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O jornal Apple Daily, símbolo da liberdade de Hong Kong, fechado pelo Partido Comunista Chinês (PCC)
O jornal Apple Daily, símbolo da liberdade de Hong Kong, fechado pelo Partido Comunista Chinês (PCC)| Foto: Reprodução

Entre 2005 e 2021, o cientista político Simon Lee liderou uma empreitada de sucesso: ajudou a transformar um pequeno jornal defensor da liberdade em um modelo rentável de negócio, com mais de meio milhão de assinantes em uma cidade pouco maior do que o Rio de Janeiro.

Durante 26 anos, o Apple Daily, fundado pelo empresário Jimmy Lai em 1995, ajudou a moldar a vida cultural em Hong Kong, tornando-se um dos jornais mais populares do país, com edições impressa e online, em chinês e em inglês. Em 2019, a publicação foi premiada no Hong Kong Human Rights Press Awards por sua reportagem sobre Liu Xia, esposa do ativista chinês de direitos humanos e vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Liu Xiaobo.

Comunicador experiente, com formação pela Universidade de Michigan e pela Universidade Chinesa de Hong Kong, Lee ingressou na equipe do Apple Daily a convite do próprio Lai. Trabalhou como redator editorial, editor de opinião e gerente comercial do veículo que, em pouco tempo, se transformou em uma pedra no sapato do Partido Comunista Chinês (PCC).

Até que, em 2021, após sucessivas ameaças que descambaram na prisão de Jimmy Lai e de vários integrantes da redação, além do congelamento de todos os ativos financeiros do jornal, a publicação finalmente sucumbiu à ditadura chinesa: a edição final impressa foi publicada em 24 de junho, com mais de um milhão de exemplares em circulação (a tiragem recorrente era de cerca de 80 mil) e filas de centenas de apoiadores às portas. Todos os jornalistas que foram capturados pela polícia com base na lei de segurança nacional chinesa permanecem sem julgamento.

De Cingapura – o mais perto que pode chegar de sua terra natal, atualmente – Simon Lee conversou com a Gazeta do Povo via videoconferência e falou sobre o processo que culminou na perda completa da liberdade de expressão em Hong Kong, sobre o futuro da cidade e da China de Xi Jinping.

Gostaria de saber mais sobre como o senhor se envolveu na luta pela liberdade. O senhor sempre acreditou nesses princípios?

Meu envolvimento com a luta pela liberdade tem a ver com minha história pessoal. Meus pais são chino-indonésios: na época em que os chineses eram muito discriminados na Indonésia, na década de 1950, eles se mudaram de lá para a China continental. Vinte anos depois, mudaram-se para Hong Kong, onde finalmente se estabeleceram. Meus pais, portanto, sabem o que é ter que se mudar de um lugar para outro em busca de estabilidade e segurança, e Hong Kong foi o único lugar a nos proporcionar isso. Foi o primeiro argumento que me convenceu a defender a liberdade da minha terra.

Como era a vida em Hong Kong na sua juventude?

Bem diferente do que é hoje. Meus pais eram imigrantes, mas as oportunidades eram abundantes. Passamos de uma família que não tinha nada para uma vida de classe média em poucos anos, o que foi realmente incrível. Olhando para trás, lembro que os anos 1980 eram uma época na qual todos acreditavam que, desde que você trabalhe duro, não precisa frequentar uma boa faculdade, ter uma educação de ponta ou algo assim. Você não precisa ter uma família rica nem um monte de especializações para viver uma vida confortável, contando que esteja disposto a trabalhar seriamente.

Penso que essa é a definição de uma sociedade aberta, inclusive, e é o que Hong Kong costumava ser. Mas as coisas mudaram nos últimos 20 anos. Tenho visto jovens reclamando do quão difícil é para eles ter uma vida tão abundante quanto a que seus pais ou avós tiveram.

A que o senhor atribui essa mudança?

Penso que tem a ver com as mudanças rápidas que o mundo atravessou, sobretudo porque muito do trabalho que era realizado pela classe média foi substituído pela automação. Trata-se de um fenômeno global bastante comum que está afetando a vida da classe média, vivo dizendo aos jovens que não é um problema só do povo de Hong Kong.

