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A liberdade de expressão custou caro, custou vidas e, não raro, custou nações. Reis caíram quando os indivíduos entenderam que ela era CONDIÇÃO de uma vida social possível, e não um penduricalho para enfeitar redações de vestibulares ou palavras gourmet para “purpurinar” uma conversa e dar ao orador um ar de inteligência descolada. Se analisarmos de maneira detida e desapaixonada as três últimas semanas do Brasil, chegaremos à conclusão sensata e assustadora de que há um crescente ataque às liberdades civis dos brasileiros, principalmente à liberdade de expressão. E isso não é narrativa bolsonarista, antes fosse, aí poderíamos dormir em tranquilo. O que o TSE e STF estão fazendo é ‒ sem floreios e retóricas ‒ censura. E isso é sério... seríssimo.
Quando John Locke escreveu sua famosa Carta sobre a tolerância, ele mostrou que as opiniões diversas e frontalmente opostas, ao contrário do que os censores diziam na época, eram a própria alma de uma sociedade organizada, tolerante e harmônica. O fato de existirem opiniões frontalmente discordantes, umas muito e outras parcamente fundamentadas, faz parte daquele conjunto de situações que demandam uma resiliência social e judicial a fim de que a liberdade de todos os cidadãos se encontre assegurada.
É a própria discordância o arrimo da democracia, é a liberdade de podermos frontalmente ter ideias diferentes que nutre o solo da sociedade moderna, é a maturidade de aceitarmos a oposição de forma harmônica, a causa desse “milagre político” que possibilitou todo avanço social humano ‒ como diz o filósofo americano, Jonah Goldberg.
Quando a crítica social do outro se torna tão ofensiva a mim ao ponto de querer a sua prisão como punição, a única coisa que posso realmente fazer de forma madura, concreta e aceitável, numa perspectiva civilizacional, é crescer e parar de chorar, aprender a ser resiliente e verdadeiramente um homem civilizado. Democracia exige maturidade, não é coisa de moleque birrento.
O que John Locke disse em seu tempo, e que parece ainda mais urgente de ser entendido agora no Brasil, é que, por mais que as opiniões de seus vizinhos soem disparatadas, conspiratórias e até agressivas demais, a única maneira de agir é deixando que eles as digam. E a conclusão que justifica essa premissa é a mais óbvia e simples possível, no entanto é também a mais fulcral e visceral verdade que existe em termos de sociedade: “VOCÊ NÃO É CURADOR DA VERDADE”, “VOCÊ NÃO É BALISA DA REALIDADE”, “VOCÊ NÃO É CHECADOR DE FATOS”.
Quando entendemos que os seres humanos são intrinsecamente falhos, e que sua própria constituição existencial é esfarelante, então fica mais fácil entender as opiniões idiotas e por que não podermos censurá-las: você simplesmente pode estar errado sem saber, e a opinião mais idiota hoje pode ser a dilacerante realidade de amanhã. Seja humilde porque você é falho. Ainda que aquela ideia dita soe absurda, escute-a, deixe o louco falar, ele pode desconcertantemente mostrar que o louco, afinal, era você ‒ ou apenas confirmar socialmente a loucura do alienado, mas deixe-o falar.
Como dizia Machado de Assis em O alienista: “Quem dirá que o louco não é o alienista”? Ora, a história está amplamente recheada de ideias que saíram do canto dos loucos para se tornarem o próprio arrimo social; a própria “liberdade de expressão” e a “tolerância religiosa”, por exemplo, ilustram essa verdade esquecida.
A desculpa do TSE para desmonetizar alguns canais ditos “de direita”, no último dia 26/08, foi que eles (os canais e seus donos) “não veiculam críticas legítimas ou propõem soluções para aperfeiçoar o processo eleitoral”. Diz ainda o juiz Salomão que assinou tais palavras civilizatoriamente idiotas, os vídeos dispersam “denúncias falsas de fraude que já foram desmentidas inclusive pela própria Polícia Federal”, o que poderia prejudicar diretamente as eleições que hão de vir.
São tantas coisas que poderiam ser ditas após tais palavras que até me enrosco em organizá-las para a escrita. Mas comecemos do básico, a liberdade de expressão só é liberdade justamente porque não está vinculada a uma causa pré-determinada, como a causa de “propor soluções” para algo. Você pode opinar sobre algo mesmo que você não tenha uma solução para a aporia ali debatida; você pode dizer que tem uma resposta para o dilema da origem do universo, mesmo sem realmente tê-la. Isso pode ser imoral. Mas é só isso.
Se as palavras que são ditas causaram danos reais, a própria arrumação jurídica social já prevê ações de punição financeira e retratação pública ao danificador. Por exemplo, as opiniões abertamente preconceituosas, neonazistas e racistas.
Porém censurar, previamente calar? Isso é próprio de ditaduras e ditadores. Nunca vou entender um juiz que acha coerente prender alguém por sua opinião agressiva, sem se dar conta de que ele está PRENDENDO alguém por OPINAR, que o ato concreto dessa peça é a PRISÃO, e não a OPINIÃO. A opinião é abstrata, pode ou não vir a se efetivar e a ofender, a cela, porém, é real, tangível. Ter que afirmar tais coisas é surreal; mostra que, em termos de nação e compreensão de liberdades civis, o Brasil ainda é quase pré-histórico.
