Há 55 anos, às 3h45 da madrugada de 2 de abril de 1964, uma quinta-feira logo após a Páscoa, o presidente do Congresso Nacional, o senador Auro Moura Andrade, declarou a vacância da presidência da República. Acompanhado do presidente do Supremo Tribunal Federal, Álvaro Ribeiro da Costa, Moura Andrade deu posse ao presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli. Tinha início assim o regime militar.
Mazzilli seria mantido no cargo apenas até o dia 11 de abril, quando o Congresso Nacional elegeu o marechal Castelo Branco. Apenas 21 anos depois, em 1985, um civil voltaria a assumir a presidência. Ao longo deste período, o Congresso foi fechado três vezes e o governo passou a governar utilizando Atos Institucionais.
Nossas convicções: O valor da democracia
Em 2013, essa sessão do Congresso foi anulada quando o então presidente do Senado, Renan Calheiros, entregou um diploma simbólico de presidente da República a João Vicente Goulart, o filho de João Goulart, o Jango. Foi, de fato, uma ação ilegal, ainda que tenha contado com o apoio do STF: Jango não estava fora do país, pré-requisito básico para o Congresso declarar vacância, segundo a Constituição vigente, publicada em 1946.
Enquanto Moura Andrade apeava Jango do poder, o presidente deposto procurava refúgio no Rio Grande do Sul, onde tentava reeditar um movimento de mobilização política para garantir seu retorno ao poder – iniciativa parecida havia dado certo em 1961, mas desta vez falhou. Goulart chegaria ao exílio no Uruguai apenas no dia 4. Nunca mais voltaria ao país até a morte, em 1976.
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Rapidamente, logo no início de abril, uma junta militar preparou as eleições indiretas para presidente e tomou as primeiras medidas de censura à imprensa, cassação de direitos políticos de adversários e demissão sumária de funcionários públicos não alinhados com o novo regime.
A deposição de Jango foi, portanto, resultado de uma ação arbitrária, que depôs do cargo um presidente democraticamente eleito. “Os eventos desde o dia 31 de março de 1964 até a madrugada de 2 de abril representam uma série de violações à democracia e à constitucionalidade, caracterizando um golpe de estado”, explica Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Clamor da maioria”
Em 2019, pela primeira vez desde a redemocratização em 1985, o Poder Executivo tem lideranças que discordam dessa visão. Consideram que o que aconteceu ao longo daqueles três dias foi uma revolução – ou contrarrevolução, uma medida preventiva para evitar que o Brasil se tornasse uma ditadura comunista.
Enquanto era deputado federal, o atual presidente Jair Bolsonaro criou o hábito de celebrar o dia 31 de março. Todos os anos, na companhia dos filhos, levava diante do Ministério da Defesa uma faixa com os dizeres: “Parabéns militares, graças a vocês o Brasil não é Cuba”. Disparava fogos de artifícios e, em alguns casos, discursava para a câmera: “31 de março de 1964. Data da segunda independência do Brasil. Parabéns aos militares, às mulheres nas ruas, à igreja católica, à grande mídia, que evitaram que, em 1964, o Brasil se tornasse um satélite da União Soviética”.
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Na presidência, Bolsonaro determinou que o Exército celebre a data. As Forças Armadas já divulgaram a Ordem do Dia, assinada pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e pelos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
O texto afirma: “O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País. As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo”. Pensamento parecido têm dois ministros do governo, Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, e Ricardo Vélez Rodríguez, da Educação.
Sequestro de Lacerda
De fato, o golpe contou com apoio de setores expressivos da população, incluindo a cúpula do Exército e do empresariado. Até mesmo parte do movimento estudantil dava suporte a ações pró-militares. As principais lideranças cristãs, católicas e protestantes, participavam ativamente das manifestações que defendiam a mudança no regime. Grandes veículos da imprensa, incluindo os jornais Folha de S.Paulo, Estado de São Paulo e O Globo, celebraram a derrubada de Jango. Mais recentemente, tanto imprensa quanto Igreja fizeram seus mea-culpa.
