Administradores, cientistas políticos e até engenheiros em prol da democracia brasileira| Foto:

A democracia é uma moeda em desvalorização no Brasil. Um levantamento do Instituto Datafolha, divulgado no início do mês, revela que para 56% dos brasileiros a democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de governo. Eram 62% em 2016 e 66% em 2014. No mês passado, o Instituto Paraná Pesquisas captou tendência semelhante:  43% dos brasileiros seriam favoráveis a uma “intervenção militar” no país. O percentual é ainda maior entre jovens de 16 a 24 anos. Mas o cenário é bem diferente numa rua estreita de paralelepípedos do bairro Água Verde, em Curitiba, em uma casa da década de 1950, em que 12 jovens trabalham firme para contrariar essa tendência.

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Esses jovens, cuja idade em média não passa dos 27 anos, têm formações profissionais que passam pela administração, pela ciência política e até pela engenharia. Eles fazem parte do Instituto Atuação, uma organização apartidária, sem fins lucrativos, que tem como objetivo transformar o Brasil em uma democracia plena, de acordo com critérios internacionais. O segredo para alcançar essa meta, na visão do grupo, que trabalha de perto com alguns dos maiores especialistas  do mundo na área, é apostar no fortalecimento da cultura democrática local e no protagonismo dos cidadãos antes de alçar voos mais altos – e mais longos.

O Instituto surgiu em 2010, quando um grupo de universitários se sentiu impelido a “fazer alguma coisa” depois das revelações do escândalo dos “Diários Secretos” no Paraná.  Transformaram o ímpeto juvenil, que de alguma forma se repetiria por todo o Brasil em junho de 2013, em pesquisa e planejamento para realmente serem capazes de fazer alguma coisa. “Nós percebemos que ficar fazendo palestra em universidades ou protesto na rua não adiantaria muito, nós precisávamos fazer algo mais sólido”, relembra Jamil Assis, diretor de Relações Institucionais do Atuação.

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Foi quando o grupo descobriu os resultados do Índice da Democracia da Unidade de Inteligência da revista The Economist, um dos mais completos e respeitados do mundo. Anualmente, desde 2006, quase todos os países do mundo são avaliados de acordo com cinco critérios: processo eleitoral e pluralismo; funcionamento do governo; participação política; cultura política; e liberdades civis. A cada critério, é atribuída uma nota de 0 a 10. Na última edição, divulgada em janeiro deste ano, duas notas excepcionalmente baixas destacam o Brasil:

  • Processo eleitoral: 9.58 
  • Funcionamento do governo: 6.79 
  • Participação política: 5.56 
  • Cultura política: 3.75 
  • Liberdades civis: 8.82 

No cômputo final, o Brasil termina com nota 6.9, o que faz do país não uma “democracia plena” (países com nota entre 8 e 10), mas uma “democracia falha” (nota entre 6 e 7.9), em 51º lugar na lista de 167 nações analisadas. Mais para baixo na lista, há ainda os “regimes híbridos” (nota entre 4 e 5.9) e os “ regimes autoritários” (nota menor que 4).

Democracias falhas, na definição do próprio Índice da Democracia, “têm eleições livres e justas e neles, embora haja alguns problemas (como ataques à liberdade de imprensa), as liberdades civis fundamentais são respeitadas. Entretanto, há fraquezas significativas em outros aspectos da democracia, incluindo problemas na governança, uma cultura política subdesenvolvida e baixos níveis de participação política”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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“Nos critérios de participação política e cultura democrática, que dependem da sociedade como um todo, o Brasil tem notas horrorosas, comparáveis a países que estão passando por guerra civil e nem tem Estado”, diz Jamil. “Isso foi para nós um grande divisor de águas: em vez de focarmos em trocar um político pelo outro ou fazer mudanças na pauta da legislação, em reformas, resolvemos dar um passo atrás e pensar como desenvolver uma cultura política mais democrática”, conta.

De fato, a nota 3.75 atribuída ao Brasil em cultura política é a mais baixa entre todos os países classificados como democracias falhas e coloca o país no mesmo patamar de Quirguistão, Haiti e Chade. Além disso, a nota brasileira nesse quesito só vem caindo desde 2006.

A partir da surpresa com os resultados pífios em participação e cultura política, o esforço do Instituto Atuação, em parceria com pesquisadores do V-Dem - Varieties of Democracy, da Freedom House, do Latinobarómetro, da The Economist Intelligence Unit, do International IDEA e da Tendências Consultoria, foi identificar três eixos de diagnóstico para pensar meios de aprofundar a cultura democrática de um determinado lugar. Chegaram a três eixos: conhecimento político, vida comunitária e confiança.