Houve também o agravante da crise financeira asiática em 1997, um dos maiores choques econômicos que a cidade sofreu desde a década de 1960. De repente, as pessoas perceberam que o capitalismo pode chegar a um limite, e foi a primeira vez que elas questionaram o livre mercado em Hong Kong. E tudo bem, qualquer coisa pode ser questionada. Mas, nos anos que se seguiram à crise, passei a ver mais gente pedindo para que o governo intervenha até em contratos privados e arque com as consequências das más decisões que elas mesmas tomaram. O governo é visto como alguém capaz de te salvar dos seus próprios erros. Em menos de 10 anos, veio a crise imobiliária dos Estados Unidos para acentuar a crença de que o mercado é inerentemente instável e não confiável, e a liberdade é apenas uma ilusão.

E tudo isso coincidiu com transferência de Hong Kong para Pequim. A China se aproveitou deste momento para agir de forma mais assertiva, apresentando-se como um modelo alternativo às democracias liberais. Então, de modo geral, acho que o Partido Comunista se aproveitou da insatisfação geral para fomentar essa transformação no tecido social de Hong Kong. Quando fundei meu grupo de estudos, estávamos realmente preocupados com a forma como as pessoas – especialmente os mais jovens - enxergavam o governo. Quando elas deixam de acreditar em si mesmas, precisam acreditar em alguma outra coisa, e é uma pena que essa coisa seja o Estado.

Por algum tempo após a transferência de Hong Kong do Reino Unido para a China, a cidade permaneceu como um território livre. Quando o senhor começou a perceber que as coisas haviam mudado?

Tendo em perspectiva o que já sabemos hoje, eu diria que os primeiros sinais vieram logo depois da devolução. Mas, considerando o que se via na época, eu diria que, pessoalmente, comecei a notar que as coisas estavam mudando em 2012, quando houve uma eleição para o cargo de chefe do Executivo na cidade.

Havia um candidato que já era parte do cenário político de Hong Kong há anos, com grande experiência como legislador e boa relação com Pequim. Era um dos oligarcas locais. Do outro lado, havia um candidato outsider, completamente desconhecido, e que era perfeitamente alinhado à retórica da China.

Como as eleições em Hong Kong não eram diretas, mas realizadas por um pequeno grupo de 1200 pessoas, acreditávamos que o primeiro candidato venceria com facilidade. Eis que, de repente, começam a surgir dezenas de escândalos envolvendo sua família e negócios, de modo que ele passou a ser visto como um criminoso em questão de meses. É evidente que um oligarca pode estar envolvido com operações ilícitas, então nós assistíamos a tudo como quem assiste um grande drama. Mas, para mim, isso significava uma outra coisa.

Como eu sempre trabalhei com política, não conseguia deixar de pensar que aquela reviravolta significava que Pequim não confiava mais em seus antigos aliados na cidade. Como eles sempre estão no controle de tudo, nada acontece sem alguma razão, muito menos a eleição de um completo estranho para governar a cidade. Para mim, essa era a mensagem: Pequim não confiava nem mesmo nas figuras que Hong Kong que lhe juravam lealdade. O que, então aconteceria com o resto do povo? Mas as pessoas só começariam a se dar conta da mudança depois de 2014, quando o serviço secreto chinês efetivamente começou a fechar editoras de livros – o que já estava muito além da nossa imaginação.

Como o senhor chegou ao empresário Jimmy Lai e ao Apple Daily?

Comecei a trabalhar no Apple Daily porque fundei um centro de estudos para defender o livre mercado e procurei Jimmy porque sabia que ele estava ao nosso lado, ideologicamente. Foi então que ele me disse: “se você acredita no livre mercado, precisa de um negócio sustentável, e não apenas uma organização sem fins lucrativos. Caso contrário, não haverá futuro para vocês”. A segunda coisa que ele me disse, e que me marcou bastante, foi: “se você vai lutar pela liberdade, prepare-se para se sentir só”. Então, ele me convidou a entrar no jornal.

