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A Califórnia tentou viver sem polícia. Aprendeu do pior modo que isso não dá certo

Veículo da polícia de Los Angeles queima em Los Angeles, Califórnia, depois de ser incendiado por manifestantes após a morte de George Floyd em 30 de maio de 2020. (Foto: MARIO TAMA/AFP)

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O colapso temporário das autoridades em muitas cidades americanas e as propostas de “desfinanciar a polícia” de forma a tornar esse colapso permanente ilustram uma verdade universal: quando a autoridade do governo se dissolve, as pessoas formam suas próprias forças armadas para execução da ordem.

Não é uma utopia de paz e amor: em vez disso, você terá vigilantes justiceiros, pelotões e linchamentos. Não será bonito; em Kenosha, no estado de Wisconsin, já foram registrados tiroteios. Para que o governo retome o controle será necessário a aplicação de mais força.

História

Então vamos voltar aos anos 1850, à cidade de São Francisco, para entender como os americanos já viram essa história acontecer.

São Francisco teve um início tardio, mas cresceu rapidamente. Os europeus só chegaram à área da baía em 1769, e o primeiro assentamento permanente, civil, não-nativo-americano data apenas de 1835. A conquista americana da Califórnia em 1847 e a Corrida do Ouro entre 1848 e 1849 mudaram este cenário em um piscar de olhos, transformando um lugarzinho decrépito de 150 habitantes em uma verdadeira cidade de 25.000 pessoas em 1849 e então 50.000 em 1853.

Alguns desses novos são-franciscanos vieram em busca de um novo começo. Condenados e irlandeses rebeldes fugiram para lá, às vezes com nomes falsos. Em 1850 a Califórnia começou a primeira de muitas voltas em sua história contra imigrantes controversos, aprovando uma Lei Contra a Importação de Criminosos, que mirava nos capitães de navio que contrabandeavam condenados sem documentos. O alvo principal da lei era a Austrália; sua reputação como colônia penal a precedia, nem sempre de forma injusta.

Em fevereiro de 1851, quando os roubos em rodovias, as gangues violentas e a desordem proliferaram, os cidadãos formaram o Comitê de Vigilância de São Francisco, com o ex-jornalista mórmon Sam Brannan manipulando eventos para se colocar como um dos cabeças do movimento. Os julgamentos locais do comitê, com direito a enforcamentos públicos, que ajudaram a popularizar o termo “vigilante”, visavam proeminentemente a australianos conhecidos ou suspeitos. Em maio de 1851, a cidade foi ainda mais devastada pelo último de uma série de incêndios; os suspeitos de darem início ao fogo foram presos, o que reforçava ainda mais o peso da mão do Comitê de Vigilância.

Para recuperar o controle sobre ambos criminosos e vigilantes, os elementos conservadores da lei e da ordem recorreram ao primeiro prefeito de São Francisco, um cidadão nascido na Pensilvânia havia 31 anos, John W. Geary. Ele lutou na Guerra do México e serviu como governador militar no Novo México, e não estava lá para brincadeira. Mas Geary tinha um fraco pelos rebeldes irlandeses: o primeiro deles a chegar foi recebido como um herói por Geary, Brannan e pelo vice-governador David Broderick em sua chegada em 1851.

A polícia dos “vigilantes”

Nem todos esses novos californianos foram acolhidos ou protegidos pela lei. Havia apenas cerca de 500 imigrantes chineses entre os primeiros a correrem atrás do ouro, embora a cidade de Cantão fosse tão perto de Sidney quanto de São Francisco. As primeiras chegadas de chineses foram tratadas como uma curiosidade bem-vinda e homenageadas em um desfile de 1850, que celebrava o estado da Califórnia. Mas, após isso, cerca de 40 navios zarparam no mesmo ano da China para o que os chineses chamavam de “Gum Shan”, ou “Montanha de Ouro.” Em 1851 já havia 25.000 chineses na Califórnia, e entre 1852 e 1860 algo entre 6 mil e 7 mil chineses chegavam a cada ano.

Os californianos tinham consciência da rapidez em que seu estado estava sendo povoado, e que logo poderia se tornar majoritariamente chinês – a população da China na época passou das 400 milhões de pessoas após quatro séculos de rápido crescimento. Um imposto sobre mineiros estrangeiros, que havia sido revogado em 1851, foi restabelecido como forma de desencorajar os chineses.

