Em 1958, o sociólogo britânico Michael Young cunhou o termo “meritocracia” no romance satírico “The Rise of the Meritocracy” [A ascensão da meritocracia]. O argumento dele era bem simples: quando inteligência e esforço são escolhidos pela sociedade como medida do sucesso ou fracasso, as pessoas com esses méritos começam a formar uma classe própria. Essa classe se transforma numa elite que não aceita dissidências e que estratifica a sociedade. Disse Young em 2001:
“É uma questão de bom senso contratar pessoas com base no mérito. O contrário é quando aqueles que se acredita terem mérito se reúnem em uma nova classe social sem espaço para os demais”.
Essa questão se tornou a base de pensadores não-liberais, tanto à esquerda quanto à direita. O filósofo Michael Sandel, em seu mais recente livro, “A Tirania do Mérito: O Que Aconteceu ao Bem Comum?”, diz que a própria ideia de meritocracia traz consigo uma análise moral inegável e insuportavelmente egoísta. Escreveu Sandel:
“A ideia em si é falha. A meritocracia tem um lado negro. E o lado negro é o fato de a meritocracia ser corrosiva para o bem comum. Ela leva os bem-sucedidos a acreditarem que são os responsáveis pelo próprio sucesso e que, assim, eles merecem as bençãos do mercado (...) ela gera soberba entre os vencedores. Eles acreditam serem responsáveis pelo próprio sucesso e, implicitamente, também acreditam que as pessoas que enfrentam dificuldades merecem esse destino”.
Esse argumento pode ser manipulado pelos críticos da ordem capitalista atual à direita e à esquerda. Para a direita, o argumento é o de que o capitalismo, por geralmente recompensar a inteligência e o trabalho duro, prejudica importantes instituições sociais.
No “New York Times”, David Brooks argumenta que a meritocracia “destrói a consciência cívica, a sensação de que vivemos numa comunidade e nação, que devemos para a comunidade e nação e que a essência de uma vida admirável é pôr a comunidade acima de si mesmo”.
Para a esquerda, o argumento é o de que a meritocracia justifica os desequilíbrios existentes na ordem social e econômica.
O debate sobre a meritocracia, contudo, depende de uma incapacidade fundamental em fazer a distinção entre o mérito econômico e o moral.
O próprio termo “meritocracia” faz um desserviço ao ignorar essa distinção. Aliás, foi por isso que Young cunhou o termo. Em vez de usarmos o termo “mérito”, com todas as suas implicações morais referentes à inteligência e ao trabalho duro, deveríamos usar “habilitocracia”. Qualquer sistema econômico que recompensa habilidades gera externalidades positivas.
Uma pessoa que trabalha duro, que inova – que cria produtos e serviços melhores e troca esses produtos e serviços com outras pessoas – enriquece não apenas os envolvidos no comércio voluntário como também a sociedade como um todo, ao elevar o nível dos produtos e serviços que acabarão por se tornarem disponíveis a todos.
Toda inovação é acompanhada pela concorrência e pela disseminação da inovação por um mercado maior – e é por isso que hoje em dia os camponeses, nas sociedades ocidentais, vivem melhor do que viviam os reis séculos atrás.
Por outro lado, qualquer sistema econômico que privilegie um conjunto alternativo de valores gera externalidades negativas. Por que deveríamos privilegiar a distribuição econômica de acordo com a raça, religião ou preferências éticas? Desincentive os riscos, garanta a renda por meio da “ocupação moral” e observe a locação equivocada do trabalho destruir progressivamente toda a economia. Veja a sociedade entrar em colapso enquanto os que menos produzem são recompensados.
Isso não quer dizer que os mais habilidosos deveriam “administrar a sociedade”. Um sistema desses acabaria por minar a própria habilitocracia, já que permitiria que o arbítrio de uns poucos prejudicasse os esforços de todos. A mobilidade econômica deve se manter atrelada à habilidade, do contrário a habilitocracia sai prejudicada.
Isso tampouco quer dizer que a habilitocracia funciona como medida do bem moral. A inteligência é em grande medida inata e, portanto, não configura um atributo moral per se. A tendência ao trabalho duro pode ser parcialmente genética, mas também pode ser cultivada. Numa sociedade moral, porém, encontramos formas não-econômicas de recompensar a virtude. Cultivamos amizades, respeitamos e conferimos honrarias, criamos comunidades com base na virtude e delas excluímos aos que não se adequam a certos padrões morais.
Isso quer dizer que uma habilitocracia não pode se chocar com uma sociedade virtuosa. Longe disso. A chamada “meritocracia” não pode se tornar uma medida moral da inteligência e do trabalho duro. Na verdade, numa sociedade saudável ela nem deve. Por essa lógica, não podemos destruir a habilitocracia como uma forma de recuperar o padrão de vida moral. Isso seria um fracasso e algo absolutamente contraproducente.
Ben Shapiro é apersentador do “Ben Shapiro Show" e editor emérito do Daily Wire.