O presidente da República, Michel Temer, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia: ambos citados na Lava Jato| Foto: EVARISTO SA/AFP

Uma democracia próxima do ideal tem como pilares a defesa dos direitos fundamentais de todos (não posso dar uma facada mortal no meu vizinho mesmo que a “voz do povo” me permita fazer isso), o respeito às leis criadas por um parlamento eleito pelo povo, a divisão de poderes para que ninguém tenha o controle total do governo e seja um tirano, a promoção da livre associação das pessoas pelo bem comum, o sufrágio universal, a liberdade de expressão, para dizer os principais. Não é relativa, é preciso respeitar leis, instituições e criar mecanismos de coação legítimos para brecar quem queira ser um ditador de suas ideias e ações em detrimento dos direitos dos demais. 

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O encontro privado do empresário ficha suja Joesley Batista com o presidente da República Michel Temer, e toda a sujeira destampada pelas operações da Polícia Federal durante os governos de Lula e Dilma Rousseff, dos ex-governadores do Rio de Janeiro, do Distrito Federal, entre muitos outros eventos, mostra o quanto grupos econômicos e os conchavos políticos podem minar essas instituições democráticas e influenciar o destino do país para seus interesses, anestesiando os mecanismos de controle. Cortar essa sangria passa a ser prioridade. 

Informar melhor o eleitor

 
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“Vote Tiririca, pior que tá não fica”. O slogan embalou a campanha eleitoral que levou à votação recorde do humorista Tiririca, menos conhecido como Francisco Everardo Oliveira Silva, eleito deputado federal por São Paulo com 1,3 milhão de votos em 2010, reeleito com 1 milhão votos em 2014 mesmo depois de passar por um mandato medíocre. Este caso e a eleição de outros parlamentares investigados em diversas operações policiais — corre boato em Brasília que quando Alberto Youssef, doleiro responsável pelas primeiras delações da Operação Lava Jato, foi levado a depor no Congresso, perguntaram a ele secretamente quais dos deputados presentes não havia recebido propina; após avaliar o plenário com atenção respondeu, “nenhum” — revelam que a solução tem de passar por melhorar o sistema eleitoral responsável por colocar incompetentes e corruptos na Câmara dos Deputados e no Senado. 

Melhorar a escolha dos políticos pela população passa pela informação, mas também por combater a decepção com a política.

“O brasileiro passa a não se importar ao perceber que todos os que chegam lá fazem a mesma coisa, contribuem pouco e saem ricos; isso, infelizmente, esse desencantamento e votos de protesto acabam promovendo ainda mais o controle oligárquico do estado, pois ficam os mesmos”, lamenta o cientista político Jawdat Abu-El-Haj, pós-doutor em Ciência Política pela Columbia University. 

Há várias teorias de como melhorar a qualidade dos candidatos, principalmente para os cargos legislativos. A Lei da Ficha Limpa, criada em 2014, de origem na sociedade civil, deu esperança ao definir como inelegível uma pessoa condenada a partir da segunda instância. O possível fim do foro privilegiado a políticos, em votação no Supremo Tribunal Federal (STF) prevista para os próximos dias, aumentaria essa expectativa otimista, pois, em tese, ficará mais rápido julgar e condenar políticos responsáveis por crimes de corrupção e, em consequência, impedi-los de chegar às urnas. A proibição da doação de empresas para a campanha também é um avanço, pois tenta coibir quem faz alianças para usurpar o erário com superfaturamento em obras públicas e serviços. 

Acabar com as brechas nas leis

Esses passos serão insuficientes, porém, se os esquemas e as leis que abrem brecha para os desvios de verba durante os mandatos não forem abandonados. É esse volume de recursos que acaba alimentando a campanha dos mesmos grupos. O difícil, para não dizer ser impossível, é conseguir que os próprios parlamentares votem em normas nesse sentido. 

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Que leis seriam essas? A primeira é a que impede a proliferação de partidos nanicos, úteis para conseguir mais tempo nos meios de comunicação na campanha, para serem “laranjas” em fraudes e usufruírem mais dinheiro do fundo partidário para as coligações com grandes partidos. A “ajuda” prestada é cobrada depois da eleição, em diversos formatos de “mensalinhos” ou “mensalões”.

