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Venezuela

A ditadura socialista que destruiu o Natal: pais são obrigados a deixar filhos em orfanatos

A pequena Michel,  de 12 anos, cobre o rosto após saber que sua mãe não conseguirá comprar os tênis que ela queria para o Natal. | The Washington Post
A pequena Michel,  de 12 anos, cobre o rosto após saber que sua mãe não conseguirá comprar os tênis que ela queria para o Natal. (Foto: The Washington Post)

Eles eram o modelo mais barato na loja, mas os Converse clássicos ainda saíam por 500.000 bolívares venezuelanos o par. “Son locos” (“eles são loucos”), disse Viviana Acosta, devolvendo delicadamente os tênis à prateleira. 

Pouco antes do Natal, a pior crise de inflação do mundo em quase uma década estava aumentando – trazendo um país de cerca de 32 milhões de habitantes, que já teve a maior renda per capita da América Latina - ao chão. Os planos de Viviana para as festas de fim de ano incluíam tênis novos para os filhos. Mas multiplique o valor por três – para duas meninas e um menino – e lá se vão três meses de salário, que ela ganha cortando cabelos e fazendo unhas a domicílio. 

Ela voltou à rua comercial, meio vazia, esfregando o cansaço dos olhos. O lanche que deu às crianças no café-da-manhã – mingau de aveia, vendido por um senhor na calçada – praticamente dobrou de preço no último mês, subindo para 5.000 bolívares venezuelanos o prato. Viviana e seu marido, Enrique Alvarado, ficaram sem comer. 

A família passava por um pôster com a imagem do finado Hugo Chávez – “Sempre conosco”, dizia a legenda da foto – quando a matriarca avistou o verdadeiro problema: a loja de brinquedos. 

“Não fiquem muito animados”, disse Viviana, 29 anos, enquanto os entusiasmados Victoria, 4, Ruben, 9, e Michel, 12, corriam para dentro do comércio. “Mamãe, veja!”, disse Ruben, apontando para uma caixa com bonecos da franquia Transformers. 

Ela a pegou, observando o preço. 

“Cinco milhões”, exclamou, horrorizada. 10 meses de pagamento. Ruben olhou para a mãe. Ela parecia envergonhada. Logo, o menino também estava corando. “Mamãe”, ele disse, pegando sua mão. “Vamos olhar outra coisa”. 

Venezuelanos estão chamando esse fim de ano de “Infeliz Navidad” (“infeliz Natal”) – uma época festiva devastada pela hiperinflação. 

Quando Chavez estava no poder, o qual assumiu em 1999, a Venezuela, rica em petróleo, se autoproclamou um paraíso socialista. Indústrias foram nacionalizadas. Benefícios providos pelo governo se multiplicaram. Mas a economia venezuelana não funciona mais. 

Nos últimos seis meses, experimentou-se um choque em relação à alta de preços que o mundo tinha visto por último em 2008, com a inflação do Zimbabwe. A Venezuela não divulga dados oficiais sobre o assunto desde 2015, mas mês passado, de acordo com a empresa especializada em estatística Ecoanalitica, localizada em Caracas, o país chegou a um nível de hiperinflação, atingindo um nível atual de cerca de 2.000%. 

O governo, praticamente quebrado, tentando se equilibrar, está imprimindo mais dinheiro para fazer a economia fluir. Isso só aumenta a inflação. A Venezuela bem que tentou estabelecer uma cota de câmbio não oficial, com taxa de 10 bolívares para um dólar, mas o crescente mercado negro já conseguiu firmar sua própria taxa, em que a moeda nacional vem caindo desde o dia 1° de janeiro. 

No começo, era preciso 3.164 bolívares para comprar um dólar. Agora, precisa-se de 123.000. 

O bolívar estar completamente desvalorizado significa que os produtos importados – geralmente adquiridos em dólar – estão ridiculamente caros, não conseguindo as empresas venezuelanas comprar insumos produzidos no exterior, o que diminui a sua produção. 

