No início da tarde de 11 de setembro de 1973, a menina Ana Lídia Braga foi sequestrada no colégio onde estudava, na Asa Norte de Brasília. Com apenas sete anos de idade, Ana Lídia seria encontrada morta no dia seguinte, enterrada em uma vala nas imediações da Universidade de Brasília (UnB): nua e com marcas de cigarro pelo corpo, ela havia sido estuprada e asfixiada.
O Brasil vivia a fase mais sangrenta da ditadura, o governo de Emílio Garrastazu Médici, mas o rigor dedicado aos “subversivos” não foi o mesmo encontrado pelos criminosos do caso Ana Lídia: com suspeitas de que até o filho de Alfredo Buzaid, então Ministro de Justiça, estaria envolvido no caso, o regime militar fez o possível para abafar o crime.
Uma investigação paralela levada a cabo pelos militares constatou as implicações que a história de Ana Lídia poderia ter para nomes importantes do regime e tratou de desacreditar possíveis testemunhas, além de dificultar o caso que corria sigilosamente na Justiça.
A suposta participação de Alfredo Buzaid Júnior, por exemplo, seria uma mera “manobra de grupos a serviço da subversão”, segundo a versão oficial da ditadura. No primeiro semestre de 1974, para evitar dar mais atenção ao assunto, a imprensa recebeu ordem expressa de fazer “comentários, transcrição, referências e outras matérias” sobre o caso. Com os jornais amordaçados e a Justiça de olhos fechados, o caso Ana Lídia não avançou – até hoje, os culpados não foram identificados ou responsabilizados.
A história de Ana Lídia Braga é um dos mais famosos episódios, mas não o único, de impunidade durante a ditadura no Brasil. As marcas do regime militar na sociedade brasileira vão além do número de mortos e desaparecidos (inferior, oficialmente, ao de ditaduras como a da Argentina e do Chile), tão citados nos argumentos favoráveis a uma “intervenção”, e se estendem para outros aspectos e situações menos citados pelo senso comum.
O brasileiro lembra pouco da ditadura: em 2008, por exemplo, uma pesquisa do Datafolha mostrava que 82% dos brasileiros nunca haviam ouvido falar do Ato Institucional Número 5, o AI-5, que endureceu de vez o regime em 1968.
“Esse desconhecimento do passado faz com que as pessoas comecem a se basear apenas na experiência individual, e tomar histórias pessoais como se fossem representativas do período como um todo. O discurso sobre a ditadura acaba sendo o do senso comum”, afirma a historiadora Caroline Bauer, pesquisadora do Laboratório de Usos Políticos do Passado, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Abaixo, lembramos alguns casos que os saudosos da ditadura preferiam que fossem esquecidos.
Descalabro econômico
Durante a década de 1970, o Brasil viveu o chamado “milagre econômico”, com seu PIB crescendo anualmente em níveis que hoje são normalmente associados à China. Em 1973, no melhor ano, a produção subiu quase 14%. Foi a época de crescimento mais acelerado que o país já vivenciou, mas se tratava de um crescimento insustentável: o “milagre” dos anos 70 seria seguido pela “década perdida” dos anos 80, em grande parte devido aos erros estratégicos do próprio governo militar.
Após a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) aumentar rapidamente o valor do barril em outubro de 1973, a crise que se seguiu colocou o regime em uma situação difícil.
Para manter o “milagre” andando, o novo presidente, Ernesto Geisel, decidiu gastar o que não tinha: a ideia era manter o crescimento acelerado com investimentos públicos, no que então foi conhecido como 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, que incluiu iniciativas como a usina de Itaipu e o Programa Grande Carajás de exploração mineral.
No curto prazo, funcionou. No longo, foi um desastre: entre 1974 e 1979, a dívida externa do Brasil saltou de 27,8 bilhões para 61,8 bilhões, em valores atualizados, segundo dados do Banco Mundial. O preço do barril do petróleo continuou a subir e, conforme a crise se alastrava pela América Latina, o investimento estrangeiro desapareceu – a fonte secou para os programas megalomaníacos da ditadura e, a partir de 1980, o PIB passou a oscilar entre a queda e a estagnação. Mais do que isso: em tempos em que prevalecia o discurso de que era primeiro deixar o bolo crescer para depois reparti-lo, grande parte da população jamais recebeu sua fatia: no fim da década de 80, quase metade da população seguia recebendo menos que dois salários mínimos.
A crise econômica ajudou a aumentar a pressão popular pelo fim da ditadura, que entregou o governo em 1985 com uma inflação de 239% ao ano (eram 92% quando Jango havia sido derrubado em 1964). O caos econômico deixado de herança pelo regime militar levaria mais uma década até ser debelado pelos governos civis, com os brasileiros convivendo com a hiperinflação até a adoção do Plano Real, em 1994.
Corrupção
Durante a década de 50, o Brasil passou a se acostumar com notícias que hoje continuam comuns: os mais variados tipos de denúncias contra empreiteiras, por propinas, desvios e superfaturamentos. Esses casos desapareceram do noticiário entre 1964 e 1985, voltando com força total após a redemocratização. Na percepção pública, parece evidente: o regime militar foi um período em que se pôs ordem na casa e os diferentes tipos de corrupção deixaram de aparecer. Na prática, porém, o que aconteceu foi simplesmente o silenciamento das denúncias.
