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Análise

O caso Danilo Gentili e 5 motivos pelos quais é absurdo criminalizar a expressão

O controle governamental trata-se sempre de uma tentativa terceirizada de censura, podendo ser utilizada por quem está no comando para conter narrativas que contrariem seu projeto de poder (Foto: Pixabay)
O controle governamental trata-se sempre de uma tentativa terceirizada de censura, podendo ser utilizada por quem está no comando para conter narrativas que contrariem seu projeto de poder (Foto: Pixabay) (Foto: )

A condenação por injúria do humorista Danilo Gentili à pena de seis meses de detenção em regime semiaberto, nesta quarta-feira (10), em processo movido pela deputada federal Maria do Rosário (PT), reacendeu o debate sobre liberdade de expressão no Brasil.

Um vídeo publicado em 2017 pelo apresentador do programa “The Noite” no SBT, em resposta a uma notificação extrajudicial enviada pela parlamentar, foi o estopim. O documento solicitava ao comediante a remoção de três postagens feitas contra ela no Twitter. Nas imagens, enquanto utiliza de tom irônico, Gentili esfrega o papel nas partes íntimas, posteriormente o enviando de volta à deputada.

Em entrevista à Jovem Pan, Danilo afirmou preferir ser preso a se ajoelhar para “a patrulha”. Para o Students for Liberty, foi ainda mais incisivo: “suporto perder tudo, menos minha liberdade (de expressão)”. Não é de hoje que o comediante levanta essa bandeira: ele usou uma serra elétrica para destruir todos os processos que visavam cercear seus discursos durante o show Politicamente Incorreto, realizado em Curitiba em 2018. O comediante ainda planeja fundar uma organização em defesa da liberdade de expressão.

É preciso reconhecer que um público que critica e se revolta contra a censura de artistas ocorrida durante o período militar, mas negligencia ou até comemora a criminalização de algo tão básico quanto uma piada, não defende de fato que pessoas se expressem como desejam. Apenas querem que se manifestem seguindo estritamente as regras de sua vertente ideológica.

A despeito de tratar-se de um direito constitucional, a liberdade de expressão no Brasil não é absoluta. Organizações internacionais costumam analisar com bastante preocupação as diversas exceções possibilitadas pela Carta Magna de 1988.

Relatórios como o da organização não governamental Artigo 19 apontam que a liberdade de expressão no Brasil é ameaçada no espaço público, como em manifestações, bem como no ambiente online. Eles criticam o fato de calúnia, difamação e injúria serem criminalizadas por aqui, na medida em que os denominados “crimes contra a honra” fomentam a prática do ativismo judicial para censurar declarações, matérias jornalísticas e protestos.

A liberdade de expressão no Brasil também é má avaliada em relação às ameaças contra repórteres. Entre 2012 e 2016, houve 22 assassinatos de comunicadores no país, segundo o mesmo estudo. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas, os casos de agressão a jornalistas aumentaram 36,36% em 2018, na comparação com o ano anterior: houve 135 ocorrências de violência que atingiram 227 profissionais, incluindo assassinato.

Essas preocupações estão presentes no Freedom House, elaborado pela revista britânica The Economist. O estudo avalia a qualidade das instituições de cada país sob o ponto de vista democrático, e manifestou nos últimos relatórios bastante preocupação sobre essas questões. Na edição de 2019, destacou a alta taxa de violência política registrada durante o período eleitoral, bem como desinformações.

Já no ranking de liberdade de imprensa, divulgado pelos Repórteres Sem Fronteiras, o Brasil aparece apenas na 102º posição, evidenciando as dificuldades da livre expressão no país.

A censura se refere à determinação que impede uma mídia, um formador de opinião ou mesmo qualquer indivíduo de falar sobre algo, tendo de passar pelo crivo que aprovará ou não o que é dito. Em contraposição a ela, selecionamos 5 motivos pelos quais a liberdade de expressão deve ser plena.

  • Direito Penal deve ser mínimo

Uma crítica comum que se tem ao Direito Penal é a de que significa uma arma contra a população que possui menos recursos. Há evidências que corroboram com essa argumentação.

O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, por exemplo, aponta que cerca de 75% da população carcerária brasileira não chegou a cursar o ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental. Os que se encontram no Ensino Médio, tenha sido essa etapa da educação formal completa ou incompleta, somam 24%. Apenas 1% dos presos chegou a iniciar ou concluir o ensino superior. Como há forte correlação entre a escolaridade de um indivíduo e sua renda, é intuitivo que hoje as penitenciárias do país sejam majoritariamente compostas por pessoas mais pobres.

