Ouça este conteúdo
Agora que Roe v. Wade foi derrubada, e a autoridade para determinar a política de aborto finalmente foi devolvida ao povo e seus representantes eleitos, importa mais do que nunca persuadirmos os nossos concidadãos de que a vida dos nascituros merece proteção. Infelizmente, porém, o debate público sobre o aborto é distorcido por numerosos mal-entendidos e slogans enganosos. Identificar e corrigir esses mal-entendidos é crucial, se quisermos ter uma discussão pública razoável sobre essa questão importante e sensível. Isto é precisamente o que pretendo fazer neste ensaio. Como o meu propósito é dar um panorama dos mal-entendidos comuns e de como responder a eles, meu argumento será breve. Mas colocarei links para argumentos mais longos, pensando naqueles que quiserem explorar um ponto particular com uma profundidade maior.
Mal-entendido #1: Não sabemos quando a vida começa
Apesar do claro consenso científico de que a vida começa na concepção, o grau de difusão desse mal-entendido surpreende. Roe se referia ao nascituro como "vida potencial", e declinou a "resolver a difícil questão de quando começa a vida", ignorando o consenso médico já existente (que remonta a meados do século XIX) segundo o qual a vida humana começa na concepção. É comum ouvir as pessoas dizerem que nos estágios iniciais da gravidez o embrião ou feto é só "um amontoado de células", ou falar do aborto como remoção do "tecido da gravidez". Ainda assim, tal retórica é ideológica, não científica, feita para turvar a realidade inegável de que o aborto mata um ser humano. Manuais de biologia padrão afirmam que a vida humana começa com a fertilização (quando o espermatozoide e o óvulo se fundem), e a ciência subjacente deixa claro que a fusão do espermatozoide com o óvulo resulta num novo ser humano que é genética e funcionalmente distinto da mãe, com todos os recursos internos necessários para rumar à maturidade. Embriões e fetos não são "vida potencial", mas seres humanos iniciantes, com o potencial para amadurecerem até a idade adulta.
Mal-entendido #2: O aborto concerne ao direito da mulher a fazer o que quiser com o próprio corpo
"Meu corpo, minhas regras", talvez seja o slogan de maior poder retórico empregado pelo movimento pró-escolha. Muitos chegam a admitir que uma nova vida humana começa com a concepção, e ainda assim argumentam que o aborto deveria ser legal porque uma mulher não deveria ser forçada a gestar uma criança.
A opinião contrária à decisão Dobbs está cheia dessa retórica relativa a garantir que o estados tenham o poder de "forçar as mulheres a darem à luz", e reações à decisão retratam-na como criadora de um mundo distópico como O Conto da Aia.
Ainda assim, o nascituro é um ser humano distinto, não parte do corpo da mulher. Do contrário diríamos que grávidas têm quatro pernas, quatro braços e dois corações batendo com velocidades distintas. O nascituro tem um código genético único, diferente do da mãe e do pai, e dirige seu próprio desenvolvimento. O corpo da mãe apenas provê nutrição, proteção e ambiente adequado -- coisas de que precisamos para sobreviver em qualquer estágio da vida.
Todos reconhecem que há limites morais e legais à nossa autonomia corporal. Meu direito a balançar o meu punho acaba onde começa o seu nariz. Meu direito a fumar é limitado pelo direito dos outros a não sofrerem com os danos da fumaça.
Os efeitos primários do aborto não são sobre o corpo da mulher, mas sobre o corpo do nascituro em seu útero. E se o nascituro realmente é uma pessoa com direitos básicos como você e eu, então é difícil ver como matar uma criança para escapar do fardo da gravidez e da maternidade pode ser mais justificável do que matar uma criança nascida (que é muito mais difícil de cuidar do que uma criança dentro do útero).
Ademais, como a Erika Bachiochi aponta em seu excelente livro The Rights of Women [Os direitos das mulheres], as primeiras feministas (que eram pró-vida) entendiam a "maternidade voluntária" não como um direito ao aborto, mas como um direito da mulher, mesmo dentro do casamento, a recusar sexo. Exceto em casos de estupro (que correspondem só a 1% de todos os abortos), as mulheres têm direito ilimitado para exercer a "escolha reprodutiva" antes da concepção de uma criança. Uma vez que a criança existe, a reprodução já ocorreu, e a escolha reprodutiva já foi feita; o aborto é uma "escolha reprodutiva" tanto quanto o infanticídio.
Mal-entendido #3: O nascituro não é uma pessoa
Os argumentos mais nuançados em defesa do aborto não tentam negar que a vida humana começa com a fertilização, nem que essa nova vida é distinta da da mãe, nem que o aborto é o ato intencional de matar essa vida humana distinta. Em vez disso, filósofos como Peter Singer, Mary Anne Warren e Michael Tooley argumentam que os nascituros, embora humanos, não são pessoas com pleno status moral e direito moral, porque faltam a eles qualidades como autoconsciência e racionalidade, qualidades que eles acreditam ser a base de nosso status moral especial e direitos subsequentes.
