Vacina contra a poliomielite e o sarampo são coisas tão bem estabelecidas, que não é fácil convencer os antivacina de sua eficácia. Fazer as pessoas crerem em coisas não estabelecidas é mais fácil do que fazê-las crerem nas muitíssimo bem estabelecidas; afinal, só estas últimas requerem um imenso grau de teimosia ou fanatismo para serem negadas. Teimosia e fanatismo minam qualquer conversa.
Os antivacina se dividem em dois grupos: os naturebas e os conspiracionistas da internet. Os primeiros sacralizam a natureza e acham que tudo o que é artificial é venenoso. São gente urbana que acha que a natureza foi fielmente representada na obra cinematográfica Bambi.
Caso o natureba seja vegano, ainda se recusará a tomar vacina por causa de princípios éticos, uma vez que as vacinas são testadas em animais, e achar que a vida humana vale mais que o de um rato é o abominável preconceito de “especismo”. Embora exista caso de natureba antivacina coberto pela imprensa, há a lenda de que só os conspiracionistas da internet, direitistas, são antivacina.
Por outro lado, há quem ache que a direita terraplanista não existe, e é tudo uma invenção da imprensa progressista. E esta, a seu turno, aproveita para pintar todo direitista de terraplanista. Agora, quando Bolsonaro se opõe à obrigatoriedade da vacina xing-ling, está feita a festa: todo mundo que não quer tomar esse troço feito a jato é um bolsonarista terraplanista antivacina.
É claro que essa generalização não é minimamente razoável. Vacinas levam tempo para ficar prontas. Em Oxford, situada numa democracia, vira e mexe aparece algum voluntário tendo piriri. Na Rússia e na China, nenhuma notícia negativa. Quem não for um completo desmemoriado há de se lembrar do sumiço de Li Wenliang, o médico que alertou aos colegas sobre o novo vírus, foi preso e acabou morto.
Evoca-se a autoridade do Butantã, ao mesmo tempo que a verba da pesquisa paulista é cortada pelo governo do estado. Nessas circunstâncias, eu acho mais fácil o Brasil aprender com a China a ter sua própria pandemia do que fazer uma vacina boa em menos de um ano. Vislumbro o mundo a deplorar o hábito brasileiro de comer churrasquinho de gato, vetor da novíssima pandemia.
Tá todo mundo doido
A questão da vacina está uma gritaria: tem gente com medo da vacina e gente com medo dos antivacina. Em meio a tanta gritaria, que fazer? Bom, quem vira militante antivacina – contra as vacinas tradicionais e bem estabelecidas – é gente com pleno acesso à informação e a serviços de saúde. É gente que crê porque quer crer, e não está ao meu alcance fazer ninguém mudar de ideia. Isso, só quem pode fazer são as doenças do século XIX. Resta, então, falar dos que não são naturebas e não querem tomar a vacina da China: grupo no qual estamos eu e os conspiracionistas de internet. Contarei a fábula do parente terraplanista.
Era uma vez, ainda na era pré-covid, no longínquo ano de 2019, uma jovem que teve um filho. Essa jovem acontecia de ser minha prima, e me contou então a última novidade: o tio Fulano agora é antivacina, diz que existe um tal Papa da vacina, que sabe tudo de vacina, que fala de vacina no Youtube, e que ela (a minha prima) não deveria dar vacina nenhuma para o filho porque o Papa da vacina diz que não é pra dar vacina. Ela, naturalmente, não deu trela pro tio e vacinou o menino.
O parente em questão era apolítico desde que me entendo por gente. Mas, desde 2018, estava apavorado com uma parenta que sempre foi de esquerda, e militante. A parenta falava umas barbaridades em grupo de família do WhatsApp, e ele começou a suspeitar que fosse louca. Acreditava em teorias conspiratórias divulgadas por Marilena Chauí e Zé de Abreu, segundo as quais Moro é um agente da CIA que prendeu o inocente Lula para roubar o pré-sal, e a facada de Bolsonaro foi uma farsa montada pelo Mossad em parceria com a Globo e o Hospital Israelita Albert Einstein. Lá pelas tantas, a parenta botou Paulo Freire nas alturas, e ele descobriu que era o nome da escola da filha dele. Ficou desesperado.
Foi então pesquisar o assunto na internet e caiu em Olavo de Carvalho. Eu sabia que Olavo tinha divulgado vídeo de conspiracionista antivacina. Se ele tinha virado antivacina depois dessa, é provável que tenha visto mais vídeos estrambólicos divulgados por Olavo de Carvalho – o que inclui os do youtuber terraplanista Bruno Alves. Então, num momento de ócio, mandei ao parente aquela perguntinha marota pelo WhatsApp: “Qual é o formato da terra?”
