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O veganismo, um dos movimentos mais controversos da atualidade, completou 80 anos em 2024 com cerca de 79 milhões de adeptos no mundo. Se, por um lado, seu crescimento é expressivo, por outro, a ideologia enfrenta a polarização entre veganos de direita e de esquerda.
Embora tenha surgido sob a bandeira do amor, o movimento veganista foi marcado por conflitos internos desde sua criação, em plena Segunda Guerra Mundial. Naquele período, seu fundador, o marceneiro Donald Watson, foi praticamente expulso da Sociedade Vegana devido à sua postura pacífica no ativismo, em contraste com membros defensores de uma postura mais bélica.
As divergências entre veganos atravessou décadas e continentes. No Brasil, onde a estimativa é de sete milhões de adeptos, as tensões aumentaram durante a campanha presidencial de 2018, com perseguições, difamações e boicotes.
Ataques e depressão
Um dos casos mais emblemáticos foi o da NoMoo, uma das primeiras marcas de queijos vegetais do país, fundada pelos cariocas Marcelo Doim e Nathália Pires. Segundo o casal, as agressões surgiram após uma influenciadora divulgar que o empresário apoiava, em seu perfil pessoal, o então candidato Jair Bolsonaro (PL), à época filiado ao PSL.
“Horas depois, o Instagram da NoMoo começou a ser atacado”, relembra Marcelo. “Diziam coisas horríveis sobre nós e frases do tipo: ‘Como pode uma empresa vegana apoiar o coiso?’. Lembro de um sujeito confessar: ‘Agora tenho um bom motivo para parar de roubar o queijo no supermercado’.”
Marcelo revelou que influenciadores renomados chegaram a ligar para os restaurantes clientes, em uma ação coordenada de boicote aos seus queijos.
“Foi um verdadeiro terrorismo”, afirmou. “A ex-BBB Hanna também fez lives incitando os ataques à NoMoo, e hoje ela voltou a comer carne.”
O casal diz ter entrado em depressão. Nathália estava no final de uma gravidez de risco, seu bebê não havia desenvolvido o ventrículo direito do coração, e a antecipação do parto colocaria a criança em risco. Apesar da pressão emocional, ela deu à luz no tempo certo. Lucas faleceu oito meses depois, nos braços do pai.
“Era eu quem respondia pela empresa nas redes sociais e dizia a eles para parar com os ataques, que eu estava com uma gestação delicada”, contou Natália. “Mesmo assim, não houve empatia. Foi bem cruel, sofri muito.”
De acordo com o casal, o apoio veio de pessoas desconhecidas, todas veganas conservadoras, que, ao se identificarem nas redes sociais, se organizaram em grupos no WhatsApp como “Coxinhas de Jaca”, “Veganos da Direita” e “BolsoVegans”.
Os empresários retiraram o termo “vegano” dos rótulos e adotaram “plant-based”. Hoje, 88% de seu público é de pessoas intolerantes à lactose.
Isolamento
Protetora de animais há 40 anos, a paulista Magali Navarro explica que muitos de seus amigos veganos de direita preferem não usar mais o termo para definir sua escolha pessoal, justamente para não serem “confundidos com esquerdistas”.
“A própria comunidade rotulou o veganismo e criou um perfil para ser vegano”, aponta Magali. “Era o único movimento exclusivamente em defesa dos animais e o ser humano conseguiu poluí-lo com essa guerra de esquerda e direita. No fundo, não pensaram nos animais, que são os únicos realmente prejudicados com a polarização.”
A catarinense Sabine Fontana, fundadora do projeto Adote Um Orelhudo, de proteção aos coelhos, é vegana desde 2007 e destaca o isolamento dos adeptos da direita.
“Enquanto os veganos de esquerda afirmam que não podemos ser veganos por sermos de direita, os ‘carnistas’ da direita têm antipatia pelo movimento por ignorar que há muitos conservadores dentro dele”, garante Sabine. “Apanhamos dos dois lados. A direita caiu na manipulação da esquerda no sequestro da causa.”
As celebridades e a ONG
No Brasil, para o grande público, esse estilo de vida é representado por nomes controversos como a apresentadora Xuxa Meneghel, a ativista Luisa Mell e o ator Dado Dolabella. Na carona, outras celebridades fazem ativismo relâmpago, como a funkeira Anitta, cujo veganismo durou apenas um ano.
A principal ONG do setor é a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), onde orbitam essas celebridades e influenciadores, e que, nos últimos anos, demonstra orientação à esquerda.
A reportagem conversou com a socióloga e tradutora Marly Winckler, que fundou a SVB em 2003. Afastada da organização desde 2015, após presidir por 12 anos, a ativista é atualmente presidente da União Vegetariana Internacional.
“Acho um tiro no pé o movimento vegano se posicionar como esquerda ou direita”, afirmou. “Temos que atrair a direita e a esquerda. A organização é neutra, não pode ser partidária. Eu não quero saber qual é a religião, o partido ou a opção sexual da pessoa, quero é atrair ela para o veganismo.”