Além disso, havia indícios de que João Goulart poderia forçar mudanças na Constituição a fim de se candidatar a presidente em 1965, quando haveria eleições. Eleito vice-presidente em 1960, numa época em que os candidatos a presidente e vice não formavam uma chapa única, Jango estava na China, em visita diplomática, quando Jânio Quadros, o presidente eleito, renunciou. Para conseguir retornar ao país e retomar o cargo, o vice se apoiou na Campanha da Legalidade, promovida por seu cunhado, Leonel Brizola, a partir do Rio Grande do Sul. Num primeiro momento, aceitou que o regime fosse alterado para o parlamentarismo. Em janeiro de 1963, um plebiscito determinou a volta do presidencialismo.
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Jango se tornara o presidente de fato, e rapidamente apresentou um grande plano trienal para aumentar o crescimento da economia e diminuir a inflação. O plano fracassou rapidamente, e em outubro de 1963 o presidente pediu ao Congresso que decretasse estado de sítio.
O objetivo, na época, era depor seus principais adversários, os governadores de São Paulo, Adhemar de Barros, e da Guanabara, Carlos Lacerda. O governo chegou a planejar o sequestro de Lacerda, como descreve o jornalista Elio Gaspari em seu livro 'A Ditadura Envergonhada': “Por uma ordem do ministro da Guerra, Lacerda seria capturado por uma patrulha, durante uma visita matutina ao hospital Miguel Couto. Deu tudo errado. Desamparado, Jango submeteu-se à humilhação de retirar o projeto que remetera à Câmara”.
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De toda forma, no início de 1964, o presidente ainda era bastante popular. “Jango não era comunista, era um político vinculado a ideais trabalhistas, e não tinha nenhuma intencionalidade de realizar a ‘revolução’ no Brasil”, afirma a professora Caroline Silveira Bauer. “Contava com grande aprovação da opinião pública, de acordo com pesquisas de opinião realizadas à época, e seu governo sofreu um processo de desestabilização desde o primeiro momento”.
Um levantamento do Ibope realizado entre 9 e 26 de março de 1964, e só publicado em 1989, indicava que 50% dos eleitores pretendia votar novamente em Jango, caso ele conseguisse concorrer.
Discurso final
Na mesma época, Jango continuava pedindo mudanças na Constituição, a fim de aprovar um novo plano de transformação do Brasil, as chamadas reformas de base – e, de quebra, permitir sua candidatura a um novo mandato. Era o que dizia Luiz Carlos Prestes, aliado do governo e secretário-geral do Partido Comunista, em entrevista concedida à TV Tupi em janeiro de 1964: “Talvez mesmo, o candidato do presidente Goulart à presidência seja ele mesmo. Não sei como ele pretende chegar lá. Será através de uma reforma constitucional? Pode ser, não?”.
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Enquanto isso, as Ligas Camponesas de Francisco Julião formavam um grupo de resistência no campo, e Leonel Brizola organizava seus Grupos dos Onze. Seriam duas forças militarizadas capazes de apoiar as ações do presidente. Além disso, militares de baixa patente, ligados a sindicatos e partidos de esquerda também tendiam a apoiar as ações do presidente. Foi quando Jango resolveu desautorizar o alto comando militar e dar suporte a uma ação de quebra de hierarquia que seu governo caiu.
Na noite de 30 de março, Jango visitou o Automóvel Clube, no Rio de Janeiro, onde se reuniam sargentos, cabos e marujos que, dias antes, haviam sido punidos pelo ministro da Marinha por sublevação porque, nas palavras de Elio Gaspari, “haviam transformado uma irrelevante Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais numa entidade parassindical, monitorada pelo Partido Comunista”. Os 12 oficiais presos foram libertados e saíram pelas ruas em passeata, junto a dezenas de colegas. O ministro pediu demissão.
Depois de visitar os militares rebelados, no Rio de Janeiro, Jango iniciaria uma série de comícios. No dia 3, estaria em Santos. Na semana seguinte, em Santo André, no ABC Paulista. Em 11 de abril, iria até Salvador, possivelmente para anunciar o monopólio da distribuição de petróleo. Na sequência, viajaria até Belo Horizonte e Brasília, concluindo com a celebração do primeiro de maio em São Paulo. Nada disso aconteceu, em grande parte porque a visita do Automóvel Clube e o discurso declamado ali, ao vivo em cadeia de televisão, irritou militares da cúpula que vinham sendo afastados para cargos de menor poder, mas se mantinham influentes.
“Estaríamos, sim”, Jango declamou naquela noite, “ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da nação, que de Norte a Sul, de Leste a Oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria”.