  • Conhecimento político: quanto as pessoas conhecem seus papeis e responsabilidades como cidadãos, quanto sabem o que podem esperar dos poderes e atores públicos, quanto elas sabem o que podem exigir dos seus concidadãos e como colaborar com eles; 
  • Vida comunitária: quanto os cidadãos se juntam uns aos outros para resolver seus problemas, sem a intercessão de poderes superiores, como governos e grandes empresas; 
  • Confiança: quanto as pessoas confiam umas nas outras, nas instituições públicas e na democracia.
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Jamil destaca, dentre os já graves problemas em todos esses quesitos, que os baixíssimos níveis de confiança são especialmente preocupantes no Brasil. A desconfiança maior não é nem da democracia em si, porque, segundo o pesquisador, embora ela venha caindo, ainda é razoavelmente alta no país. É na confiança entre as pessoas que o Brasil patina.

Confiança entre familiares, vizinhos, amigos, nas relações de comércio e nos representantes políticos é um ingrediente essencial para a cooperação, a realização de negócios e para a funcionalidade da representação política, mas o brasileiro é um dos povos mais desconfiados do mundo: apenas 7% confiam nas outras pessoas na maior parte do tempo, de acordo com uma pesquisa divulgada pelo Latinobarómetro na sexta-feira, 27. Para se ter uma ideia, mesmo na combalida Venezuela, o índice de confiança está em 9% e, na Suécia, esse tipo de resultado costuma bater em 60%.

Cidade Modelo

São desafios complexos, que precisam ser atacados com estratégia, planejamento e, principalmente, com foco local. Por isso, o grupo desenvolveu a iniciativa pioneira do “Índice de Democracia Local”, que aprofundou e refinou os critérios de participação política e cultura política do Índice da Democracia da The Economist, a partir dos três eixos desenvolvidos pelo próprio grupo. “Nós chegamos a um conjunto de métricas, testadas em Curitiba, que oferecem um índice de 0 a 100 e que podem ser replicadas em qualquer localidade do mundo”, explica Jamil, que é o gestor do projeto.

Atualmente, o Atuação está trabalhando na tabulação e organização dos dados da pesquisa realizada em Curitiba no início deste ano, que envolveu a aplicação de 900 formulários, controlados estatisticamente, e entrevistas com lideranças locais. É a primeira fase do projeto “Cidade Modelo”, que pretende transformar a capital paranaense na cidade mais democrática do Brasil e gerar um caso de sucesso e inspiração para outros lugares do Brasil e do mundo – isso porque a metodologia da pesquisa baseada no Índice de Democracia Local pode ser replicada em qualquer lugar do globo.

O passo seguinte do projeto será estabelecer um plano de ação para mudanças e soluções possíveis, mas elas dependerão de um esforço que deve ir muito além do Atuação. “Nós trabalhamos com a perspectiva de impactos no longo prazo e com projetos coletivos. Ninguém muda uma cultura sozinho e em pouco tempo”, diz Jamil. Por isso, este segundo passo do projeto será pensar em estratégias coletivas, em parceria com lideranças locais, empresários, movimentos sociais, poderes públicos, a a fim de melhorar o índice municipal, que será aferido ano a ano.

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“As pessoas vivem e se relacionam em suas localidades e por isso, quanto mais as bases estiverem fortalecidas, mais nós vamos nos desenvolver, inclusive no nível federal. Isso é o que filosofia política chama de princípio da subsidiariedade: o hierarquicamente superior nunca deve fazer o que o hierarquicamente inferior pode – e deve – fazer, a fim de fortalecer o inferior. A consequência disso é mais poder primeiro para o cidadão, depois para as associações e empresas, até o Estado e o governo federal”, explica Jamil. “A mudança nacional necessariamente vem da mudança dos locais”, resume.

Os resultados coletados pelo índice podem até oferecer os sintomas de cada lugar, mas o protagonismo do enfrentamento deve ser dos atores locais. “Problemas sociais complexos não são resolvidos por intervenções isoladas – a solução precisa da articulação de setores, pontos de vista e ações”, explica. “O que nós precisamos fazer é aproveitar as iniciativas que já existem e testar soluções novas, fazendo um ciclo contínuo: diagnóstico, governança local, definição de metas, teste de hipóteses e soluções, estudo de casos, experiência aprendida, refinamento do diagnóstico, e assim por diante”, resume.