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I saw the best minds of my generation destroyed by madness, 

starving hysterical naked. 

Allen Ginsberg, ‘Howl’

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Já não há mais decisões políticas corretas. Houve tempo em que podíamos percebê-las em um Sólon, durante a crise ateniense da antiguidade; ou então em um Winston Churchill, quando o primeiro-ministro inglês conseguiu engajar a Inglaterra em uma “guerra das palavras” que motivou a nobre Albion contra o Terceiro Reich de Adolf Hitler. 

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Havia uma certa consolação nelas; conseguíamos perceber a prudência que equilibrava não só as palavras e as coisas, mas sobretudo as ações e os discursos. A política tinha uma unidade cifrada e multifacetada, intuída claramente por meio das nossas faculdades racionais, mesmo quando ela não se manifestava somente na prática — mas também na recusa de participar do jogo público. 

Sólon, ao ver que a lei justa não seria compreendida adequadamente pelo povo de Atenas, decidiu se recolher; Churchill, quando percebeu que a sociedade inglesa não o desejava mais, voltou a escrever seus livros e a pintar seus bucólicos quadros. 

Contudo, hoje em dia, cada decisão política, em qualquer parte do globo terrestre, só nos traz desolamento. Tornou-se uma espécie de autopunição a cada um de nós que tenta participar, direta ou indiretamente, do processo de construir — ou, em muitos casos, de reconstruir, como é o caso do Brasil após a devastação que foi o governo do Partido dos Trabalhadores entre 2002 e 2015 — uma comunidade onde possamos ter alguma esperança, alimentar nossos desejos mais saudáveis, educar a imaginação moral, ficarmos em paz durante a nossa vigília. Em suma, sonhar – sempre com os pés no chão. 

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Essa impossibilidade de sonhar e de contemplar a realidade concreta (e não a realidade que imaginamos existir nas nossas mentes), especialmente na sociedade contemporânea, transformou-se em uma absoluta falta de consolo que, por uma ironia macabra, é a nossa única consolação possível. O sonho virou um pesadelo contaminado, em seus detalhes mais íntimos, por essas decisões políticas completamente equivocadas – e que mancham o nosso cotidiano. 

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É o que aconteceu, por exemplo, com o jornalista Joel Silveira, conforme nos conta em seu relato “A feijoada que derrubou o governo”. Em 1964, nos dias finais de Março, ele caminhava pela orla de Ipanema e relembrava o momento exato em que percebeu que o Golpe Militar, a ser realizado dentro de algumas horas, permaneceria de uma vez por todas nas mentes e nos corações dos brasileiros. 

Como informa o próprio título do seu texto, tudo começou com uma feijoada. Sim, uma feijoada. Duas semanas antes do dia 1º de abril — apesar de que, para muitos, a Gloriosa só aconteceu no dia 31 de março por questões de cronologia, evitando assim a coincidência com o tradicional Dia da Mentira —, Silveira estava presente em um encontro com generais de alta patente, políticos, empresários, jornalistas e publicitários. Ali, estava a malta que era igual a uma elite. 

Uma elite que se esquecia que havia um outro grupo de militares — generais e capitães que não faziam parte da alta casta do poder —, e eles não estavam nada interessados em manter João Goulart na presidência. Já os que faziam parte do governo estavam interessados em outra coisa — na feijoada que, como bem escreveu Silveira, “derrubou o governo” por causa da apatia alimentada por qualquer brasileiro que pretendesse participar de alguma vida política.  

A divertida anedota da feijoada esconde também algo mais sombrio, como também percebeu Silveira. Quando o jornalista andava perto do forte de Copacabana naquele final de Março — após uma noite de insônia em que relembrava a profecia de Samuel Wainer sobre o fato de que “Jango acabou, Jango está no chão” e digeria a feijoada que paralisou o governo —, encontrou-se com “um dos soldados que compunham a marcial parede verde-oliva [e] que guardava a fortaleza me encarou duro, fez um movimento ameaçador com o seu fuzil — gesto e olhar que me bateram no corpo e na mente como uma ducha gelada”. 

Silveira queria passar a barreira, mas o oficial não permitiu. O jornalista insistiu, informando a sua profissão e que, como se esta fosse a coisa mais importante do mundo, tinha de atravessar o lugar para chegar em casa — o que, obviamente, era uma mentira, uma vez que Silveira morava em Ipanema. O soldado não estava nem aí com a importância de quem era o patrão de Silveira: “Não interessa quem você é, meu chapa. Por aqui ninguém passa. Ninguém passa. São ordens”. Silveira esboçou alguma resposta. O “praça” apontou a metralhadora para o seu peito, sem nenhuma hesitação no gesto — “Vá dando logo meia-volta, meu chapa. E não insista, senão puxo o gatilho!”. 

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O repórter deu o seu “meia-volta, volver!”, sabendo que aquela tinha sido a primeira ordem que recebeu da “revolução”, para finalmente chegar em casa e assim, como relata no final do seu memorável artigo, “logo me pus debaixo de uma chuveirada morna, e em seguida estendido na cama, na qual tombei como um morto e da qual só iria me erguer catorze horas depois”. 