Enquanto a inflação decola, os hospitais estão ficando sem antibióticos, gazes, coquetéis de HIV e remédios utilizados no tratamento de câncer. Pais não têm condições de alimentar seus filhos e estão abandonando os pequenos em orfanatos. Como o serviço público não consegue pagar por novas instalações elétricas, o país tem se deparado com apagões frequentes. E o governo acaba de criar a nota de 100.000 bolívares. 

Os preços repassados aos consumidores estão numa linha crescente há anos, especialmente depois que o Nicolás Maduro se tornou presidente após a morte de Chavez, em 2013. A queda no preço global do petróleo é outro fator. Há, também, a queda na produção de petróleo, já que, aqui, a indústria enfrenta o peso da corrupção e negligência. 

O governo tentou ajudar os cidadãos com a liberação de mais dinheiro e a promessa de cestas básicas extra. Ele coloca a culpa pela situação angustiante da economia nos especuladores, nas oligarquias ambiciosas e em ataques promovidos pelas forças internacionais – principalmente no governo Trump, que em agosto determinou sanções que deixaram ainda mais difícil para a Venezuela ter acesso ao sistema econômico dos Estados Unidos. 

A hiperinflação acelerou, no entanto, após as eleições de julho, manchadas pela fraude. O pleito criou uma nova super legislatura de políticos fiéis ao governo, substituindo a oposição na Assemblei Nacional, o que deu a Maduro, virtualmente, poder ditatorial

Atualmente, os valores cambiais estão ligados à credibilidade e à solvência dos governos. Especialistas afirmam que a Venezuela de hoje não conta com ambos. 

A região central de Caracas um dia já foi enfeitada com luzes de Natal durante o fim de ano. Agora, Enrique e Viviana passeiam com os filhos em ruas com nenhuma decoração natalina. 

“É como se o Natal sequer fosse acontecer esse ano”, disse Enrique, 30 anos, enquanto carregava a pequena Victoria nos braços. 

Enquanto a família caminhava pela Avenida Sabana Grande, deparavam-se com longas filas nos caixas eletrônicos da cidade. Na Venezuela, transações mais altas são feitas somente, em sua maioria, por meio de cartões bancários. As instituições financeiras estão racionando a retirada dinheiro, com um limite diário de 10.000 bolívares – cerca de 8 centavos de dólar na cotação do mercado negro. Para ter dinheiro suficiente para comprar itens menores, os venezuelanos precisam se dirigir aos caixas eletrônicos diariamente. 

Viviana e Enrique tinham algum dinheiro vivo com eles, mas não por um bom motivo. 

A fim de acompanhar a inflação, o governo está constantemente aumentando o salário mínimo mensal. A última alta, em novembro – de 325.000 para 456.000 bolívares venezuelanos, em dinheiro e vale-alimentação – foi demais para a construtora onde Enrique trabalhava. Metade do quadro de funcionários foi demitida, incluindo ele. 

“Eu não os culpo”, disse Enrique, ajeitando seu boné do L.A. Lakers. “Ninguém está construindo. Tudo parou”. 

Enrique e a esposa decidiram que ele usaria a indenização de 1 milhão de dólares que recebeu após a dispensa do trabalho para ir à Colômbia em janeiro. Assim como milhares de venezuelanos, ele atravessaria a fronteira ilegalmente – passaportes custam caro e demoram muito tempo para ficar prontos – para procurar emprego. Eles estariam separados, é verdade, mas ele enviaria dinheiro à família. 

Tanto Ruben quanto a irmã mais velha, Michel, perceberam como as coisas estavam feias. Para poupar seus pais, eles não fizeram uma lista de presentes de Natal este ano. Com a pequena Victoria a história era outra. 