“O estatuto da SVB que eu criei é sem distinção de qualquer preferência”, acrescentou. “Isso deve ser seguido. Se a população está dividida no Brasil, por que deixar metade dela de fora da minha causa? Isso só prejudica. É matemática! Não quero só 50% da população para o meu lado. Eu quero 80%, 90%, 100%.”
Pautas confundidas
A geopolítica do Oriente Médio também criou outra divisão na comunidade vegana. Em 2015, o ativista norte-americano de origem judia Gary Yourofsky, um dos mais influentes do mundo, foi alvo de ataques ao afirmar que “os palestinos eram o grupo de pessoas mais loucas do planeta”.
Com quase três mil palestras que motivaram milhares de pessoas a abandonar produtos de origem animal, Gary passou de “herói” a “vilão”, sendo acusado de “racista”.
“Israelenses viveriam felizes com os palestinos, mas o inverso não é verdade”, afirmou. “O que você acha que o Hamas faria se tivesse acesso a armas nucleares? Usaria em um segundo e sem misericórdia.”
De acordo com a organização israelense Vegan Friendly, a influência de Gary quintuplicou o número de adeptos e contribuiu para tornar Israel o país mais vegano do mundo, com inúmeros restaurantes à base de plantas, especialmente em Tel-Aviv.
Até o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu contou que ele e sua esposa, Sara, reduziram consideravelmente o consumo de carne devido aos livros e palestras sobre veganismo e direitos dos animais.
No entanto, em 2017, ainda atacado, Gary anunciou sua retirada da cena vegana: “Meu tanque está completamente vazio, então não estarei mais online ou ativo de nenhuma forma”, falou. "Eu disse que os palestinos eram o grupo mais louco do planeta. Não é verdade. A comunidade vegana apologista-pacifista-interseccionalista é, de longe, a mais louca.”
Os veganos entrevistados por esta reportagem foram unânimes em afirmar que um dos maiores prejuízos ao veganismo é a mistura com outras pautas, como racismo, feminismo, LGBTQ+, meio ambiente e conflitos entre nações.
"A política humana [das minorias] não está nem aí para os animais”, destacou a protetora Magali. “Então, por que trazer movimentos humanos para dentro do veganismo, se eles não levam o veganismo para dentro deles?”
O passado se reflete no presente
O marceneiro e pioneiro Donald Watson era um membro ativo da Sociedade Vegetariana Inglesa (fundada em 1847) quando, em 1944, propôs a criação de um novo termo para identificar aqueles que aplicavam o princípio da empatia a todas as espécies animais, para além da alimentação.
No ano seguinte, acompanhado de sua esposa Dorothy e mais quatro amigos, ele fundou a Vegan Society (Sociedade Vegana), com sede em sua residência.
Ser vegano significa não consumir carne, ovos, leite, laticínios e mel, além de não usar couro, lã e seda. Eles também evitam produtos de higiene, limpeza e cosméticos testados em animais, assim como práticas culturais e esportivas que envolvam exploração de bichos, como circos e rodeios.
Watson dizia que o racionamento de alimentos, imposto pela guerra, tornava ainda mais difícil a divulgação da filosofia. Em 1943, a tuberculose atingiu 40% das vacas leiteiras da Grã-Bretanha e o ativista usou este fato para reforçar a tese de que uma dieta livre de produtos de origem animal trazia benefícios à saúde ao evitar alimentos contaminados.
Watson adotava uma postura cautelosa em seu ativismo. Por essa razão, quatro anos após fundar a Sociedade, perdeu a presidência para Leslie Cross, um membro que se tornaria seu opositor.
Descrito como “extremista e narcisista”, Cross, que havia aberto uma fábrica de queijos vegetais, era mais agressivo e reivindicava para si a criação do movimento. Ele determinou que aqueles que não fossem combativos deveriam se afastar da Vegan Society e não poderiam ser considerados veganos.
Assim, membros alinhados à postura de Watson deixaram a organização. O fundador só retornou 44 anos depois, em 1988, quando Cross já havia falecido.
Adeus com girassóis
Em entrevista três anos antes de sua morte, Watson relembrou como se tornara vegetariano aos 12 anos, após presenciar seu tio preferido matar um leitão a facadas, ignorando os gritos de desespero dos animais no curral.
“A partir daquele dia, tive que ressignificar as fazendas e os tios”, disse. “Agora entendo que fui um instrumento para iniciar um grande movimento, que não apenas poderia mudar o curso das coisas para a humanidade e para toda a criação, mas também alterar a expectativa do homem de sobreviver por muito mais tempo no planeta.”
Watson faleceu em 16 de novembro de 2005, aos 95 anos. Naquela altura, 250 mil ingleses e 2 milhões de norte-americanos já se identificavam como veganos. Seu caixão foi coberto por girassóis, flor símbolo do veganismo.