Este longo sono “nada teve de tranquilo, mas que, ao contrário, foi todo ele sacudido por pesadelos, tremores, mergulhos em profundezas abissais e sonhos tão vivos que mais pareciam a continuação da realidade”. E “num desses sonhos me vi mais uma vez diante da metralhadora do soldado do forte; e que ao escutar dele o arrogante desafio, ‘Por aqui não passa!’, inflei o peito e num enfurecido arranco encostei a barriga no cano da arma que me visava, faminta; e o fiz com tal decisão que ao bom sentinela não restou outra alternativa senão a de puxar o gatilho e me furar a pança, em cima do fígado. E, para espanto meu, vi que, da ferida aberta, esguichava, em vez de sangue, um impetuoso e espesso jato de caldo de feijão”. 

Omissão política 

A falta de decisão política — neste caso específico, uma omissão política, quase deliberada, de uma elite, testemunhada por um integrante menor deste mesmo “círculo dos sábios” — criou um impasse que, ao não ser resolvido adequadamente, terminou em violência contra o mesmo sujeito que viu a apatia surgir dos altos escalões governamentais. 

Se antes, por exemplo, com os estoicos, qualquer escolha que envolvesse a cosmopolis romana seria inspirada pelo ditame da razão universal, agora, segundo a perspectiva apresentada por Joel Silveira, é a irracionalidade que domina todo um país, fazendo-nos a renunciar às coisas deste mundo por meio de um acordo tácito em que o sonho permitia ser um pesadelo o qual, no fim, era a estrutura final da inteligibilidade e da razão do todo universal. Não há mais o logos imortal. Há somente a matéria pura, sem nenhuma inteligência ou finalidade, inclinando ao acaso conforme a sua intrínseca necessidade. 

Naqueles tempos, o estoico ainda pensava como um individualista. Hoje, é mister pensar como um coletivista — e sem escrúpulos. Na sociedade democrática dos nossos tempos, nenhuma decisão tem a bússola de seguir qualquer preocupação com a vida interior, com a subjetividade, aquilo que enfim nos preserva dos choques da realidade exterior — e que deveria ser o nosso bem mais precioso. 

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Nada disso. 

Temos apenas o recesso deformante, no qual as imagens, as representações e as ações que fazem as coisas acontecerem são apenas as falsificações irreconhecíveis aos olhos de quem poderia identificá-las, todas absolutamente sujeitas ao império do sentimentalismo tóxico. 

Em ‘Contra as Eleições’, do cientista político belga David Van Reybrouck, o próprio processo democrático é uma falsificação em si, algo que está à parte do corpo inteiro da cosmopolis racional, plena de desgaste ou corrupção, onde o abismo que há entre a elite política (inspirada numa técnica que os isola cada vez mais) e a sociedade civil (vítima direta ou indireta dessa tecnocracia) se aprofunda a cada pleito eleitoral. De novo, a cada decisão política, os erros se acentuam – e criam a impressão de que vivemos numa tragédia no qual o coro nos mostra cada vez mais impotentes. 

Os fatos mais recentes não desmentem isso, é claro. Pelo contrário: intensifica-os numa velocidade impressionante, fomentada sobretudo pelas networks descentralizadoras que vivem em tensão com as hierarquias corporativistas que sustentam esses tecnocratas. 

É o que Reybrouck chama de “síndrome de fadiga democrática”, em que “a democracia foi pouco a pouco perdendo os dentes ao mesmo tempo em que devorava seus próprios filhos. Em vez de mastigar discretamente no seu cantinho, com vergonha de seus defeitos, sem ter nenhum poder de ação, o político de hoje deve se expor — as eleições e a mídia não lhe deixam escolha —, de preferência levantando o punho, abrindo a boca e o flanco, para dar boa impressão de energia e força. Ao menos ele crê nisso. 

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Em vez de reconhecer com humildade as mudanças nas relações de poder e buscar novas formas de governar, que façam sentido, o político é obrigado a continuar a jogar a partida midiático-eleitoral, frequentemente contra sua vontade e a do cidadão, que começa a se cansar do espetáculo: toda essa histeria, exagerada e artificial, não é capaz de restaurar a confiança”.  

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Cresce, portanto, a crise de legitimidade em cada decisão política que deveria ter o Bem Comum como norte, sempre em função da liberdade individual. Porém, a coletividade ainda predomina sobre a escolha singular – e não à toa que Simone Weil, em ‘Sobre a supressão dos partidos políticos’, afirmava sem hesitação que a verdadeira sociedade democrática só existiria realmente se todas as agremiações partidárias fossem abolidas. 

Cada partido atomiza a decisão política que poderia ser correta porque não só legitima o pensamento coletivista, como também o transforma em uma instituição, com as ramificações técnicas que isto implica na vida cotidiana do cidadão. Lentamente, a democracia – que deveria transformar a absoluta falta de consolo da condição política, a fim de regenerar o homem como indivíduo, na consolação suprema do homem como uma espécie a ser perpetuada na história – se isola em suas próprias entranhas. 