Tudo isso aconteceu em 2005. Eu comecei a trabalhar como editorialista e, em alguns meses, ele me pediu para contratar outra pessoa, também pró-mercado, para a mesma função, e me transferiu para a equipe comercial. Pelos anos seguintes, consegui montar uma pequena equipe de repórteres e editores, de modo que a coluna se tornou uma atividade paralela. Meu trabalho principal era transformar o jornal em uma empresa de mídia digital sustentável, e esta é uma das conquistas das quais mais me orgulho. Até hoje, muitos antigos assinantes do Apple Daily se recusam a deletar o aplicativo do celular porque gostam de ver o símbolo ali.

O senhor acredita que o Apple Daily teve sucesso em espalhar as ideias do livre mercado?

Eu não diria que o Apple Daily foi impecável. O jornal tinha seus próprios problemas: tínhamos alguns inimigos e muitas pessoas não gostavam de nós porque achavam o jornal pouco refinado. Alguns diziam que era um tabloide, o que eu acho que é um exagero. Era um jornal popular, com seus erros e acertos típicos. Culturalmente falando, acho que o Apple Daily criou muitas tendências interessantes: nós transformamos a linguagem do dia a dia das pessoas, muitas expressões que hoje estão na boca do povo foram inventadas por nós. Diria que viramos parte da identidade cultural de Hong Kong.

Nosso objetivo tampouco era ensinar Hayek às pessoas; mas eu diria que fizemos o tipo de coisa que Hayek aprovaria ao construir um negócio rentável. Logo nos primeiros meses depois de lançarmos uma assinatura digital paga, reunimos mais de 600 mil assinantes, enquanto o New York Times levou anos para atingir esse número. Considerando que Hong Kong tinha algo em torno de 7 milhões de habitantes, acho que fomos bem-sucedidos.

O editor de opinião e gerente comercial do Apple Daily, Simon Lee.
O editor de opinião e gerente comercial do Apple Daily, Simon Lee.

A perseguição à liberdade de expressão em Hong Kong também começou gradualmente? Como foram os últimos dias de vida do Apple Daily?

A mídia de Hong Kong foi bastante livre até meados de 2008, 2009. Eu me lembro da primeira vez em que um comentarista local recebeu um “aviso” de funcionários de Pequim, num tom de “ei, sabemos que você tem familiares na China, então é melhor ter mais cuidado com o que fala, para não os envergonhar”. Mas, até então, eram ameaças vazias, sem qualquer consequência.

O primeiro evento realmente perturbador aconteceu com uma editora de livros de Hong Kong, cujos funcionários foram sequestrados e enviados para Pequim, em meados 2016. O caso dos livreiros de Causeway Bay foi alarmante e marcou o momento decisivo no qual as pessoas perceberam que não era mais seguro ser abertamente contra o Partido Comunista na cidade.

Quanto ao Apple Daily, nós recebemos dezenas de ameaças por anos e ignoramos todas, até o dia em que um grupo de colegas foi preso. Insistimos no trabalho por mais uma noite e, no dia seguinte, a polícia prendeu um editorialista, depois o CEO, o CFO e o editor-chefe. Prosseguimos: colocamos outro editor no lugar e, ao amanhecer, mais colegas foram presos. Naquela noite, batemos o martelo: “é isso, esta é a última edição”. Foi muito triste, estávamos muito emotivos – e o responsável por esta edição também foi preso em seguida.

Toda a equipe do Apple Daily que foi pega pela polícia continua na cadeia, acusada de “conluio com potências estrangeiras para derrubar o governo chinês”, o que é, em si mesmo, um absurdo. Até onde sei, a maioria deles pretende se declarar culpada, pegando pena de cinco a sete anos de prisão, porque sabem que o veredito já está definido. Caso contrário, podem passar o resto da vida na cadeia. E o pior de tudo é: ainda que eles sobrevivam à prisão, o que farão depois, sem a menor chance de conseguirem um emprego ou viverem dignamente no país?

Na sua visão, qual é o futuro de Hong Kong? Existe alguma saída possível para o conflito?

