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Na minha aula de inglês do 2.º ano do ensino médio, assim como muitos outros estudantes americanos, li algumas obras do falecido autor Joseph Conrad, um explorador ilimitado e escritor cativante. Mas a minha turma não analisou os livros de Conrad como meu pai ou o meu avô fizeram quando tinham a minha idade.
Em vez de discutir como o trabalho dele moldou os futuros autores e como seus romances foram classificados como alguns dos primeiros trabalhos modernistas, nós debatemos se ele deveria ou não ser ensinado em sala de aula.
Não estudamos suas histórias de exploração e tragédia que cativaram os muitos autores responsáveis pela formação da psique ocidental; em vez disso, tivemos longas discussões sobre se devemos ou não expulsá-lo por inteiro do cânone literário por causa de algumas de suas declarações racialmente insensíveis, as quais em seu tempo não eram heterodoxas.
Simplificando, ensinaram-nos que se deve jogar o bebê fora junto com a água do banho – isso para manter figuras do passado, como Conrad, dentro de padrões modernos que sequer existiam em seu tempo, e para desprezar aqueles que não atendem a tais padrões nas bibliotecas de nossas escolas.
Um ano depois, pude ver a intensificação da cultura do cancelamento se embrenhando na natureza caprichosa do debate político em 2020, com alguns dos mais importantes filósofos da humanidade e escritores como Aristóteles e Shakespeare sendo marcados como alvos. Embora as consequências imediatas possam ser difíceis de enxergar agora, nossos jovens – o futuro de nossa nação – vão pagar o preço por essa cultura de cancelamento presente na América.
Algumas das escolas do país, empurradas, por ativistas e influenciadores, a abraçar a cultura do cancelamento, começaram a focar em supostos danos causados por palavras fora de contexto sem compreender seu significado mais amplo dentro de um texto.
Em 2019, por exemplo, membros do governo de New Jersey tentaram remover o livro As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, das instituições de ensino daquele estado, citando vários usos de gírias raciais e estereótipos. Mas o livro escrito no século XIX, que compartilha o reconhecimento de Grande Romance Americano com obras do porte de O grande Gatsby e O sol é para todos, é na verdade uma obra contra o racismo. Ele desmascara as falsidades racistas que foram usadas para manter a escravidão por séculos, ao mesmo tempo em que humaniza os personagens escravos e traz uma mensagem de igualdade a seus leitores.
Infelizmente, a multidão míope que quer banir esse livro das escolas não consegue sequer fazer uma análise crítica do significado da obra. O uso da palavra nigger [em inglês, um termo pejorativo para indicar pessoas negras] no romance como forma de destacar atitudes racistas levou muitas pessoas a pressionar pela remoção do livro dos cânones da literatura americana. Esse clamor já foi ouvido por algumas escolas.
A ideia é que remover esse romance vai criar uma espécie de escudo para proteger as crianças da nação contra palavras e sentimentos preconceituosos, mas esse não é o resultado real. Ao remover As Aventuras de Huckleberry Finn de nossas escolas, perderemos um dos livros antirracistas mais influentes de nosso tempo.
O cancelamento contínuo de algumas figuras antigas conforme vamos atualizando nossas definições de “pessoas despertas” (woke, em inglês) vai levar à obliteração de nossos trabalhos mais importantes como espécie. Não haverá mais erros históricos com os quais aprender, nem histórias de sucesso para admirar.
Seremos deixados em um ciclo artificial e isolado da história – e se nós não pudermos ensinar os jovens da nação sobre os problemas do passado, eles estarão fadados a imitá-los no futuro.
O romance de Mark Twain obviamente falou contra o racismo, mas e sobre as figuras históricas que apoiaram algumas visões preconceituosas? Eles devem ser jogados na lata de lixo da história?
Aristóteles, que é considerado um dos maiores filósofos que já passaram pela Terra, apoiou abertamente a escravidão. Já há algumas semanas, o jornal The New York Times publicou uma matéria argumentando contra o cancelamento de Aristóteles por causa de suas posições. A matéria foi recebida com críticas por professores universitários como Bryan W. Van Norden, que afirmou que “[professores] também precisam se lembrar que entre nossos estudantes estão pessoas que sentiram em primeira mão as consequências práticas contínuas das visões mais hediondas de Aristóteles.”
Agora, é claro, ninguém (especialmente eu) está argumentando que nós deveríamos defender as posições de Aristóteles contra a igualdade, as quais pertencem à antiguidade. Mas é importante lembrar de suas contribuições positivas para a teoria política moderna, para a física, a economia e a psicologia – algumas coisas que nós, na nossa modernidade, consideramos parte integral da cultura ocidental.
Devemos afastar todo o resto do pensamento de Aristóteles por causa de algumas maçãs podres? Com isso perderíamos parte dos alicerces do nosso mundo moderno.
Além disso, não é razoável balizar as crenças “hediondas” de figuras antigas de acordo com os padrões éticos modernos. Em vez de ignorar seus pensamentos como um todo, deveríamos tentar compreender suas falhas e ensiná-las aos nossos jovens, para que assim eles possam entender o porquê de nossa sociedade tratá-las como inaceitáveis.
Dito tudo isso, a declaração do professor Van Norden ressoou a princípio em mim. Como judeu, senti-me diminuído por obras como O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, que contém representações altamente estereotipadas de judeus. Muitos destes estereótipos acabaram influenciando séculos de sentimento antissemita na Europa e em todo o mundo.
No entanto, percebi que outras obras do Bardo – Macbeth, Romeu e Julieta e Hamlet – tiveram todas um impacto profundo na literatura. Por isso, fique tranquilo: não vou tentar cancelar Shakespeare tão cedo.
O fardo de uma sociedade que continuamente condena figuras antigas à medida que as cotas progressistas mudam com o tempo pesa sobre os estudantes da América. Isso não é nada menos que orwelliano: ontem, em guerra com a Eurásia; amanhã, em guerra com o leste asiático. Ontem, lendo Aristóteles; amanhã, queimando seus livros em nome do progressismo.
Apresentei minhas experiências com o livro de Joseph Conrad no início desse artigo por uma razão muito importante: a forma alternativa como seus romances foram tratados pela minha turma não foi um simples sinal de alerta. Foi a previsão de um caminho longo e sombrio de supressão literária, que vai continuar a limitar de forma significativa os domínios intelectuais na busca por uma sociedade livre de ofensas, ao custo de nossos textos mais amados: uma sociedade onde a ignorância é a força.
Thomas Ullman é um estudante do ensino médio que frequenta a Marin Academy em San Rafael, Califórnia.