Ainda segundo o relatório, entre os presos, 64% são pretos ou pardos. Os brancos, em contrapartida, são 35% dos presos, enquanto representam 46% na população em geral.

No exercício do Direito, há o princípio geral da intervenção mínima. Consiste em que o Estado de direito utilize a lei penal como último recurso, apenas em casos de extrema necessidade. Penalistas afirmam que o Direito Penal deve ser a última fronteira no controle social, quando os demais ramos do Direito se mostram incapazes de intervir em ataques muitos graves aos bens jurídicos mais importantes. Criminalizar expressões está em descompasso a essa premissa, e há projetos de lei no Congresso Nacional em tramitação nesse sentido.

  • Impede o espaço para a livre circulação de ideias

Grande parte da importância do debate público se concentra na busca pela produção de bons argumentos contra ideias erradas. Ninguém deve ter o direito de impor sua visão de mundo sobre os demais, mas sim de os convencer de seus ideais e valores.

O que pode ser considerado ofensivo para alguém não necessariamente o é para todas as pessoas. Estabelecer penalidades sobre conceitos tão arbitrários quanto o princípio da “ofensividade” é um erro, dada a subjetividade da questão e a impossibilidade de determinar, de maneira geral, o que é invariavelmente desagradável.

As justificativas mais comuns para as tentativas de restrição à liberdade de expressão se baseiam em “evitar discursos de ódio”. Contudo, vale lembrar que a abolição da escravatura já foi enquadrada como discurso de ódio. Falar em voto feminino era quase proibido. Parece impensável que esses temas já tenham sido objetos de tabu um dia, mas por muito tempo nem sequer poderiam ser abordados.

Ao possibilitar liberdade de expressão e arte sobre todos os temas, esses assuntos não são banalizados, pelo contrário: dá-se o ensejo de falar sobre eles e conhecê-los.

Em um ambiente em que a liberdade de expressão é devidamente respeitada, abre-se oportunidade para repudiar ideias ruins. Quando houve uma manifestação de apoio explícito ao nazismo na cidade norte-americana de Charlottesville, em 2017, por exemplo, o ato de algumas dezenas de nazistas colocou todo o movimento em debate, sendo majoritariamente rechaçado em todo o mundo. Até mesmo ideias ruins combatem-se com a liberdade de expressão. Ao possibilitar diferentes abordagens sobre todos os temas, esses assuntos não são banalizados, pelo contrário: dá-se o ensejo de falar sobre eles e conhecê-los.

A opinião da sociedade sobre o que é uma fala aceitável ou não varia de acordo com o tempo. É natural, a cultura muda. A propósito, a liberdade de trocar opiniões é fundamental para que isso aconteça. E é por isso que a liberdade de expressão não deve ser encarada apenas como um simples direito, mas uma forma pela qual a sociedade pode promover mudanças: o que hoje é considerado bom e virtuoso, amanhã pode ser considerado ruim e reprovável.

Assim, o escritor inglês George Orwell fez uma análise acertada ao registrar em seus ensaios que, “se a liberdade significa algo, será sobretudo a liberdade de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir”. A postura se assemelha à máxima do filósofo Voltaire, sobre defender até a morte o direito de expressão alheio ainda que se discorde das proposições.

Além disso, liberdade de expressão plena protege contra a possibilidade de haver abuso de autoridade por parte da Justiça e contra a ingerência estatal na área do pensamento humano. Quando damos ao Estado o poder de censurar ou prender alguém pelo que fala, nada garante que nós não vamos ser os próximos a ser presos.

O maior teste quanto à defesa dos direitos individuais não é advogar pela liberdade de quem se concorda, mas sim estar diante da decisão acerca da liberdade dos que são divergentes.

Em 2016 o então pré-candidato republicano Donald Trump foi alvo de uma petição que propunha baní-lo do Reino Unido, reunindo mais de meio milhão de assinaturas. Ao receber um prêmio especial da associação PEN International, por defender a liberdade de expressão, a escritora JK Rowling mencionou o abaixo-assinado, mas foi interrompida por aplausos da plateia. "Só um momento", reagiu Rowling, e asseverou:

"Eu acho que quase tudo que o Sr. Trump diz é condenável. Eu o considero ofensivo e preconceituoso, mas ele tem meu total apoio a vir a meu país e ser ofensivo e preconceituoso nele. Sua liberdade de expressão protege a minha liberdade de chamá-lo de 'preconceituoso'. Sua liberdade garante a minha".

