Notícias recentes sugerem que o Partido Comunista Chinês está considerando abandonar uma de suas práticas mais duradouras e mais abusivas: sua política de planejamento reprodutivo, comumente conhecida como política do filho único. A decisão surge no momento em que o país enfrenta uma série de crises domésticas resultantes da política, desde uma mão-de-obra que está envelhecendo rapidamente até graves desequilíbrios de gênero. Devolver os direitos reprodutivos ao povo, no entanto, não exime o Partido Comunista da responsabilidade por décadas de trauma e assassinato cometidos sob a rubrica eufemística de planejamento populacional.
Segundo as autoridades chinesas, pelo menos 360 milhões de fetos e bebês foram mortos desde 1979, quando o regime instituiu a política do filho único para controlar a população em expansão. Estruturalmente, esse tem sido um assunto nacional complexo, organizado nos altos escalões do poder e implementado nos níveis locais, com regalias e promoções reservadas aos funcionários que cumprem as cotas. O controle da fertilidade é altamente burocratizado: os casais devem solicitar uma permissão para engravidar, enquanto as mulheres até os 50 anos devem comparecer a uma clínica a cada três meses para um teste de gravidez. No entanto, como em qualquer sistema autoritário que procure policiar liberdades individuais, subornos, roubo, extorsão e abuso de poder são comuns.
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Em 2005, após uma denúncia, alguns colegas e eu começamos uma investigação sobre uma campanha de planejamento populacional que estava acontecendo em Linyi, província de Shandong, onde eu nasci. Testemunhas descreveram grupos de brutamontes que desciam até as aldeias para reunir mulheres grávidas ou casais que haviam "procriado em excesso". As autoridades estavam forçando as mulheres a sair de esconderijos, mantendo familiares, amigos e vizinhos em condições de prisão por dias ou semanas, extorquindo dinheiro deles ou espancando-os até que os fugitivos se revelassem.
Uma vez nas mãos das autoridades, as futuras mães não-autorizadas (mesmo se grávidas de um primeiro filho) estavam sendo arrastadas para um hospital ou instalação de planejamento populacional, onde seriam forçadas a assinar um documento concordando em abortar seus bebês. As gravidezes são terminadas em qualquer fase, o que significa que até um recém-nascido viável pode ser morto. Testemunhas descreveram enfermeiras ou médicos torcendo o pescoço de bebês que choravam, sufocando recém-nascidos em sacolas plásticas ou colocando-os de bruços em uma panela de álcool para sufocá-los até a morte. As mulheres descreveram como funcionários de hospital injetavam drogas nas cabeças de seus bebês enquanto ainda estavam no útero e depois induziam os natimortos para fora de seus corpos.
NOSSAS CONVICÇÕES: Defesa da vida desde a concepção
O Partido Comunista há muito tempo exige um completo apagão da mídia sobre o tema do planejamento populacional e, portanto, não aceitou bem o nosso trabalho. Em 2006, fui condenado a mais de quatro anos de prisão pela investigação, que revelou que só em minha área na província de Shandong, em apenas seis meses, mais de 130.000 pessoas foram submetidas a abortos ou esterilizações forçadas (incluindo homens), e mais de 600.000 pessoas sofreram detenção, extorsão ou tortura em relação a um amigo ou parente que "procriou em excesso".
Cicatrizes
É difícil descrever a devastação que testemunhei. As vozes e histórias daqueles que sofrem permanecerão sempre comigo. As mulheres estavam física e mentalmente traumatizadas, famílias despedaçadas. Gerações de crianças desesperadamente desejadas foram deixadas literalmente para morrer no chão do hospital. Como as pessoas se recuperam disso?
NOSSAS CONVICÇÕES: A dignidade da pessoa humana
Dois anos atrás, o Partido Comunista parecia ter recuado, permitindo que os casais tivessem dois filhos. As rachaduras crescentes na sociedade são impossíveis de ignorar, no entanto, e serão difíceis de desfazer: uma preferência profundamente arraigada pelos meninos, em conjunto com restrições aos nascimentos, levou a uma proporção de 108 meninos nascidos para cada 100 meninas, resultando em uma gama de males sociais, incluindo um aumento no tráfico de seres humanos; a força de trabalho está envelhecendo para um ponto crítico, enquanto os filhos únicos da geração mais jovem lutam para cuidar dos pais e avós; a fraca taxa de natalidade gira em torno de 1,3 nascimentos por mulher; e aqueles valores chineses tradicionais positivos que sustentaram a vida humana como algo para proteger, nutrir e celebrar foram destruídos.
Nos Estados Unidos, a política chinesa de filho único permaneceu fora dos limites da ação bipartidária, porque parece tocar em uma das questões mais importantes da divisão esquerda-direita dos EUA: o aborto. No entanto, gostaria de pedir aos americanos de todos os lados que deixassem de lado seus próprios debates e observassem as realidades da China. Trata-se de rapto em larga escala, prisão, violação física, tortura, procedimentos médicos forçados, extorsão e homicídio de bebês saudáveis nascidos a termo, nenhum dos quais é relevante para o debate americano sobre direitos reprodutivos.
O regime chinês continua a manter uma tampa fechada sobre notícias e informações e os inúmeros abusos de poder desde que tomou o poder em 1949 e antes, incluindo este episódio de quase 40 anos de controle populacional violento. Os chineses dentro da China ainda não são capazes de falar em fóruns públicos sobre suas experiências, e a mídia não pode relatar isso. Portanto, apelo ao governo americano que use as ferramentas à sua disposição – como a Lei Global Magnitsky - para responsabilizar os líderes do Partido Comunista e tomar posição pelos direitos humanos para todos.
Chen Guangcheng é autor de "The Barefoot Lawyer: A Blind Man's Fight for Justice and Freedom in China." [O Advogado Descalço: A Luta de um Homem Cego por Justiça e Liberdade na China]
©2018 The Washington Post. Publicado com permissão. Original em inglês
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