Ele respondeu que depende. A nova ciência experimental vem refutando a teoria corrente segundo a qual a terra seria “redonda, molhada e giratória” (sic). A NOM (Nova Ordem Mundial), que inclui a Rainha da Inglaterra, John Lennon e o Papa Francisco, quer fazer o homem crer que é somente uma forma de vida aleatória voando numa bola pelo espaço, quando na verdade o homem tem uma relação próxima com Deus, foi criado por ele e posto no centro da Criação, a qual é um disco com uma abóboda tal como diz a Bíblia. A NOM revelou seu plano em "Imagine", de John Lennon, e em "Mr. Crowley", de Ozzy Osbourne.
Mostrei meu achado para a minha prima, que só acreditou mediante prints, e ficou apavorada. Eu, que sou uma diletante, achei um barato e fui pesquisar mais: entrei em tudo quanto era grupo de terraplanista no Facebook. Dei a sorte de ver que um deles era administrado por um conhecido meu, que criou um grupo para atrair terraplanistas e desmistificá-los. Ganhei, assim, um expert em terraplanismo para saber como interagir com o parente.
Nos grupos, aprendi que eles pretendem acreditar só em coisas que têm comprovação na experiência ao seu alcance. Apresentam uma foto do mar no horizonte e de um copo d’água, e “provam” assim que a água não faz curva, de modo que a terra só pode ser plana. Mas se mostrarem a eles a foto de uma moeda com uma gota d’água em cima, eles irão ficar brabos e desconversar. Eles se sentem muito superiores por serem uma pequena parcela da humanidade que sabe a Verdade. Até fazem memes com a alegoria da caverna, de Platão, em que eles são os que saíram da caverna, enquanto nós estamos dentro.
Terraplanistas são religiosos e anticapitalistas, e é o anticapitalismo que os leva a serem antivacina. A Big Pharma, a indústria farmacêutica, existe para fazer todo mundo adoecer e vender remédios depois.
As vacinas seriam cancerígenas, e a NOM (que inclui Bill Gates) as injeta nas pessoas para elas terem câncer e darem dinheiro à Big Pharma por tratamentos.
O leitor se lembra da querela da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer”? Essa pílula – feita na USP! – curaria qualquer tipo de câncer a um preço baixo. Por isso, a Big Pharma mandaria dizer que era tudo charlatanismo, mas Bolsonaro, Dilma Rousseff e Jean Wyllys atuaram para obrigar a USP a continuar fornecendo as benditas pílulas para todo mundo. Como o anticapitalismo os unia, não é de admirar que se juntassem na luta contra a Big Pharma.
Voltemos à saga do parente terraplanista. O expert em terraplanismo decifrou para mim o que ele queria dizer com coisas como a farsa da “blue mapple”. “Blue mapple” era para ser “Blue Marble”, ou gude azul, a foto da terra tirada pela NASA em 1972, durante a Missão Apollo 17. Desde então, a NASA tem refeito a Blue Marble juntando fotos de satélite. Os terraplanistas pegam imagens homônimas, que são montagem, e “provam” que a Blue Marble é não passa de uma montagem feita pela NASA.
Segui o conselho de deixar de lado a Rainha da Inglaterra e perguntar o que os pilotos de avião, os professores de física e os astrônomos diletantes têm a ganhar com a NOM, já que eles também “mentem” dizendo que a terra é redonda. Esta é a pergunta que os terraplanistas nunca respondem. Perguntei, e o meu parente contou que já foi atrás de pilotos de avião tentar desmascará-los. Perguntou-lhes como faziam para acompanhar a curvatura da terra, em vez de seguir em linha reta rumo ao espaço. Os pilotos ficaram olhando-o com uns olhões, o que só prova que eles têm medo de contar a verdade. Essa foi uma das coisas mais engraçadas que já ouvi. O parente ficou brabo comigo porque descobriu que não levo a sério as suas convicções e me bloqueou do WhatsApp.
Mas felizmente já desbloqueou. Eu, que não sou adepta do tati-bernardismo cultural, não quero briga em família por causa de política, e nem mesmo por causa de doidice.
Moral da história
Com a história da vacina chinesa, eis que agora eu estou junto com o parente terraplanista, em encarniçada oposição à “vachina obrigadória”. Mas, assim como a parenta que crê na inocência de Lula e nas intrigas do Mossad, sigo firme e forte em defesa da vacina contra a poliomielite, o tétano, a febre amarela, o sarampo. E o leitor também estará ao lado de pelo menos um desses doidos.
A moral da história é que não importa onde você esteja: se procurar direitinho, sempre encontrará um doido ao seu lado. Então não temos saída senão julgar as coisas usando os nossos miolos, em vez de simplesmente aderir a um fantasioso bando das pessoas sensatas.
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