Criança com suspeita de cólera em Saná, capital do Iemên. A crise sanitária e de alimentos causada pelo bloqueio saudita ao país provocou um surto mortal de cólera. A cada minuto um paciente dá entrada no maior hospital de Saná| Foto: MOHAMMED HUWAIS/AFP

O circo interminável que é a presidência de Donald Trump está desviando a atenção de problemas de todo tipo que precisam urgentemente dela, desde a reforma da saúde até o crescimento paulatino do engajamento dos EUA na Síria. Mesmo assim, é chocante que tão pouca atenção esteja sendo dada a uma crise humanitária que a ONU descreve como a pior desde 1945: o risco de que 20 milhões de pessoas em quatro países enfrentem fome generalizada nos próximos meses e que centenas de milhares de crianças morram de inanição. 

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Você ainda não ouviu falar disso? Aí está o problema. De acordo com a ONU e entidades de assistência privadas, os esforços para fornecer alimentos suficientes para frear as crises simultâneas no Sudão do Sul, Somália, Iêmen e Nigéria estão deixando tragicamente a desejar, em parte porque devido à insuficiência de fundos recebidos de governos e doadores privados. Dos US$4,9 bilhões que o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha) pediu em fevereiro para atender às necessidades imediatas desses países, apenas 39% tinham sido doados até a semana passada. 

Desinteresse

Criança com suspeita de cólera recebe tratamento em hospital de Saná. A doença matou 315 pessoas no Iêmen somente no mês de maio, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) 
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Essa falta de assistência pode ser atribuída ao desinteresse dos doadores ou às dimensões da ajuda necessária. Mas parte do problema é uma simples falta de consciência dele. 

“Parece que não conseguimos que ninguém preste atenção ao que está acontecendo”, diz Carolyn Miles, presidente e executiva-chefe da Save the Children. 

“Nunca antes vi nada como isso”, comenta David Beasley, ex-governador da Carolina do Sul e atual diretor do Programa Mundial de Alimentação das Nações Unidas (PMA). 

“Nos últimos oito a dez meses o mundo tem estado com sua atenção voltada a outro lugar. É tudo Trump, Trump, Trump. Sendo que nós, aqui, estamos vivendo uma crise.” 

Os números que Miles e Beasley citam de cabeça deveriam comandar a atenção geral. Por exemplo: 14 milhões de crianças correm o risco de morrer de inanição nos quatro países, das quais 600 mil “podem morrer nos próximos três a quatro meses”, segundo Beasley. 

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No Iêmen, onde a fome atormenta 17 milhões de pessoas, apenas 3,3 milhões de pessoas estão recebendo rações alimentares completas, sendo que o PMA queria alimentar 6,8 milhões este mês. Enquanto isso surgiu uma epidemia de cólera, que já atingiu mais de 200 mil pessoas. Miles diz que uma criança é infectada a cada 35 segundos. 

“Insegurança alimentar grave”

Iemenitas procuram objetos no meio de destroços causados por um bombardeio aéreo da coalização liderada pela Arábia Saudita. Quatro civis, incluindo dois adolescentes, morreram. 

Foram feitos alguns avanços: no Estado de Unity, no Sudão do Sul, que este ano ultrapassou os critérios da ONU para definir uma região em situação de fome generalizada, o alerta foi removido na semana passada, após algumas entregas grandes e pontuais de alimentos. Também na Somália as operações de assistência vêm sendo mais eficazes que durante o último período de carestia declarada, em 2011. Mesmo assim, a situação geral nos dois países ainda é assustadora. Nada menos que 50% da população do Sudão do Sul, ou 6 milhões de pessoas, devem estar em situação de “insegurança alimentar grave” nas próximas semanas, um aumento de 500 mil pessoas em relação a maio. 

A falta das chuvas previstas para a primavera na Somália pode empurrar o país para uma situação de fome generalizada até julho, diz Miles. Mas o PMA diz que, se não receber mais assistência, pode ser obrigado a cortar a ajuda a 700 mil somalis nas próximas semanas. 

Não obstante a postura da administração Trump contrária à doação de assistência a outros países, os EUA não são o problema aqui. Até o início de junho Washington já havia prometido quase US$1,2 bilhão em assistência emergencial aos quatro países, incluindo um suplemento adicional de US$329 milhões anunciado em 24 de maio. E há mais ajuda pela frente, graças a uma coalizão bipartidária no Congresso comandada pelo senador Lindsay O. Graham, que inseriu US$990 milhões no orçamento deste ano a título de ajuda emergencial para combater a fome. 

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As autoridades assistenciais disseram que conseguir que o dinheiro venha de Washington é um processo demorado, pelo fato de a nova administração ainda não ter preenchido postos importantes na Usaid (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional). E, para o ano que se inicia em outubro, o orçamento de Trump propõe um corte drástico de US$1 bilhão na assistência alimentar. Mas Graham e outros legisladores chaves já deixaram claro que isso não vai acontecer. “Apesar de todo o caos”, Beasley me disse, “democratas e republicanos ainda unem suas forças para ajudar crianças que passam fome”. 

Arábia Saudita devastadora

Garoto iemenita senta-se em um saco de comida doado por uma organização de caridade local durante o Ramadã. O país passa por uma crise alimentar grave 

O líder do PMA está mais impaciente com outros países, especialmente os países do Golfo Pérsico que contribuíram tanto para criar a crise no Iêmen. A Arábia Saudita, que lidera a intervenção militar que desde 2015 vem devastando um país já pobre, impõe um bloqueio parcial ao porto crucial de Hodeida, por onde são importados 70% dos alimentos consumidos no Iêmen. Os sauditas prometeram US$227 milhões de ajuda emergencial para combater a fome no Iêmen este ano, mas até agora entregaram apenas 30% desse valor. Os Emirados Árabes Unidos nem sequer constam da lista de doadores do Ocha. 

“A Arábia Saudita deveria financiar 100% das necessidades humanitárias do Iêmen”, diz Beasley. “Sem sombra de dúvida.” 

No passado, situações de fome generalizada atraíam muita atenção no Ocidente. Astros do rock comandavam campanhas de assistência e redes de televisão produziam documentários especiais. ONGs americanas estão procurando maneiras de dinamizar a atenção dos Estados Unidos neste verão. Milhões de vidas podem depender de elas conseguirem chamar a atenção do público na era dominada por Trump.

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Tradução de Clara Allain