A Cambridge Analytica, que participou da campanha de Donald Trump e tentou fazer parceria com candidatos às eleições de 2018 no Brasil, obteve dados sigilosos de 50 milhões de usuários do Facebook e usou as informações para ajudar a eleger o presidente americano em 2016.
A informação sobre o vazamento foi divulgada neste sábado (17) pelo jornal americano The New York Times e pelo britânico The Guardian e confirmada pela própria rede social, que disse ter banido os envolvidos. A revelação joga luz no papel da Cambridge Analytica na eleição de Trump e aumenta o questionamento sobre a privacidade dos dados no Facebook. Eis aqui seis pontos para você entender o caso.
1. Como a empresa conseguiu dados de usuários do Facebook?
Em 2014, a Cambridge Analytica ofereceu um aplicativo de teste de personalidade no Facebook chamado “thisisyourdigitallife” (“esta é a sua vida digital”, em tradução livre).
Cerca de 270 mil pessoas instalaram o aplicativo em troca de US$1 ou US$2 por download. O aplicativo “raspou” informações de seus perfis no Facebook, bem como informações detalhadas dos perfis de seus amigos (recurso agora desativado pelo Facebook, mas que era o modo padrão para todos os usuários em 2014, a não ser que tivessem lido todas as letras pequenas na hora de “consentir” a política de privacidade e tivessem desabilitado esse recurso). O Facebook forneceu então esses dados aos criadores do aplicativo que, por sua vez, passou esse conteúdo para a Cambridge Analytica, o que tecnicamente não é ilegal.
Como essas pessoas tinham centenas de amigos, o número de pessoas cujos dados foram colhidos atingiu a marca de 50 milhões. A maioria dessas pessoas não fazia ideia de que seus dados estavam disponíveis (os amigos não tinham instalado o aplicativo e não tinham desabilitado o recurso que permitia a coleta de dados).
São muitas informações envolvidas. O Facebook não registra apenas cliques e compartilhamentos, mas coleta histórias de navegação e chega a criar dados com informações financeiras de usuários (embora alguns países tenham regulamentos que bloqueiam parte disso). A rede social também cria “perfis sombra” de não usuários: ou seja, mesmo que alguém não esteja no Facebook a empresa pode ter dados colhidos dessa pessoa.
2. O que é Cambridge Analytica?
Cambridge Analytica é uma empresa de dados que promete aos clientes informações sobre o comportamento dos consumidores - ou dos eleitores.
Do ponto de vista comercial, isso significa dispor de ferramentas para segmentação de audiência e direcionamento desses diferentes públicos em "múltiplas plataformas".
Do ponto de vista político ocorre basicamente a mesma coisa, mas com uma diferença: enquanto os anunciantes geralmente segmentam os consumidores como grupos, as campanhas políticas precisam atingir pessoas específicas - eleitores receptivos a uma determinada mensagem.
"Combinando a precisão da análise de dados com os insights da psicologia comportamental e a melhor tecnologia de publicidade individualmente direcionada", promete o site da empresa, "você pode executar uma campanha verdadeiramente de ponta a ponta".
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Por trás da Cambridge Analytica estão Robert Mercer, que investiu milhões em esforços para remodelar a política conservadora (como o financiamento a Breitbart News), e Alexander Nix, diretor de eleições no SCL Group, uma empresa britânica de pesquisa comportamental e de comunicação estratégica.
Em 2013, eles fizeram uma parceria durante as eleições para governador na Virgínia, trabalhando na campanha do republicano Ken Cuccinelli, que acabou perdendo. Porém, Mercer e Nix seguiram com a estratégia de utilizar dados para fins políticos ao criarem a Cambridge Analytica.
3. Por que a Cambridge Analytica foi banida do Facebook?
Porque o esquema descrito acima, de reunir dados por meio de aplicativos, foi descoberto, e o Facebook ficou tão mal na história que até as suas ações na bolsa de valores despencaram.
A maioria das empresas que coleta dados sobre o comportamento do consumidor rastreia informações de outras companhias, como supermercados, assinaturas de revistas, etc. Já o Facebook tem a vantagem de saber exatamente aquilo que seus usuários gostam, quando eles clicam no botão "curtir". Por isso, o banco de dados pessoais do Facebook pode ser o maior do mundo, já que quase um terço do globo possui uma conta na rede social.
Para utilizar esses dados, um funcionário da Cambridge Analytica , Christopher Wylie, pediu ajuda ao pesquisador Aleksandr Kogan, na Universidade de Cambridge. Kogan então criou o aplicativo citado acima e, em seguida, usou o Mechanical Turk da Amazon, uma plataforma que permite que os desenvolvedores contratem seres humanos (chamado de turkers) para fazer tarefas simples em troca de algum dinheiro.