“É o problema do presidencialismo de coalizão, o presidente tem de operar no Congresso com 28 partidos, e negociar diariamente com eles é muito complicado. A reforma política ajudaria nisso, ao proibir coligações para eleger deputados e colocar uma cláusula de barreira para reduzir o número desses partidos”, explica David Fleischer, cientista político e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB). 

Outra medida apontada por Jawdat Abu-El-Haj seria afinar a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para que a fiscalização fosse realmente efetiva. Para ele, um deputado ou senador só deveria receber um cargo no Executivo, como uma secretaria ou ministério, caso renunciasse o mandato no Legislativo. “Quando um governo não nomeia mais deputados e senadores, começa a buscar pessoas com outro perfil, mais técnico”, diz. “Além disso, o Parlamento deveria estar mais focado nos problemas da sociedade e menos preocupado em usar a administração para fazer carreira politica”. 

Ele acrescenta ainda que os responsáveis pelos órgãos de fiscalização das contas públicas, como os tribunais de contas, deveriam ser escolhidos por critérios técnicos, não políticos, e também sofrerem auditorias externas, para diminuírem os riscos de desvio de dinheiro público para interesses espúrios. “Os órgãos mantêm um quadro técnico de excelente qualidade para em seguida destruir a ética na medida em que são comandados por políticos com interesses privados que têm autoridade para aprovar ou não os relatórios para beneficiar certos grupos”. Ver tantas pessoas presas no Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, depois de veiculada a orgia com o dinheiro público feita por ex-governadores e aprovada pelo órgão, é só mais uma prova disso. 

Evitar soluções milagrosas e salvadores da pátria

 
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Tanto Platão como Lenin acreditavam que os governantes de uma sociedade deveriam ser pessoas especialmente preparadas para isso. Ou seja, a democracia seria uma péssima opção já que o povo, inculto e movido por paixões — capaz de linchar um ladrão sem um julgamento justo ou deixar-se enganar pela propaganda enganosa do capitalismo — faria más opções. 

O cenário atual no Brasil faz muitos repetirem esse discurso. Já que o povo não sabe votar e é enganado pelas oligarquias econômicas, é preciso forçar as coisas. Por meio do rei filósofo platônico, ou por um “salvador da pátria”, mesmo que ele passe por cima do previsto na Constituição e pelas instituições democráticas. Ou, um perigo real e sutil, a tentação de sacrificar a liberdade das pessoas e o pluralismo saudável (legítimo desde que não fira os direitos fundamentais de ninguém) obrigando-as a respeitarem valores considerados “mais altos” definidos por alguns “sábios”. Alguém que “organize a casa”, até intervenção militar, se necessário. 

Robert Dahl, no livro “Democracia e seus críticos”, destroça esses argumentos. Vale a pena ler o capítulo dedicado a eles. Quem seriam essas pessoas iluminadas capazes de governar com ciência e virtude? O que as faria serem superiores aos outros? Quem garante que essas pessoas governariam pelo bem comum de todos? Além disso, isso seria supor que existiriam “certezas científicas e racionais” para todas as políticas públicas, o que não é verdade. A cada desafio em sociedade existem vários caminhos possíveis e legítimos. Por que uns poderiam participar da decisão e não outros também atingidos por ela? É preciso, segundo Dahl, “abordar com máxima desconfiança a pretensão de que outras pessoas possuem o conhecimento objetivo do bem do indivíduo num grau maior que o conhecimento detido pelo próprio indivíduo”. 

O povo pode errar e erra. E é impossível perguntar o tempo todo a todos o que se deve fazer, por isso há representantes, eleições a cada quatro anos, três poderes e outros meios de consulta popular. Negar, porém, a participação de todos no governo seria o caminho, na visão do cientista político, de impedir a fiscalização do governo, da formação de novas oligarquias e seus equívocos. 