Acho que o destino de Hong Kong depende do que vai acontecer com a China. Estamos testemunhando um fechamento econômico gigantesco, que pode levar o país ao colapso e, nos últimos 30 anos, Hong Kong desempenhou uma função importante para o Partido Comunista. Perceba como, ao final da década de 1980, o governo chinês se sustentou no poder, a despeito do colapso soviético. A única diferença que explica a sobrevivência do PCC diante da queda da URSS é o fato de os sovietes não terem uma província que ajudasse o regime a fazer a transição do modelo ultrapassado para uma versão mais cosmopolita da economia planejada que eles necessitavam para sobreviver. Hong Kong, portanto, ajudou a China a sobreviver – mesmo durante a crise asiática, a cidade foi essencial para resolver o problema de liquidez dos chineses.

Considerando que o governo da China está altamente endividado e mergulhado em uma crise financeira terrível – o que não é nenhum choque -, penso que a saída para o conflito está atrelada ao quanto Pequim ainda vai precisar de Hong Kong. A cidade não voltará a ser o que era há cinco ou dez anos atrás, a única esperança é que a deterioração econômica desacelere.

Como o senhor vê a atração da juventude chinesa pelo Partido Comunista Chinês?

Primeiro, é preciso ter em mente que a China que conhecemos por fora, a partir de Pequim ou de Shanghai, é muito, muito superficial: representa no máximo 15% ou 20% da população. Os 80% restantes são muito pobres, vivem com até 150 dólares por mês e não têm qualquer acesso à educação ou informação. Essas pessoas não estão nem aí para o partido ou para Xi Jinping: elas querem sobreviver. Não há lealdade a nada.

Agora, entre esses 20%, há muita gente que prosperou por causa do partido, efetivamente se aproveitando da mão de obra barata fornecida pelo resto da população miserável, em primeiro lugar. Em outras palavras, eles morrem de medo de que o PCC colapse e os outros 80% os comam no café da manhã. Portanto, um partido forte é do interesse deles e, por isso, estão dispostos a comprar qualquer narrativa.

O senhor acha que o Ocidente está respondendo aos abusos da China e do Partido Comunista à altura?

É óbvio que não. É urgente que seja traçado um limite para lidar com os abusos da China, especialmente com relação à política internacional. É um absurdo que a Nancy Pelosi (presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos) visite Taiwan e a China simplesmente “resolva” fazer um teste de mísseis. É contra a lei internacional, mas ninguém parece se importar em responder “ei, China, você simplesmente não pode fazer isso”. Ainda que Taiwan fosse parte do país como eles alegam, é injustificável.

Mas, além disso, o que realmente me preocupa não é a forma como vamos corrigir a China, que não irá mudar agora. Nós é que não podemos ficar mais parecidos com ela, e é o que está acontecendo, especialmente depois que os países ocidentais importaram todas as medidas pandêmicas de Pequim, infectando sua política com o autoritarismo, mais do que com a própria Covid.

Xi-Jinping é o Mao Tsé-Tung dos tempos modernos?

Boa pergunta. Ele é diferente. Para mim, se Xi Jinping fosse realmente tão poderoso, ele não precisaria enfatizar isso com tanta frequência. Lembre-se que a razão pela qual Mao iniciou a Revolução Cultural foi porque havia diferentes facções dentro do PCC em conflito. Portanto, eu penso que é preciso abandonar a ilusão de que qualquer ditador pode ser esmagadoramente poderoso sem a necessidade de chegar a algum tipo de consenso com o povo. É o interesse coletivo do PCC que importa, no fim das contas.

Um dos problemas com Mao e Xi têm em comum é justamente o mecanismo de transição de poder. Quando Mao estava velho, a política chinesa virou um caos absoluto. O ditador apontou seus sucessores, eles brigaram entre si, há boatos de que houve assassinatos. Um caos completo. Xi Jinping enfrentará um cenário parecido: afinal, por quanto tempo ele pretende ficar nessa posição? Quanto mais tempo ele fica, mais poder e energia precisa gastar para se salvar. Este é o dilema: sem um mecanismo de transição pacífica de poder, toda nação se torna mais violenta e imprevisível. Não penso, portanto, que Xi Jinping é necessariamente a pessoa mais poderosa na China. Acho até que pode ser a mais vulnerável.

Pode haver, então, alguma esperança para a China?

Há, sim. Mas a um longo, longo prazo – e depois de uma perda gigantesca e desnecessária de muitas vidas.

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