Há muitos problemas nessa perspectiva, mas um dos mais óbvios é que, se for verdadeira, os bebês, as criancinhas, os deficientes com sérios problemas cognitivos e muitos seres humanos nascidos tampouco contariam como pessoas com status moral e direitos. Noutras palavras, como muitos defensores dessa perspectiva argumentam francamente, isso justifica não só aborto, mas também infanticídio e eutanásia involuntária de deficientes mentais graves. Como Warren nota em seu famoso artigo em defesa do aborto, "seres humanos deficientes, sem capacidade mental apreciável, não são e, presumivelmente, nunca serão gente." Outrossim, Peter Singer, em Ética Prática, defende que como bebês não têm consciência de si, eles "não são pessoas", e suas vidas são de "menos valor que a vida de um porco, um cachorro ou um chimpanzé." Ademais, a alegação de que alguns seres humanos não são "pessoas", e portanto faltam-lhes direitos básicos, foi usada através da história por defensores da escravidão e do genocídio para justificar as suas injustiças grosseiras.
Uma perspectiva mais defensável é reconhecer que todos os seres humanos são pessoas porque todos os seres humanos (independentemente do seu estágio de desenvolvimento ou estado de saúde) possui uma natureza racional, mesmo que não possam (ainda) manifestar sua racionalidade por causa da imaturidade ou da doença. Sabemos que este é o caso porque todos os seres humanos, se não impedidos por alguma causa externa como doença ou injúria, começam, sim, a manifestar capacidades racionais tão logo alcancem um nível de maturidade. Isto significa que a raiz da capacidade para a racionalidade deve estar presente por todo o tempo. Do contrário, a manifestação regular e previsível de capacidades racionais em humanos num certo estágio do desenvolvimento — mas não em gatos, cães golfinhos ou em qualquer outro animal — seria bem misterioso e inexplicável.
Desde o começo da vida, todos os humanos possuem os primórdios genéticos e epigenéticos de um cérebro e de outros apoios estruturais biológicos para o exercício de capacidades racionais. Até antes de essas capacidades poderem se manifestar, já estão presentes como uma raiz, assim como essas capacidades continuam presentes quando uma pessoa está dormindo ou em coma. Todo ser humano, independentemente da idade, doença ou deficiência, possui uma natureza racional e portanto é uma pessoa com uma dignidade inata cujos direitos básicos merecem proteção.
Mal-entendido #4: O aborto é questão de saúde
Muitos alegam que o aborto é uma decisão privada da mulher, relativa à saúde, que deveria ser feita em consulta ao médico, livre de restrições legais. Ainda assim, tirando o fato de haver numerosas limitações legais às intervenções que os médicos podem oferecer aos seus pacientes, o aborto (exceto quando a vida da mulher está seriamente ameaçada pela gravidez) não é almejado para a cura ou para a saúde. Gravidez não é doença. O corpo da mulher é feito para ser capaz de se reproduzir e gestar a prole. A gravidez é, antes, um sinal de saúde, não uma doença que precisa ser "curada" pelo aborto. É possível dizer que tratar a capacidade feminina para a gravidez, como se esta fosse uma doença em vez de sinal de saúde, distorceu a prática da medicina em detrimento das mulheres, ignorando a importância do ciclo menstrual como o "quinto sinal vital", e confiando, em vez disso, na pílula anticoncepcional (com seus muitos efeitos colaterais) para mascarar problemas de saúde da mulher em vez de tratar as causas.
A grande maioria dos abortos -- mais de 95%, pelos dados da Flórida— envolve uma mãe sadia e um bebê sadio. Em casos que envolvem a ameaça à saúde da mãe, os procedimentos necessários para salvar a mãe podem ser justificados pelo princípio do efeito duplo, mesmo que a criança nascitura morra como um efeito colateral não intencional (e todas as leis que restringem aborto devem ter exceção para tais casos).
Ademais, estudos mostram com clareza que legalizar o aborto não reduz a mortalidade geral das mães. Um estudo compara a mortalidade materna no Chile durante o período em que o aborto era legal (1959–1989) à mortalidade materna durante o período em que o aborto era ilegal (1989–2007). O estudo mostrou que a mortalidade materna era mais que três vezes mais baixa no no período em que o aborto era ilegal (12,7 mortes por 100,000, contra 41,3 mortes por 100,000 quando o aborto era legal), continuando a tendência de queda que começou com a descoberta da penicilina e outros avanços médicos. Outros estudos confirmam que a disponibilidade do aborto não reduz a queda da mortalidade materna, e destaca os significativos riscos físicos e psicológicos do aborto, que costumam ser sub-notificados. Importa ainda notar que as alegações de milhares de mortes causadas por abortos precários antes de Roe são falsas, como até os fact-checkers do Washington Post’s mostraram.