Enquanto estava no colo do pai, ela abriu um sorrisão largo e tirou um pedaço enrugado de papel do bolso e o segurou em frente à sua camisa rosa xadrez. A cartinha estava decorada com desenhos de árvore de Natal e a cara do Papai Noel. 

“Querido menino Jesus”, ela começou lendo em voz alta, referindo-se à figura que, na tradição venezuelana, é a verdadeira força por trás do Papai Noel. “Eu quero patins, maquiagem, um cachorrinho e uma boneca”. 

“É isso o que eu quero, papai”, ela disse. “Posso ter?”. Enrique piscou com força. “Filhinha...”, limitou-se a dizer, colocando o rosto da menina em seu ombro. 

Dois dias depois, na casa da família localizada a uma hora de Caracas, Viviana tinha praticamente se esquecido dos presentes. Ela estava ocupada demais se preocupando com comida. 

Eles nunca se viram como uma família de classe média, mas, durante um tempo, chegaram muito perto. Iam para a praia aos feriados. No ano passado, com a inflação crescendo, cortaram a viagem de férias, mas mesmo assim conseguiram montar uma bela ceia natalina, com porco assado, salada de frango e hallacas, prato típico venezuelano. Nesse ano, serão apenas hallacas – se eles conseguirem encontrar os ingredientes – e arcar com eles. 

Naquela manhã, Viviana se preparava para as horas que enfrentaria na longa fila do mercado a fim de comprar bifes a preços controlados pelo governo. Recebeu, então, a visita de uma prima que tinha acabado de estar no estabelecimento. “Não precisa se preocupar”, ela disse. Não havia mais nenhum nas prateleiras. 

Foi assim por dias. O frango praticamente desaparecera. O governou tentou frear o desespero causado pela inflação ao regular os preços de alimentos como carne, fubá e pão. A medida, contudo, pareceu corroborar com a escassez de ofertas. Os produtores, enfrentando custos elevados, recusavam-se a ter prejuízo. 

Em 2017, Viviana perdeu nove quilos, pulando refeições para que pudesse alimentar as crianças. 

“É a dieta do Maduro”, afirmou. “Na escola, as crianças estão fazendo piadas, dizem que até o Papai Noel está magro esse ano”. 

No mesmo período, a hiperinflação estava comendo o salário dela. Durante dezembro, ela cobrou 25,000 bolívares pela manicure – o mesmo preço de novembro. Mesmo assim, o valor do fortalecedor de unhas que ela utiliza para trabalhar triplicou em um mês, alcançando os 3,000 bolívares. Se seu secador quebrasse, também quebraria sua segunda ocupação, de cabeleireira. Um novo sairia por 1,5 milhão. 

E o Natal só deixou tudo mais estressante.

“Eu gostaria de fechar os olhos, dormir e não acordar a tempo para o Natal”, disse Viviana. “Seria muito melhor”. “Mas... As crianças”. 

Eles são cristãos renascidos, e não montaram árvore de Natal nos últimos três anos – não acreditavam realmente naquilo. Como a maior parte da vizinhança, porém, eles costumavam decorar a casa com luzes. Esse ano isso não aconteceu. Somente uma rua do bairro se preocupou com decoração – e foram poucas luzes. 

Victoria implorou por um pinheirinho esse ano. Eles fizeram uma promessa à menina: recolheriam enfeites antigos e colariam à parede em forma de pinheiro. Mas a “árvore” deles deveria ter luzes, insistiu Victoria. 

Num momento de inflação feroz e escassez de comida, as luzinhas foram um luxo tremendo – um golpe de 40.000 bolívares. Enrique precisava do dinheiro para a viagem à Colômbia, mas é Natal, e a menina tem apenas 4 anos de idade. 

Viviana suspirou quando o marido chegou em casa com a caixa do adereço. 

“40.000 por 20 luzes?”, exclamou. 

E então a “árvore” estava brilhando com suas discretas luzes brancas. Victoria estava radiante. E Enrique sorria também. 

Tradução de Mariana Balan.

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