O que o TSE fez com os canais foi definir o que pode ser dito segundo uma liturgia de verdades pré-estabelecidas por eles, afirmando previamente que a convicção que o tribunal sustenta como verdade é a Verdade das verdades naquele assunto. Vejam meus caros, isso é, em quaisquer acepções políticas e/ou filosóficas possíveis, em qualquer momento histórico no qual pousemos a nossa nave de observação política, a definição mesma de censura. Sim, o que o TSE fez com os canais direitistas foi censurá-los, tarjá-los de forma antecipada para que não incorram num erro futuro: “afetar e prejudicar as eleições futuras”. Minority Report à brasileira. Usar meias palavras, se conter em denunciar tais ações, é o mesmo que se acovardar por conveniência ante um ato tirânico.
O que está sendo feito pelos referidos tribunais, nas pessoas dos juízes envolvidos nas ações, é a pura censura em sua feição mais elementar e corriqueira. Tudo isso pode ser colocado ‒ num exercício imaginativo ‒ nas penas de quaisquer tribunais de exceção criados nos séculos passados, sem que com isso estejamos sendo exageradamente afoitos.
Como afirmava Eric Voegelin, os tiranos sempre agem se escudando atrás de um gnosticismo ralé, em nome da “verdade”, em nome da “segurança social”, em favor dos mais abnegados sentimentos fofos que existem. Quando o STF e o TSE resolvem ser o sommelier da liberdade de expressão dos brasileiros, e emissários inerrantes da verdade, eles se juntam aos tribunais que prepararam a estrada para aqueles momentos da história moderna que nos envergonham e enojam.
Se é verdade que a liberdade de expressão é a alma da democracia; que a separação dos poderes em uma república é a garantia de uma sociedade livre, também é verdade que a censura é o porteiro que abre os caminhos para a ditadura. Como bem lembrou Fernando Schüler em seu magistral texto O declínio da tolerância, a censura que os militares praticaram aqui nas décadas de 1970 e 1980 usava a exata argumentação de precaução frente a ditadura que viria caso as ideias opositoras se espalhassem sem curadoria, as suas sacrossantas curadorias.
O Estado não deve dizer o que devemos pensar, nem desmonetizar canais no You Tube, porque suas ideias “são sem fundamento” ou “sem soluções”, muito menos ainda prender pessoas por “opiniões perigosas”. Qual o próximo passo desse enredo? Acender fogueiras e chamar sacerdotes da última verdade? Não estaria tão longe imaginar que as próximas “fogueiras santas” tivessem rodeadas não mais de batinas, mas de togas.
O reacionarismo dos tribunais brasileiros pode custar caro à sociedade se não for levado a sério, o silêncio ante aos avanços tirânicos dessas cortes se assemelha muito ao vácuo covarde dos homens e instituições públicas que antecederam as ditaduras mais horripilantes que a modernidade viu, como alerta Jonah Goldberg em O suicídio do Ocidente:
Afirmo que todas as rebeliões contra a ordem liberal do Milagre [as liberdades civis e econômicas do Ocidente moderno] são de natureza fundamentalmente romântica e reacionária. Elas buscam alguma concepção moderna e futurística da organização social. Em vez disso, retornam a alguma forma de solidariedade tribal na qual estamos todos unidos.
Fundamentalmente, podemos escolher ignorar os atos cada vez mais invasivos dos tribunais brasileiros, mas, quando o lodo opressivo da tirania avançar sobre as nossas narinas, então não haverá mais tempo hábil para gritar e protestar contra os opressores. A covardia e a mudez em defender a liberdade dos outros ‒ muitas vezes, de nossos inimigos ‒ quando eles são calados e presos, é a receita para que amanhã ‒ quando nós formos os inimigos da vez ‒ sejamos então os novos esquecidos no silêncio da covardia de alguém.
Ainda que tenha se tornado clichê aquela parábola contada pelo teólogo luterano, Martin Niemöller (1892-1984), no contexto nazista:
Um dia eles vieram e pegaram meu vizinho judeu. Mas como eu não sou judeu, fiquei quieto. No outro dia vieram e pegaram meu vizinho socialista. Mas como não sou socialista, fiquei quieto. No terceiro dia vieram e pegaram meu vizinho católico. Mas como não sou católico, fiquei quieto. No quarto dia vieram e me pegaram. E não havia mais ninguém para reclamar.
Tal conto é repetido agora, até à exaustão, pelos bolsonaristas e demais perseguidos pelos togados. Pode ser exagerado relacionar uma coisa à outra. Pode até mesmo ser forçoso de minha parte dar voz para esses ditos “bolsonaristas”, que muitas vezes agem de maneira acéfala e idiotizada. Mas a parábola carrega fundamentalmente uma verdade política e histórica que eu simplesmente não posso ignorar ‒ como o sujeito ignorou na própria metáfora do teólogo.
Em nome da minha consciência, e em nome do que pode estar por vir, repetirei aqui: “primeiro eles vieram e pegaram meu vizinho bolsonarista, mas como não sou bolsonarista”... Bom, se você continuará a parábola ou não, se ficará quieto ou não, é sua escolha. Mas o final dessa história ‒ sim, história! ‒ é irritante e absurdamente infalível.