Da mesma forma, quando a Ku Klux Klan teve seu direito contestado de marchar nas ruas do estado do Texas na década de 1960, a União pelas Liberdades Civis Americanas escalou o advogado negro Anthony P. Griffin para defendê-los. Griffin não via problema em defender a liberdade de expressão de racistas, pois era esse mesmo direito que permitia que ele, integrante da Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor, criticasse a KKK.

Ambos entendem que a liberdade de expressão de criticar Trump e racistas, está pautada na mesma liberdade de Trump da KKK ser preconceituosos.

  • A liberdade de expressão precede qualquer Constituição

A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos é um dos grandes pilares em defesa da liberdade de expressão em todo o mundo. O texto é claro: o Congresso não tem o poder de fazer leis que restrinjam a liberdade de expressão, o exercício de uma religião ou a livre associação.

Já no Brasil, o anonimato não é protegido, em contrariedade a países cujo ordenamento jurídico entende que indivíduos com opiniões impopulares não podem se sentir compelidos a ficarem calados, tendo como alternativa a perseguição. Por aqui, a proteção ao discurso conta com muitas limitações.

Enquanto nos Estados Unidos a Suprema Corte decidiu que ocupantes de cargos públicos só podem processar veículos de notícias se provarem a má-fé dos autores, no Brasil o jornal O Estado de S. Paulo está proibido desde 2009 de falar dos desdobramentos da Operação Boi Barrica, que atinge José Sarney e sua família, por força de uma uma liminar, que é um instrumento jurídico cautelar. Em decisão de maio de 2018, o Ministro Ricardo Lewandowski negou recurso e manteve a censura.

Como manifesta preocupação a organização Repórteres Sem Fronteiras. A Constituição brasileira restringe ainda a atuação para serviços de radiodifusão ao determinar a obrigatoriedade de aprovação do estado brasileiro. Isso blindou a entrada de estrangeiros no mercado. Consequência: boa parte dos veículos de radiodifusão se tornou dependente do dinheiro estatal e concentrado nas mãos de políticos.

A liberdade de expressão precisa ser vista a partir de um direito natural, tal como o direito à vida. Ela precede qualquer constituição, independentemente se ela protege ou mitiga a liberdade de expressão. Indivíduos precisam ter o direito de se expressar independentemente de credo, opinião política e ideologias.

Não à toa a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, consagra a liberdade de expressão de opinião no dispositivo legal internacional, reafirmando o pluralismo das ideias como requisito para o crescimento da humanidade.

  • Criminalizar as expressões é antidemocrático

A aclamada obra “Como as democracias morrem”, dos cientistas políticos que ministram aulas em Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt é categórica sobre os riscos para as instituições democráticas ao se criminalizar difamação ou injúria.

Os autores contam que em 1798 os federalistas aprovaram a chamada “Lei de Sedição”. Contudo, embora em tese criminalizasse apenas afirmações falsas contra o governo, sua construção foi tão vaga que na prática ela criminalizou qualquer crítica contra o governo. A lei foi utilizada para atacar jornais e ativistas do Partido Republicano, até sua revogação.

A obra alerta sobre o perigo de governantes que possuem a propensão a restringir liberdade civis de oponentes ou da mídia, além de apoiar leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas.

Escrevem os autores: “Uma coisa que distingue autocratas de líderes democráticos contemporâneos é sua intolerância à crítica e a disposição de usar seu poder para punir aqueles que – na oposição, na mídia ou na sociedade civil – venham a criticá-los.”

Num comício em Fort Worth, Texas, em 2016, Trump prometeu:

“Vou ampliar o escopo de nossas leis de calúnia e difamação para que, quando eles escreverem artigos propositadamente negativos, horríveis e falsos, nós possamos processá-los e ganhar muito dinheiro … Para que quando o New York Times escrever matérias tendenciosas tentando mudar a opinião das pessoas, o que é uma desgraça total, ou quando o Washington Post … escrever uma dessas matérias, nós possamos processá-los.”

As leis que criminalizam expressões são frequentemente utilizadas por governos a partir de sua influência sobre árbitros — como juízes — a fim de marginalizar “legalmente” a mídia de oposição, com frequência por meio de processos de calúnia ou difamação. Quando no poder, o presidente equatoriano Rafael Correa utilizou essa tática, por exemplo. Em 2011 ele ganhou em ação 40 milhões de dólares num processo de calúnia contra os proprietários e o editor do jornal El Universo, que publicara um editorial que denunciava suas posturas autoritárias o rotulava de “ditador”. O processo teve depressor sobre a imprensa, que passou a praticar de autocensura para evitar retaliações.

