinham dinheiro para comprá-la diretamente da Administração Pública.
“Eles foram relegados à categoria de sub-indivíduos: lhes negaram o direito básico do liberalismo, a propriedade”, critica Santana.
Vale ressaltar que os ex-escravos não puderam ter acesso à educação formal para se capacitarem e entrarem no mercado de trabalho. Contextualizando, porém, de de acordo com o mesmo censo de 1872, 85% dos brasileiros eram analfabetos. O Brasil Imperial era mais pobre que a Somália atualmente.
Narloch relativiza a eficácia de uma medida como a distribuição de terras que poderia ter sido feita aos escravos. “Ganhar terras no interior de Santa Catarina, cercadas de tribos indígenas, de difícil acesso, já que não havia estradas, era como ganhar um hectare de terra no meio da Amazônia de hoje: não faria tanta diferença”, sugere.
Ele sustenta que a maior prosperidade verificada pelos povos migrantes se deu mais por eles chegarem ao Brasil com alguma educação formal e com conhecimento de técnicas de produção. Outra tese levantada por ele e que pode ter atrapalhado os negros e também descendentes de portugueses mais tradicionais no Brasil tem relação com a cultura do trabalho.
“Havia um preconceito com quem trabalhava: a escravatura criou a ideia por aqui que ‘gente esperta não trabalha e não carrega peso’. Isso fez mal tanto aos negros quanto aos senhores de escravos, os donos deles. Há relatos de migrantes falando como os brancos brasileiros eram preguiçosos: quando chegaram japoneses, alemães, italianos e poloneses por aqui, eles trouxeram uma cultura de trabalho enorme, com uma ideia mais ou menos assim: ‘enquanto a gente descansa, vamos cortar uma lenha?’. Isso certamente ajudou essas pessoas a ascenderem mais rapidamente também”, diz.
Não há dúvidas de que muitas das desigualdades e dificuldades verificadas pelos negros no Brasil mesmo após 131 anos da Lei Áurea têm origem histórica a partir da opressão permitida pelo Estado brasileiro. O abolicionista liberal Joaquim Nabuco foi certeiro ao escrever em sua autobiografia de que “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Mas tudo isso não tira o mérito do 13 de Maio, que pôs fim à instituição mais perversa da história do país.