Em 1853, um desses mineiros, Ling Sing, foi morto a tiros em um assalto à mão armada por George Hall, com pelo menos 15 tiros nas costas. Um estatuto datado de 1850 previa que “nenhum negro, mulato ou índio será autorizado a oferecer provas contra ou a favor de um homem branco.” Dividida, a Suprema Corte da Califórnia usou esse estatuto para jogar fora qualquer possibilidade de condenação para Hall. Centenas de assassinatos como o de Ling Sing ficariam impunes antes de esse estatuto ser revogado em 1872. Um dos efeitos colaterais não intencionais foi que a justiça ficou a cargo dos vigilantes. Em 1857, três brancos foram enforcados por vigilantes brancos após uma série de assassinatos de vítimas chinesas.

Em maio de 1856, os vigilantes de São Francisco voltaram a agir. Naquela época, Geary tinha voltado para a região leste do país. Em meados de agosto, o Presidente Franklin Pierce nomeou-o governador territorial do “Sangrento Kansas.” Embora o Comitê de Vigilância de 1851 tivesse sido formado para acabar com a anarquia, o Comitê de 1856 ressurgiu baseado em uma desconfiança pública de que o governo corrupto não seria capaz de processar adequadamente os assassinos de um jornalista e de um agente federal.

Depois que esses suspeitos foram enforcados pelos vigilantes, o prefeito apelou para J. Neely Johnson, governador recém-eleito da Califórnia. Com 30 anos e eleito na chapa anti-imigrantista do Partido Americano (mais conhecidos como os “Não Sei de Nada”), Johnson estava entrando em uma situação potencialmente explosiva, mas também em uma ruptura política no anteriormente dominante Partido Democrata no estado.

David Broderick, pugilista filho de imigrantes irlandeses, seria eleito para o Senado nas eleições de outubro, e estava alinhado com os opositores da escravidão. Mas ele também apertava os botões da máquina corrupta de São Francisco. Os inimigos de Broderick na facção da lei e da ordem eram principalmente homens escravocratas vindos do Sul (chamavam a si mesmos de “Os Cavalheiros”) que desdenhavam dos apelos das multidões. A postura populista anticorrupção do Comitê de Vigilância estava mais em sintonia com as bases políticas de Johnson, mas ele mesmo a via como um desafio intolerável à autoridade civil.

Tentativa de restabelecer a ordem

Com Geary fora da cena, Johnson pediu conselhos e assistência a outro democrata conservador cabeça-dura, um banqueiro e ex-oficial do Exército de 36 anos: William Tecumseh Sherman. Sherman foi enviado à Califórnia como um tenente quando tinha 27 anos, durante a Guerra do México, e descobriu que os seis meses de viagem ao redor do Cabo Horn o fizeram chegar tarde demais para qualquer batalha. Um ano depois, Sherman estava à disposição quando os primeiros mineiros de Sutter’s Mill levaram suas descobertas ao governador militar de Monterey. Com mais dinheiro do que guerra por lá, ele eventualmente deixou o Exército e passou para o mundo dos negócios, mas seu passado militar o fez respeitado além dos limites da cidade de São Francisco. Quando a crise do Comitê de Vigilância eclodiu em 1856, Sherman tinha acabado de ser nomeado o General Maior da milícia da Califórnia.

As simpatias de Sherman na época eram decididamente sulistas, mas mais importante, ao longo de sua carreira Sherman sempre se manteve firmemente ao lado da lei e da ordem e da autoridade legítima. Em maio de 1856, ele acreditava que uma demonstração esmagadora de força por parte da milícia iria acabar com o derramamento de sangue. Johnson e Sherman se encontraram com o comandante da base naval Mare Island, Dave Farragut, que insistiu que ele não poderia ajudar diretamente a milícia sem ordens diretas de Washington, mas concordou em enviar um navio para causar um “efeito moral.” Acreditando que o General John Wool, comandante local do Exército, tinha concordado em fornecer armas e munições para a milícia de Sherman, Johnson então declarou que São Francisco estava em um “estado de insurreição.” Sherman se encontrou com membros do Comitê de Vigilância, que alertaram para consequências “terríveis”, e ele ordenou prontamente que os vigilantes “removessem seu forte; cessassem os conselhos da meia-noite; e impedissem o pessoal armado de patrulhar as ruas.” Wool ficou com medo, e informou Johnson e Sherman que ele não poderia oferecer nenhuma assistência sem uma ordem direta do presidente Franklin Pierce.

Wool observou que Pierce havia falhado, seis meses antes, em autorizar assistência federal à milícia no Kansas (um evento que levou à rendição do governador, substituído por Geary). Wool fez uma leitura correta das mensagens não escritas que vinham de Washington: seis semanas depois o secretário de Estado de Pierce, William Marcy, respondeu negando o pedido: “O Presidente não se permitirá acreditar que a prevalência de conselhos precipitados e violência sem lei ainda continuam em São Francisco. Ele confia com segurança que os cidadãos da Califórnia, que se deixaram enganar por quaisquer que fossem os incentivos, em violações da paz pública, de caráter tão perigoso, já terão retomado sua obediência às leis.” O secretário de Guerra, Jefferson Davis, esperou até o começo de setembro para responder, e ordenou a Wool que ficasse de fora das questões de Estado e concentrasse suas tropas na proteção dos fortes federais “para a proteção da propriedade e dos oficiais dos Estados Unidos contra a violência sem lei ou as agressões revolucionárias.” (Esta não seria a mesma visão de Davis sobre os fortes federais seis anos depois.)