Derrota rápida
Diante desse gesto de desmoralização da hierarquia militar, lideranças militares expressivas como o marechal Ademar de Queiroz e o general Cordeiro de Farias mobilizaram forças. Convenceram o general Humberto de Alencar Castelo Branco a participar da reação contra o governo.
Enquanto Castelo fazia contatos telefônicos em todo o Brasil, preparando o golpe para dali a dez dias, um general de Minas Gerais, Olympio Mourão Filho, atropelava a organização do golpe e colocava suas tropas para partir de Juiz de Fora até o Rio de Janeiro. Castelo tentou impedir a ação, que considerava precipitada, mas não conseguiu – Mourão Filho, que já tinha sido transferido do Rio Grande do Sul e de São Paulo por suas falas golpistas, não voltou atrás. O grupo de Castelo buscou então agilizar a derrubada do presidente.
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Enquanto as tropas partiam, no dia 30 de março, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) decretava greve geral em todo o Brasil. Nem a batalha aconteceu, nem a greve: não houve nenhum conflito aberto nas horas que se seguiram, para a surpresa dos próprios militares.
Em depoimento prestado posteriormente, o general-de-brigada Daniel Lomando Andrade, que em 1964 era capitão servindo em São Gabriel (RS), disse quem na época, esperava-se por uma batalha longa. “Havia uma ideia de que teríamos que combater de dois a quatro meses até que se consolidasse a queda do governo. E isso não aconteceu. O dispositivo político, sindical e militar do presidente João Goulart caiu em vinte e quatro horas e surpreendeu os revolucionários”.
Ao longo do dia primeiro de abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, primeiro partiu para Brasília. Dali, percebendo que seu dispositivo militar de suporte tinha sido rapidamente desmantelado, ele rumou para o Rio Grande do Sul. A indefinição do presidente impediu uma guerra civil, na mesma medida em que facilitou o trabalho dos conspiradores. Jango se recusou a dar carta branca para Brizola partir para o confronto aberto, mas tampouco aceitou o pedido do comandante do Exército em São Paulo, o general Amaury Kruel.
Padrinho de um filho de Jango e liderança central para o sucesso do golpe, Kruel ligou para o presidente, pedindo que ele rompesse publicamente com os aliados de esquerda. Jango respondeu: “General, eu não abandono meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente”.
“Revolução gloriosa”
No final das contas, o exército não precisou de tropas nas ruas para tomar o poder. Bastou o apoio do Congresso e do Judiciário, que em 2 de abril validaram o golpe. Rapidamente, o regime militar afastou as lideranças civis enquanto uma pequena parte da oposição, vinda principalmente dos sindicatos e da ala do movimento estudantil ligada a grupos de esquerda, começava a se organizar para reagir com ações de guerrilha que visavam mudar o regime, sem aderir à democracia.
Como já afirmou o tenente-coronel Pedro Candido Ferreira Filho, “eles se fecharam e se reorganizaram e partiram para fazer cursos de guerrilha fora do país. Os líderes sindicalistas foram, então, realizar cursos no exterior e voltaram preparados para a guerra. Voltaram a partir de 1966 e 1967. Começaram então os atentados”.
Os militares, aliás, eram personagens ativos na política brasileira fazia alguns anos: provocaram a demissão de Jango do Ministério do Trabalho em 1954, garantiram a posse de Juscelino Kubitschek (e de seu vice-presidente, o próprio Jango) em 1955 e foram decisivos para as negociações que permitiram que Jango voltasse ao Brasil e assumisse o cargo em um regime parlamentarista, em 1961. Em 1964, derrubaram o presidente com grande facilidade. Rapidamente deram início a uma ditadura.
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Ao longo dos anos em que o regime militar governou o país, os acontecimentos daqueles dias eram chamados de “revolução gloriosa”.
Desde a redemocratização, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica mantiveram o hábito de celebrar, discretamente, o dia 31 de março – data considerada mais adequada do que o 1º de abril, dia da mentira, para marcar a mudança de regime.
Foi só durante o governo de Dilma Rousseff (PT), ex-militante guerrilheira, presa e torturada pela ditadura, que o Ministério da Defesa desautorizou qualquer manifestação. Em 31 de março de 2019, haverá, novamente, momentos de celebração.
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