Mal-entendido #5: O aborto é necessário à igualdade das mulheres
As frequentes referências a O Conto da Aia nas reações à decisão Dobbs promovem o mal-entendido de que as restrições ao aborto irão, de alguma maneira, desfazer todos os ganhos políticos, sociais e econômicos que as mulheres tiveram no século passado. Tais reações presumem, contra as evidências, que esses ganhos (que começaram bem antes de Roe legalizar o aborto pelo país) dependiam da disponibilidade do aborto. Ainda assim, as primeiras feministas a lutarem por igualdade política e social não acreditavam que o aborto fosse necessário ou mesmo bom para a causa. Alice Paul, autora da Equal Rights Amendment [Emenda dos Direitos Iguais] original, dizia que “o aborto é a exploração suprema da mulher.” De fato, como Bachiochi e outras feministas pró-vida disseram, o aborto na verdade prejudica a igualdade das mulheres ao alimentar uma cultura que toma "o corpo masculino, sem útero, como norma", desvaloriza o importante trabalho de cuidar das crianças e diz às mulheres que, para terem êxito profissional, social e educacional, elas precisam fazer os seus corpos parecerem os dos homens, por meio do controle artificial da natalidade e do aborto. A verdadeira igualdade valorizaria e apoiaria a capacidade única da mulher de engendrar crianças — com políticas razoáveis de licença maternidade e opções flexíveis para o trabalho — em vez de exigir que as mulheres fiquem parecidas com os homens para competir.
Mal-entendido #6: O aborto pode "resolver" uma gravidez indesejada
Esse mal-entendido não costuma ser afirmado de maneira explícita, mas está implícito no pressuposto comum de que o aborto pode "dar um jeito" numa gravidez indesejada, deixando a vida continuar como se nada tivesse acontecido. Mas o aborto não é uma solução fácil nem simples, e a gravidez não é algo que pode ser "desfeito", porque nada pode "desfazer" a existência de uma nova vida humana. Refletindo sobre a própria experiência de uma gravidez indesejada e sua luta para decidir se abortava, Mariel Lindsay escreve: "Eu já pensei que uma gravidez indesejada poderia ser resolvida com facilidade. Mas foi só quando carreguei o peso da decisão (carreguei literalmente, no meu corpo) que percebi que estava longe de ser fácil ou de ter solução fácil." Ela continua e explica: "Amiúde se vê a escolha de ter um bebê como uma jovem solteira como uma decisão colossal, que muda a vida e altera as perspectivas para sempre. Mas poucas vezes ouvi algo remotamente parecido com a experiência que eu de fato tive: uma sensação clara de que a alternativa não muda menos a vida, nem gera menos arrependimento." Lindsay reconheceu, em outras palavras, que sua vida foi alterada para sempre pela concepção de uma criança, e que nada que ela fizesse poderia mudar ou desfazer isso. O aborto pode parecer uma "saída fácil", mas, como atestam os especialistas que ofereceram aconselhamento pós-aborto a milhares de mulheres, e como mostram os estudos, o trauma pós-aborto é real e tem efeitos duradouros, ainda que muitos recursos para apoio e cura estejam disponíveis.
Mal-entendido #7: Aborto é uma questão religiosa.
“Deixem seus rosários fora dos meus ovários” há muito tempo é o slogan favorito do movimentoabortista, implicando que os pró-vida tentam impor seus valores religiosos aos outros. Muitos políticos a favor do aborto, incluindo o presidente Biden, também representaram as opiniões sobre o aborto como questão de fé religiosa privada, como a recomendação católica de ir à missa aos domingos, de modo que seria impróprio o governo impor a todos os cidadãos. Mas o aborto é, sobretudo, uma questão de direitos humanos, não uma questão de fé religiosa. E se o aborto for uma "questão religiosa", também são a justiça racial, a reforma da imigração, a proteção ao meio ambiente ou o alívio da pobreza. Ninguém precisa ser um religioso para entender que é errado matar seres humanos inocentes. De fato, nenhum dos argumentos apresentados neste artigo se baseia numa alegação religiosa.
E mesmo que seja verdade que muitos pró-vida estão comprometidos com a proteção dos nascituros por causa da fé, isto não é motivo para ignorar suas vozes. O grande defensor dos direitos civis Martin Luther King Jr. era um pastor cristão cuja crença na igual dignidade de todos os seres humanos, e seu compromisso da causa da justiça racial estava fundamentada em sua fé cristã. Ainda assim, ninguém argumentaria que, ao fazer lobby pela legislação dos direitos civis, ele estivesse buscando impor sua fé aos demais ilegitimamente. Os Dez Mandamentos proíbem matar e roubar, mas disso não se segue que leis contra homicídio e roubo sejam imposições religiosas.
Todos os argumentos apresentados acima podem ser expandidos em detalhe, e sem dúvida há outros mal-entendidos sobre aborto que eu não mencionei. Não obstante, espero que, articulando e respondendo a esses mal-entendidos comuns, fique mais fácil esclarecer e avançar o debate, deixando para trás slogans enganosos e seguindo para um diálogo público franco e respeitoso no começo de Dobbs, e buscando construir uma genuína cultura da vida, que apóia as necessidades de mulheres e crianças.
Melissa Moschella é professora associada de Filosofia na Universidade Católica da América e autora de 'To Whom Do Children Belong? Parental Rights, Civic Education and Children’s Autonomy' (A quem pertencem as crianças? Direitos dos Pais, Educação Cívica e Autonomia das Crianças - Cambridge University Press).