O The Intercept explicou assim como tudo funcionava: "A tarefa publicada pela ‘Global Science Research’ [no Mechanical Turk] pareceu comum, pelo menos à primeira vista. A empresa ofereceu aos turkers US$ 1 ou US$ 2 para que respondessem a uma pesquisa online. Mas havia alguns requisitos adicionais. Primeiro, eles estavam interessados apenas em turkers americanos. Segundo, os turkers tiveram que baixar um aplicativo do Facebook antes de cobrar o pagamento. Tal aplicativo ‘baixaria algumas informações sobre você e sua rede, demografia, curtidas de categorias, lugares, pessoas famosas, etc., suas e de seus amigos’”.
Acontece que a Global Science Research era, na verdade, Kogan. Usando esse método, ele coletou informações sobre dezenas de milhões de americanos. Ao construir seu aplicativo no Facebook, Kogan havia prometido que os dados seriam usados apenas para fins de pesquisa e permaneceriam anônimos.
Quando o The Guardian informou, no final de 2015, sobre a relação entre Kogan e a Cambridge Analytica, o Facebook a prometeu investigar a situação.
Ao anunciar a suspensão da Cambridge Analytica, o Facebook responsabilizou Kogan de usar de maneira deturpada suas ferramentas e explicou que em 2015 exigiu que Kogan, SCL e Cambridge excluíssem seus dados do Facebook. Mas, na semana passada, veio à tona a informação de que a Cambridge Analytica ainda possuía alguns dados de usuários do Facebook - o que a empresa nega.
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4. Onde a campanha Trump se encaixa nesse esquema?
A equipe digital de Trump foi dirigida por Brad Parscale. Depois da primária, a campanha de Trump demorou para engrenar e, até meados de 2016, houve um debate sobre como investir em marketing digital. Com o apoio de Parscale, a campanha contratou a Cambridge Analytica, apesar das aparentes objeções do presidente do comitê de campanha, Paul Manafort. A decisão pode ter sido facilitada, também, pelo papel da Cambridge Analytica na campanha bem-sucedida da Brexit no Reino Unido naquele mesmo mês.
A atuação da empresa de dados foi considerada fundamental para a contratação de Stephen Bannon (do Breitbart) e Kellyanne Conway.
Ao longo dos últimos meses da campanha, a equipe da Parscale investiu fortemente em publicidade no Facebook, a qual foi baseada nos dados da Cambridge Analytica.
Pouco antes das eleições, o site Bloomberg contou como Parscale gerenciou o cruzamento de dados da Cambridge e do Partido Republicano.
"Parscale estava construindo sua própria lista de possíveis eleitores do Trump, além do alcance do Comitê Nacional Republicano", contou a publicação. "Os modelos estatísticos de Cambridge Analytica isolaram os prováveis apoiadores de Trump, os quais Parscale bombardeou com anúncios no Facebook, enquanto a campanha comprou listas de e-mail dos grupos como o Tea Party para prospectar outros eleitores em potencial".
5. O procurador especial Robert Mueller está rastreando todas essas relações?
Pelo visto, sim.
Dado que a campanha Trump e a Cambridge investiram tanto na segmentação de usuários,e dado que sabemos que os russos tentaram aproveitar os anúncios e mídias sociais do Facebook para influenciar os eleitores, é natural querer saber se esses dois esforços tiveram alguma coordenação conjunta.
Em julho, o grupo de mídia McClatchy relatou que a equipe de Mueller estava procurando esse elo.
"Parece ter havido uma cooperação significativa entre a máquina de propaganda online da Rússia e os indivíduos nos Estados Unidos que conheciam sobre onde segmentar a desinformação", disse Mike Carpenter, ex-funcionário do Pentágono, em entrevista à publicação.
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6. O que se sabe até agora sobre uma possível conexão com a Rússia?
Segundo o Times, em 2014 e 2015, o grupo SCL contatou a gigante russa do petróleo Lukoil. O jornal afirmou que a empresa "estava interessada em saber como os dados foram utilizados para direcionar os eleitores americanos”.
O artigo também observa que a Cambridge Analytica incluiu questões sobre o presidente russo, Vladimir Putin, em pesquisas em grupos focais de 2014, embora seja necessário observar que este também foi o período em que as intervenções da Rússia na Crimeia tornaram-se centrais nos debates sobre a política externa americana.
No final do ano passado, antes da entrar para a campanha presidencial de Trump, o Daily Beast informou que Nix havia contatado Julian Assange, do WikiLeaks, para hospedar e-mails roubados do presidente da campanha de Hillary Clinton a fim de criar um banco de dados pesquisável. Assange recusou a oferta. Acredita-se que esses e-mails tenham sido roubados por hackers russos ligados às agências de inteligência do país.
Uma outra ligação que vale a pena mencionar. Kogan, o pesquisador de Cambridge que desenvolveu a ferramenta que levou à suspensão da empresa do Facebook, também teria recebido uma doação do governo russo para pesquisar redes sociais.
"Nada do que eu fiz no projeto russo era, de qualquer maneira, relacionado a Cambridge Analytica", disse Kogan ao The Guardian.