Escutar as demandas dos menos favorecidos 

 
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Com esse pano de fundo, é bom lembrar que um risco importante para a democracia é esquecer ou dificultar a vida de uma parcela da população. Uma classe média baixa desprezada na divisão do bolo na Alemanha dos anos 30 foi responsável pela eleição de Hitler. E outro grupo miserável na Venezuela, negligenciado pelas elites dos petrodólares, sustentou os primeiros anos e a consolidação do governo ditatorial de Hugo Chávez. Duas votações democráticas que se desdobraram em governos autoritários. Problema da democracia? Do sufrágio universal? Não. 

Os capitalistas comemoram as palavras de Margaret Thatcher em um debate memorável com socialistas no fim do seu governo, em 1990, quando a então primeira-ministra do Reino Unido fez um gesto célebre representando os pobres e ricos em cada uma das mãos e colocando as duas mais abaixo, menos desiguais, para demonstrar o que os socialistas querem, e as duas mãos mais separadas, bem mais acima, querendo indicar que no capitalismo há diferenças, os ricos estão mais acima, mas os pobres vivem muito melhor, “vocês preferiam que os pobres fossem mais pobres para que os ricos fossem menos ricos”, disparou. 

O que passa despercebido por vezes para essas mesmas pessoas é o fato de Thatcher, nesse mesmo discurso, frisar a necessidade de melhorar de fato a vida dos miseráveis, que passa por um forte desenvolvimento econômico – aliás, foi para isso que o BNDES foi criado, não para enriquecer a família Batista, da JBS. Caso esse crescimento não ocorra, os pobres continuarão a ser massa de manobra do populista de plantão.

“Sem dúvida, muitas vezes os maiores riscos à democracia têm raízes econômicas; uma depressão econômica como a nossa, com elevado índice de desempregado e desamparo, debilita o poder popular”, reforça o professor David Fleischer, da UnB. 

Nesse clima, aprovar medidas como o voto distrital, pelo qual a população de uma região dentro de um estado elege o seu deputado, poderia ser negativa em bolsões de pobreza no país ainda comandados por “coronéis”, com pressões veladas entre as camadas de menor nível socioeconômico. “Mesmo o voto distrital misto, aquele para o qual o eleitor dá dois votos, um para o partido e outro para qualquer candidato da região, pode funcionar em países como a Alemanha, mas não em outros, como Venezuela e Bolívia; ou seja, no Brasil essa possível mudança eleitoral necessariamente não vai dar bons frutos”, acredita Sérgio Praça, professor do CPDOC da FGV-SP. 

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Optar pela conciliação e moderação

Quem de fato ameaça um político corrupto não são as instituições democráticas, mas um empresário que chega ao Palácio do Jaburu e grava um áudio com o presidente da República. A revolta é grande e a sensação de impunidade também. Para os cientistas políticos consultados para essa reportagem, a melhor saída para a democracia – e para os ânimos compreensivelmente exaltados neste momento – seria a retirada de Temer da maneira mais suave possível, talvez com a cassação da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral, acusada pelo PSDB (atual aliado de Temer, ironia do destino) de abuso de poder econômico e político durante a campanha de 2014, com julgamento marcado para os próximos dias. 

Sem Temer, a escolha seria indireta, no Congresso Nacional, como é previsto na Constituição de 1988, inspirada na lei norte-americana e já incluída nas normas brasileiras em 1891 e 1946. Eleições diretas seriam possíveis apenas se os deputados conseguissem aprovar a alteração constitucional.

“As pessoas podem querer eleições diretas, tentar mudar a constituição, mas é preciso lembrar que é um processo lento que, mesmo feito com rapidez, demoraria alguns meses, honestamente não sei se é uma boa solução levar esse tempo com o país como está; ainda que as eleições indiretas também sejam desagradáveis nesse momento, não há boa solução”, analisa Sérgio Praça. 

Uma pessoa com o perfil da ministra do STF, Cármen Lúcia, conciliador e moderado, confiável para preparar eleições confiáveis em 2018, seria o mais indicado neste momento para assumir as rédeas do país. Seja lá o que possa ocorrer, a podridão exalada de Brasília tem pelo menos um lado positivo, recorda o professor Jawdat Abu-El-Haj. “Agora está evidente que ‘o rei está nu’ e que corrigir o sistema eleitoral é algo necessário, não é um luxo, espero que não esqueçamos disso”, finaliza.