Os autores também advertem para o perigo de declarações de governantes contra a mídia, como discursos que prometem puní-la. Muitos desses políticos cruzam a fronteira entre palavras e ação.

Quando meios de comunicação são atacados, outros entram em alerta e passam a praticar a autocensura: a escalada de ataques de Hugo Chávez em meados da década de 2000 provocou uma das maiores redes de televisão do país, a Venevisión, considerada pró-oposição, mal cobriu a oposição durante a eleição de 2006, dando ao presidente Chávez 84% do tempo de cobertura — quase cinco vezes mais do que aos seus rivais —, e contribuindo para sua vitória naquele ano. Posteriormente a Venevisión decidiu colocar em sua grade programas de astrologia e novelas, acabando com a cobertura de política.

Já no livro “Por que as Nações Fracassam”, de Daron Acemoglu e James Robinson, há uma defesa de que a liberdade de expressão plena integra o que eles denominam de “instituições inclusivas”. Isso significa que ao criar um ambiente propício para debates e impossibilitar o controle de governos sobre formadores de opinião e mídias, ela ajuda em um processo de fiscalização e supervisão do poder governamental, criando um círculo virtuoso que resulta em maior prosperidade e melhoria de qualidade de vida e bem estar para as nações.

  • Mesmo sob pretexto de “combate às fake news” não deve haver cerceamento à liberdade de expressão

Antes das eleições de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral manifestou preocupação com a influência que as Fake News poderiam ter sobre a disputa eleitoral. Na época, o Ministro Luiz Fux chegou a afirmar que o pleito poderia ser anulado em virtude delas.

E as notícias falsas são particularmente prósperas no Brasil: segundo o especialista em Big Data, Renato Dolci, o país é líder mundial, tanto na produção quanto no consumo, de conteúdo identificado como fake news. Em 2017, foram cerca de 10 bilhões de cliques — mais do que em qualquer portal de notícias brasileiro.

O ideal é que o debate público seja limpo, sem a adulteração de fatos e que todas as informações sejam devidamente verificadas. A realidade, no entanto, é mais complexa: há notícias que são evidente e objetivamente falsas; já outras exigem uma avaliação mais subjetiva.

O TSE, à procura de uma forma de lidar com as notícias falsas, questionou como o FBI tratou a problemática nos Estados Unidos. Teve como resposta que não é papel do governo combater fake news, mas apenas lidar com possíveis tentativas de interferências externas nas eleições — uma questão de segurança nacional.

Há quem defenda que alguma forma de controle seja exercida pelo governo, todavia, isso implicaria em decisões sem a transparência adequada e de maneira coercitiva. O efeito disso é que, sob o pretexto de combate à desinformação, já há dezenas de projetos de lei no Congresso com o objetivo de criminalizá-las.

Vale ressaltar que o próprio mercado vem buscando solucionar a questão a partir do oferecimento de ferramentas que possibilitem distinguir mais facilmente o que é verdadeiro do que é falso para que o público, gradativamente, aprenda a lidar com a indústria de notícias falsas. São sites, agências de checagens de fatos e seções específicas de jornais destinadas à fiscalização de informações. Essa opção, além de preservar a liberdade de expressão e os direitos individuais, também modera de forma espontânea a credibilidade dos veículos de mídia frente ao público.

De mais a mais, a influência das fake news tende a ser superestimada: as pessoas que são convencidas por fake news tendem a ser indivíduos já partidários e que, afetados pelo viés de confirmação, apenas reforçam sua própria visão ideológica. O centro (que está sob disputa em termos de votos) é pouco abalado. Destarte, o impacto eleitoral das notícias falsas é menor do que se faz parecer. Na eleição de Donald Trump, por exemplo, o impacto no que tange à mudança de voto teria sido na ordem de 0,02% dos votos.

É preciso estar alerta para quaisquer políticas que visem ao embaraço à liberdade de comunicação interpessoal. A alternativa de controle governamental trata-se sempre de uma tentativa terceirizada de censura, podendo ser utilizada por quem comanda o Estado para conter narrativas que contrariem seu projeto de poder. Não precisamos de um Ministério da Verdade, como o da obra distópica 1984, mas sim de plena liberdade de expressão.

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