Manifestantes protestam a favor da causa LGBT em São Petersburgo, na Rússia| Foto: OLGA MALTSEVA/AFP

Você pode negar, fingir que se trata de mero proselitismo ideológico, fazer de conta que nada disso existe no mundo real, mas os números não mentem: nós temos um sério problema no trato de negros, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. 

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Em relação às mulheres, nós somos o quinto país mais violento no mundo – em média, registramos uma denúncia de violência doméstica a cada sete minutos e um caso de estupro a cada onze (e como apenas de 30% a 35% dos casos são registrados, é possível que o cenário seja ainda pior, de um estupro por minuto). Nos espaços públicos, elas ocupam por aqui o topo do ranking das mais assediadas do planeta – e o nosso país, considerado tão acolhedor, é o segundo destino mais perigoso para mulheres viajarem em todo o mundo. Um problema e tanto. 

Com os negros não é diferente. Negros representam 54% da população brasileira. Sua participação no grupo dos 10% mais pobres, porém, é muito maior: 75%. No grupo do 1% mais rico da população, é de apenas 17,8%. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas da Violência, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontado outros fatores, como renda, sexo ou idade. 

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E não é como se a vida das lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros fosse a mais segura possível por aqui, livre do preconceito. A cada 25 horas, uma pessoa é assassinada no Brasil exclusivamente por sua orientação sexual. De janeiro a setembro de 2016, das 295 mortes de transexuais registradas em 33 países ao redor do mundo, 123 ocorreram no Brasil. Não é de fato um número pra dar qualquer orgulho, independente da sua posição política. 

Movimentos sociais, no entanto, são cada vez mais confrontados no país. E por todos esses fatores, seria irresistível supor que a oposição a essas instituições ou lideranças ligadas à militância feminista, negra ou LGBT é fruto de séculos de repressão às minorias, de mero reacionarismo troglodita mascarado por uma cultura de intolerância a grupos socialmente marginalizados. 

O fato é que não são raros os membros dessas próprias minorias - perfeitamente capazes de condenar discursos autoritários, de apontar falhas de representatividade, de rejeitar instrumentos de violência, de repugnar atos de injustiça, de reconhecer a tirania alheia e de lutar por igualdade de direitos - que não se sentem representados por militantes e grupos que arrogam para si o direito de falar em seus nomes. 

Se a pauta, afinal, é tão importante e há tantos números, de diferentes organizações, corroborando a necessidade de discussão desses problemas, por que raios mesmo figuras perfeitamente razoáveis, de todas as tribos, conseguem rejeitar com tamanha antipatia os discursos engajados dos justiceiros sociais? 

Afinal, qual o problema com essa gente? 

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1. Há muitos dedos apontados e pouca autocrítica. 

É muito fácil acreditar que todas as pessoas que não seguem as mesmas ideias que a nossa agem impulsionadas pelos piores sentimentos do mundo. É confortável. E nos leva - e isso indefere do seu posicionamento político - a uma batalha necessária a ser travada contra os incivilizados, os impuros, os selvagens, aqueles que na nossa visão transformam o mundo num lugar substancialmente pior. 

Com os justiceiros sociais não é diferente. Mais do que impulsionar uma coleção de debates em torno de temas como homofobia, lesbofobia, transfobia, xenofobia, racismo e machismo - e condenar intolerantes incontestáveis ao ostracismo, ao boicote ou ao rigor da lei - aos movimentos sociais, frequentemente o único caminho a ser percorrido é o do combate, da inquisição e o da caça às bruxas aos outsiders de suas bolhas. 

Com o dedo em riste, tais grupos escolhem deliberadamente enxergar um mundo em preto e branco: o da salvação e o da perdição. 

Negros, mulheres, gordos, crianças, gays, ciclistas, índios, florestas, baleias. Aos bárbaros e truculentos, há sempre algo ou alguém para violentar. Aos que escolhem o caminho do bem, há sempre quem salvar do perigo. 

O efeito imediato é o da rejeição. Pessoas comuns, em geral, tendem a repelir discursos autocomplacentes. Imodéstia desenfreada e ausência de senso crítico acabam, com o tempo, parecendo discurso publicitário - soa desonesto e desperta ceticismo. De certa forma, é como se a cada vez que você tivesse a pretensão de se dirigir aos demais como se possuísse a incrível capacidade de atuar como um super-herói dos desajustados, dos oprimidos e dos incompreendidos - revelando uma natureza impecavelmente bondosa em relação aos reles mortais espectadores - soasse apenas dissimulado e gerasse ainda mais distanciamento. 

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Tal cenário, não bastasse, é agravado pelo fato de que indivíduos com aproximações ideológicas, como num passe de mágica, não raramente ocupam posições acima de qualquer suspeita aos movimentos sociais - independente de seus históricos de intolerância na vida privada. 

Com o tempo, o alvo militante passa a ser outros seres - reprovados não por aquilo que fazem, mas pelo que representam. 

E essa é a segunda razão por que há tanta rejeição a esses movimentos: 

2. Há nítida aproximação com partidos políticos. 

Ao trilhar em direção ao poder, a um movimento social não basta rejeitar a intolerância às suas pautas originais - é preciso assumir candidatos e partidos políticos, abraçar teorias econômicas e opinar sobre as mais variadas posições da administração pública e do comportamento humano. 