Um dos maiores exemplos é o fracasso do Comitê Geral de Investigações (CGI), que se dedicava tanto à subversão quanto às denúncias de corrupção, e foi marcado pelo favorecimento a políticos amigos do regime, com o arquivamento massivo de processos que sequer eram analisados. Enquanto processos contra os então governadores da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, e do Maranhão, José Sarney, foram arquivados sem passar por investigação, o ex-governador gaúcho e opositor da ditadura Leonel Brizola foi alvo de uma detida análise do CGI: Brizola, que estava exilado, teve seu sigilo bancário quebrado e suas declarações de bens reviradas desde o final da década de 50. Os investigadores, porém, não encontraram irregularidades.
O caso das empreiteiras é ainda mais flagrante. “As empreiteiras, donos de construtoras e vários outros empresários estiveram envolvidos no golpe em 64. Não foi simplesmente uma tomada de poder pelos militares: foi uma ampla articulação de vários segmentos sociais”, diz Pedro Campos, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor do livro Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar. “Eles não estavam lá só para derrubar João Goulart. Eles estavam formulando propostas com vistas a atender o interesse desses empresários. O escancaramento da ditadura vai facilitar o acesso desses empresários ao poder e criar um cenário muito mais propício para suas atividades e para que atingissem altas margens de lucros”.
Empreiteiras como a Odebrecht e a Camargo Corrêa cresceram no período ditatorial. Com frequência, valiam-se de artimanhas em conluio com representantes do regime para vencer as licitações: no caso do metrô de São Paulo, por exemplo, a Camargo Corrêa levou a concorrência após indicar um valor inicial muito inferior ao custo final da obra, por ignorar deliberadamente aspectos técnicos sem os quais as escavações não poderiam continuar – numerosos aditivos garantiram o sucesso da empreitada e os lucros da companhia.
Projetos faraônicos que sugaram recursos públicos sem entregar o prometido, como a Transamazônica, também povoaram o período. Nos dias da repressão, a fiscalização do poder por parte da sociedade civil era inviabilizada com a imprensa cerceada. Com a imprensa sob censura e jornalistas sendo perseguidos, as denúncias não apareciam e tudo ocorria com uma aparência de normalidade e idoneidade.
“É preciso problematizar e discutir esse conceito de corrupção do senso comum. Corrupção é mais do que o recebimento de propinas e o nepotismo”, entende Pedro Campos.
Para o historiador, é preciso ir além de casos específicos e olhar para o modelo como um todo, com trocas de influências e favorecimentos às grandes empresas que apoiam o governo da vez, e que não foi combatido durante a ditadura.
“As próprias políticas públicas embutem projetos injustos e antiéticos ainda mais graves que os escândalos atuais que ‘afundam’ o Brasil. É preciso alargar o que se entende como corrupção. Se entendermos corrupção como o uso do público para benefício privado, isso está longe de ser a exceção”.
Crime e violência urbana
Com uma taxa de homicídio intencional de 28,9 pessoas a cada 100 mil habitantes, o Brasil hoje aparece ranqueado como um dos quinze países mais violentos do mundo. A impressão de que havia mais segurança pública durante a ditadura é outra meia-verdade: se, em geral, os números costumavam ser menores do que hoje, não é verdade que o período militar tenha sido particularmente seguro na história brasileira. Pelo contrário: a criminalidade só subiu durante a ditadura, iniciando a tendência que continua até hoje.
A facilidade para obter armas de fogo, somado à introdução do tráfico e da guerra às drogas no Brasil, fez o índice de homicídios crescer rapidamente nas principais cidades do país – e o endurecimento do regime não surtiu qualquer efeito em termos de reduzir a violência. Pelo contrário: o incremento do aparato para combater a criminalidade urbana foi uma resposta ao aumento do crime, com o surgimento dos “esquadrões da morte” na tentativa de responder aos pedidos da população por mais segurança, criando uma cultura de violência que permanece até hoje.
Um caso sintomático é o de São Paulo, maior cidade do Brasil. Segundo levantamento feito pelo jornal O Estado de São Paulo em 2012, até o início da década de 1960 o índice de homicídios na cidade raramente superava 5 a cada 100 mil habitantes. Em 1985, ao final da ditadura, esses números haviam subido para 36,9. O índice seguiria subindo até o final dos anos 90, antes de entrar em declínio – hoje, a taxa de homicídios em São Paulo é de 7,4 a cada 100 mil paulistanos.
Por outro lado, a impunidade já era uma constante em casos envolvendo suspeitos poderosos. O caso de Ana Lídia Braga, que abre esse texto, não foi o único do tipo a vir à tona e ser posteriormente silenciado durante a ditadura. No Espírito Santo, também em 1973, o estupro e morte da menina Araceli Crespo, de oito anos, levantou suspeitas contra membros de famílias influentes do estado – entre os nomes citados no caso apareciam Paulo Constanteen Helal e Dante Michelini, de clãs ligados ao regime – e acabou não sendo levado adiante, além de sofrer censura na imprensa. Como no caso de Ana Lídia, ninguém foi punido.