Revoltado, Sherman renunciou, dizendo que havia sido colocado “em uma falsa posição” e decidido que “iria cuidar da própria vida e deixar os assuntos públicos severamente em paz.” Sherman acrescentou que, depois de ouvir as “ideias extremas do juiz Terry” e outros ao redor de Johnson, “senti que minhas ideias moderadas devem ficar no caminho destes passos vigorosos que você em seu julgamento considerou necessários.”

Ascensão e queda dos “vigilantes”

Medidas extremas seriam a marca registrada do juiz David Terry em sua longa e tempestuosa carreira. Terry, um democrata corpulento do Texas, com quase dois metros de altura, que havia lutado em Monterey na Guerra do México, tinha ascendido à Suprema Corte da Califórnia com o apoio dos “Não Sei de Nada.” Ele foi a São Francisco sob as bênçãos do governador Johnson para discutir com os vigilantes, armado com um mandado de habeas corpus para dois homens mortos, uma arma de cano duplo, uma pistola e uma faca. Sem surpresas, a situação correu muito mal e acabou em um corpo a corpo cujo resultado foi Terry capturado e mantido em cativeiro pelo Comitê de Vigilância e colocado sob “julgamento” por esfaquear um dos vigilantes armados, Sterling Hopkins, no pescoço. As forças de lei e ordem da cidade, sem o apoio da milícia, foram obrigadas a se render e entregar seu arsenal ao Comitê de Vigilância.

Por quase um mês, enquanto a sobrevivência de Hopkins seguia em dúvida, o governador e o comitê enfrentaram a terrível possibilidade de os vigilantes, agindo fora da lei, enforcarem um juiz da Suprema Corte do Estado. A comunidade empresarial de Sacramento implorou a Johnson que recuasse, em uma carta assinada por Leland Stanford e Wells, Fargo & Co.

O legislativo do Texas aprovou uma resolução conjunta pedindo a Pierce que “restaurasse a supremacia da lei na Califórnia,” a qual foi apresentada no Senado por Sam Houston. Um dos assessores mais próximos de Johnson notou uma postura intransigente em Terry, mesmo diante deste fato extremo: “O Juiz Terry preferiria infinitamente ‘balançar’ das janelas da sala do Comitê a renunciar ao seu cargo.” Em tempo: Hopkins sobreviveu, Terry fugiu e o estado usou o pretexto do conflito com os nativos americanos para pedir por suas armas de volta.

As consequências políticas e a animosidade perdurariam por um bom tempo. Em 1859, depois de tomar posse como Chefe de Justiça, Terry matou o senador Broderick a tiros em um duelo fora dos limites de São Francisco. Terry renunciou ao seu posto, e foi substituído como Chefe de Justiça por Stephen Field, outro daqueles que chegaram à Califórnia na era da Corrida do Ouro.

A coalizão democrata no estado rachou, dividida irremediavelmente ao longo de linhas paralelas às que os democratas seguiam nacionalmente com Pierce e James Buchanan. Lincoln superou a oposição dividida para vencer na Califórnia com pouco menos de um terço dos votos em 1860; quatro anos depois o ícone californiano John C. Frémont obteve apenas 19% dos votos como candidato republicano. Stanford foi eleito o primeiro governador republicano da Califórnia em 1861 depois de ter tido apenas 9% dos votos em 1859. Sherman e Geary, agora republicanos, passaram a servir como generais do Exército da União. Terry entrou em ação como coronel da cavalaria do Texas junto às forças Confederadas em Chickamauga. Em 1889, Terry agrediu Justice Field e foi morto a tiros por agentes federais, um incidente que levou os debates sobre a era dos vigilantes a fecharem um ciclo quando os colegas de Filed na Suprema Corte determinaram na decisão conhecida como In re Neagle que os agentes não poderiam ser julgados nos tribunais estaduais da Califórnia por agirem como autoridades federais.

Os californianos aprenderam pelo jeito mais difícil que a justiça dos vigilantes e as exigências da população não substituem a polícia e os Tribunais de Justiça. Esperamos que não precisemos passar por essa lição novamente.

Dan McLaughlin é redator sênior da National Review Online.

© 2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.

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