A policy dá lugar a politics. E o engajamento social vira mera filiação partidária. 

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O viés irremediavelmente modifica a relação com a causa. Não há mais comprometimento. O doublethink é questão de tempo. 

Figuras públicas com incontáveis casos de intolerância no trato pessoal, ligadas às bolhas partidárias socialmente engajadas, passam a ser perdoadas ou ignoradas com a mesma facilidade com que forasteiros ideológicos, sem qualquer passado de truculência, gratuitamente acabam condenados. 

A bel prazer, negros conservadores viram capitães do mato, mulheres praticantes de um estilo de vida tradicional encarnam o papel de aberrações de segunda classe da sociedade patriarcal, gays liberais são desfiliados do papel de minorias e, fundamentalmente, indivíduos opositores de partidos conectados aos discursos politicamente corretos viram inimigos do país. 

Aos olhos do público, a consequência é implacável. 

Ao confundir-se com legendas partidárias e abraçar teorias políticas das mais diversas da causa original, os movimentos sociais inevitavelmente acabam ganhando a antipatia dos opositores dessas agremiações e criando a sensação que a pauta nativa militante nunca passou de mero pretexto para o cabresto eleitoral. 

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Assim, sempre que um partido aliado à militância conduzir o país à insatisfação popular, fruto de decisões políticas sem qualquer conexão com as bandeiras dos justiceiros sociais - sendo, não obstante, defendido por eles, mesmo quando atentando contra suas pautas originais - acabará levando consigo esses mesmos grupos à derrocada, gerando apenas hostilidade e despertencimento às suas causas. 

E não apenas isso. Acabará gerando outra externalidade: palanque a opositores políticos concentrados não mais em questionar práticas da administração pública, mas em desestabilizar suas bandeiras. 

E é nesse ponto que a trajetória em direção ao declínio se acentuará. Não sem motivo: 

3. Há pouco interesse em diálogo (e quando ele existe é o mais ofensivo possível). 

Quando você está vendendo uma nova ideia, militando por uma revolução ou sugerindo uma grande mudança social, é perfeitamente compreensível que a sua audiência seja formada por pessoas céticas. Elas ainda não acreditam nas suas premissas e muito provavelmente agem com desconfiança a respeito de uma mudança significativa de cenário. É o seu papel convencê-las de que estão equivocadas. 

E essa não é uma tarefa das mais simples. Para executá-la com aptidão, não há outro caminho possível que não seja utilizar todas as ferramentas disponíveis para isso: os fatos, a razão e o conhecimento. 

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Ao optar pelo caminho da inquisição, boa parte daqueles que militam em torno de movimentos sociais, preferem conduzir suas audiências pelas estradas mais sinuosas - com aversão e repugnância pelas características físicas (o fato de serem homens ou de nascerem brancos), as escolhas pessoais (a maneira como se vestem ou se divertem) e o saldo das contas bancárias de seus espectadores, condenando-os não apenas por suas identidades partidárias, mas por seus supostos desvios morais, gerando ainda mais antipatia e execração pública. 

E esse é um progresso. Em geral, é mais fácil que tais diálogos jamais ocorram, a julgar que uma parcela considerável dos militantes sociais estão presos em bolhas, incapazes de debater com outras figuras que não pertencem aos seus ambientes. 

O debate público vira uma partida de futebol com um único time em campo. 

4. Há exageros. 

Por fim, colaborando para o esfacelamento dos movimentos sociais, encontra-se a tragédia final: a banalização das pautas originais, discussões sérias sobre violências reais que passam a dar lugar ao histrionismo neurótico das micro-agressões. 

Absolutamente tudo é ofensivo. Mulheres de biquíni em propagandas de cerveja, pratos de comida com pedaços de carne, homens que pulam o carnaval vestidos de índio, casais interraciais, loiras que usam turbante, diferenças salariais entre estrelas milionárias de Hollywood, festivais de cinema que não premiam minorias étnicas, babás e empregadas domésticas, ciclofaixas inacabadas em bairros de gente rica, ausência de pronome com gênero neutro, padres de batina, super-heróis viris, bonecas da Barbie, homens. 

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Longe das delegacias, importando o discurso do progressismo caricato americano, os justiceiros sociais tupiniquins acabam se contentando em atuar como um mero movimento condenatório dos microproblemas de gente branca de classe média - angariando a antipatia dos mais diferentes tipos. 

Incapazes de dialogar com o brasileiro comum, encarcerados em bolhas universitárias, terminam também por conquistar cada vez menos eco no alcance à grande massa, presos aos limites dos bairros nobres das grandes cidades, seus redutos eleitorais. 

Nada disso, porém, como um engano. 

Com pouco apreço pelo diálogo e completa ausência de autocrítica, os justiceiros sociais estão condenados a nascer e morrer nos mesmos cantos: nas esquinas do Leblon, nos arredores da Avenida Paulista. 

*Rodrigo da Silva é um dos fundadores do site Spotniks

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