“A miséria social, que é a principal razão da violência urbana, ela se aprofunda em decorrência das políticas econômicas ao longo do tempo. A década de 80, toda uma década perdida da economia, é uma das grandes causas da violência social que começa na ditadura e segue crescendo depois de 1985. A pessoa nunca ter tido uma experiência individual de violência nessa época não é um bom indício de ter sido um tempo mais seguro ou não: um bom convite é ler as páginas policiais dos jornais dessa época, para lembrar que a violência já existia e era grande”, aponta o historiador Diorge Konrad, professor da Universidade Federal de Santa Maria.
Crianças torturadas
As vítimas diretas da ditadura brasileira não se resumiram aos militantes dos grupos armados de extrema-esquerda, chamados de “terroristas” pela ditadura e anistiados (junto com os torturadores) em 1979. Um dos casos mais famosos é a morte do jornalista Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura, que compareceu voluntariamente ao DOI-CODI de São Paulo para prestar esclarecimentos sobre seu suposto envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro – morto durante uma sessão de tortura
Herzog foi apresentado pelos agentes do regime como se tivesse se suicidado.
Outro episódio notável é o desaparecimento de Rubens Paiva, deputado federal por São Paulo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que foi preso em 1971 sob suspeitas jamais comprovadas de colaborar com grupos envolvidos na luta armada. A detenção de Rubens Paiva e sua morte foram negadas oficialmente pelo regime e sua morte só seria reconhecida em 1995 com a aprovação da Lei 9.140, conhecida como Lei dos Desaparecidos.
Além das mortes famosas, outro tabu entre os defensores da repressão é o sequestro, prisão e tortura de crianças por parte do regime. Filhos de militantes suspeitos de envolvimento na luta armada, essas crianças foram fichadas como “elementos subversivos” pelo DOPS. É o caso, por exemplo, de Ernesto Carlos Dias do Nascimento, de um ano e três meses de idade, preso junto com os irmãos de 4, 6 e 9 anos, todos filhos de um casal ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) de Carlos Lamarca, considerados alguns dos presos mais jovens da ditadura.
Também são numerosos os relatos de sobreviventes, homens e mulheres, que sofreram estupros e outras torturas sexuais na prisão, além de casos de mulheres grávidas que foram obrigadas a parir enquanto se encontravam detidas em condições insalubres.
Mortes
Divulgado em 2014, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) reconheceu oficialmente 434 mortos e desaparecidos políticos no Brasil entre 1946 e 1988, a grande maioria no período pos-1964. Segundo especialistas, o número, considerado relativamente pequeno quando comparado ao Chile e Argentina (onde o total de vítimas diretas reconhecidas oficialmente é de, respectivamente, cerca de 3 mil e 9 mil), ignora outras questões: o total de vítimas indiretas, torturados que sobreviveram, os mortos que jamais foram contabilizados (especialmente indígenas) e os efeitos sociais que a ditadura exerce na mentalidade brasileira.
Segundo estudo divulgado na última sexta-feira (6) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Datafolha, os brasileiros ainda hoje mantêm uma cultura que remete à formação dos “esquadrões da morte” nos anos 80: combater a violência com ainda mais violência, um modelo que já fracassou anteriormente. De acordo com o estudo, o índice de apoio dos brasileiros a posições autoritárias chega a 8,1 em uma escala que vai de 0 a 10.
“A tortura, que surge por aqui ainda no período colonial, é naturalizada e legitimada na delegacia de polícia: não só para o preso político, mas também para o preso comum”, diz o historiador Diorge Konrad. “Mesmo que fiquemos só no sentido estrito: esses pouco mais de 400 mortos e desaparecidos são militantes das organizações de esquerda. Se pegarmos a população camponesa, a população indígena, que foram analisados de forma genérica pela CNV, esse número se expande cada vez mais”. A CNV estimou em mais de 8,3 mil índios mortos durante a ditadura, em ações do Estado para favorecer o esbulho de terras indígenas.
Por ter começado antes, o Brasil também foi um “laboratório” para as ditaduras do Cone Sul. O Brasil enviou torturadores para países vizinhos e foi o primeiro a reconhecer o governo de Augusto Pinochet no Chile. Além disso, a ditadura brasileira colaborou ativamente com os atos de terrorismo estatal internacional promovidos pela Operação Condor, que reunia as inteligências militares de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
Conheça os autores que, sufocados pela falta de liberdade de expressão, sentiram a necessidade de contar ao mundo suas histórias e opiniões, sem serem censurados pela ditadura cubana. ð¨ðºï¸ð¨ðºï¸ð¨ðºï¸ð¨ðºï¸ð¨ðºï¸
Publicado por Ideias em Terça-feira, 10 de outubro de 2017
Nesta lista, elaborada com a ajuda de especialistas em cinema, elencamos filmes que mostram facetas obscuras da ditadura...
Publicado por Ideias em Segunda, 9 de outubro de 2017