Aqui, a propaganda e a mídia só colaboram para este cenário tenebroso. Afinal de contas, escreve Weil, o objetivo dela é convencer – e não transmitir a luz daquela clareza conceitual que, como diria Ortega y Gasset, deveria ser a cortesia do filósofo. 

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Neste aspecto, infelizmente nem a filosofia pode nos ajudar a entender adequadamente o atual dilema da representação política – e que tem suas consequências nas escolhas que os políticos fazem por nós. Ela passa a ser vista como um jogo. 

Como nos mostrou Benedito Nunes no clássico ensaio ‘De Consolatione Philosophiae’, a filosofia já não nos consola nem mesmo através da desolação. Quem faz isto é a política em si mesma, destituindo qualquer espécie de legitimidade ao pensamento filosófico que, no fim, transformou-se em uma “nova ascese do pensamento e da ação”. Segundo esta ótica, “no esforço para despojar-se de suas abstrações, tende o pensamento a tornar-se visão das coisas; tende a falar a linguagem da existência ou a mergulhar no silêncio do Ser. 

Pois a Filosofia se sabe precedida e condicionada pela ação, que desejaria condicionar. E sabe, finalmente, que o seu único poder reside na indagação que problematiza, na análise que destrói as certezas comuns, na reflexão que discute esse mesmo poder de análise que outros poderes obscuros da existência, não analisáveis, provocam, sustentam e delimitam”. 

Vozes 

A questão perturbadora em torno da consolação que a Filosofia deveria prestar para quem pretende decidir corretamente na arena política é justamente a limitação deste “único poder” que, de outro modo, consegue captar como poucos esses “outros poderes obscuros da existência”. E aqui nos encontramos com a tragédia intrínseca a este fato. 

Quem percebeu isso antes de todos foi ninguém menos que Platão. Tanto em ‘A República’ (chamado doravante de Politeia – a “constituição” ou o “paradigma”, em grego) como em ‘As leis’, ele deixa claro que as “vozes” da filosofia, da poesia e da política não podem conviver juntas, exceto somente sob a perspectiva da tragédia, com risco de, se isto não acontecer, prejudicar a estabilidade política do cosmion [pequeno mundo] a ser criado pelos homens. 

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Na verdade, trata-se de uma rivalidade em que uma “voz” tenta sobrepor-se à outra. Cada “voz” também possui, dentro da coerência do seu discurso, uma forma específica de conhecer o mundo ao seu redor. Portanto, quando falamos de rivalidade, temos de entender que não se trata mais de meras palavras ditas a esmo para o simples convencimento da população, mas sim de vários jogos, simultâneos e interdependentes entre si, que envolvem aspectos diferentes e complementares do conhecimento humano e que, por isso, lidam com a questão filosófica de uma competição sagrada entre elas. 

A noção de jogo dos antigos, em especial os gregos, era muito diferente da nossa – e nesse aspecto a figura do poeta ou do vate adquire uma importância essencial. O jogo não é apenas uma brincadeira; é sobretudo uma forma simbólica que, dentro de regras que podem ser tanto rigorosas como também extremamente flexíveis, em uma liberdade que estimula a indeterminação que a sustenta, dá um ritmo, um sentido para a vida sensata que a comunidade política tenta construir. Neste caso, a poesia [poiesis] tem uma função lúdica, assim como a filosofia, como explica bem Francis Bacon em seu famoso adágio: Poesis doctrinae tanquam somnium – “a poesia é como um sonho de amor filosófico”.

Como ela fica no limite entre a experiência religiosa (representada exteriormente pelo mito) e a filosófica, ao se encontrar em um mundo próprio criado pelo espírito, percebemos que sua coerência de discurso depende, segundo Johan Huizinga em ‘Homo Ludens’, de “uma fisionomia inteiramente diferente da que apresentam na ‘vida comum’, e estão ligadas por relações diferentes das da lógica e da causalidade”.

Apesar de ser considerada como um jogo, não há espaço para futilidades na poesia, muito menos para seriedades tacanhas. Na verdade, o jogo poético – e o jogo em si mesmo – está além da seriedade, no “plano mais primitivo e originário a que pertencem a criança, o animal, o selvagem e o visionário, na região do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso”.

Qualquer estudioso deve analisar a “voz” da poesia não como uma fantasia mítica que esconde uma origem que ninguém conseguirá compreender, mas sim como as “sementes de uma sabedoria que virá depois a ser expressa pelas formas lógicas de uma época mais tardia”. 

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A poesia não tem apenas uma função de expressar determinada vivência interior dos membros de uma comunidade; ao mesmo tempo, ela também desempenha uma função social e litúrgica. A variedade de rituais que envolve esse tipo de discurso – os divertimentos entre crianças, a invenção de enigmas, as doutrinas sobre os deuses e a origem do universo, as persuasões racionais e encantatórias que atuam no convencimento da tribo, as feitiçarias, as adivinhações sobre o futuro de cada um dos membros, as profecias e as competições – converge para a ação efetiva do vate. 

Aqui, vemos a rivalidade entre essas “vozes” que deveriam se complementar, mas as quais, no fundo, lutam entre si porque querem, cada uma a seu modo, estruturar a própria sociedade conforme suas regras idiossincráticas. Platão teve a percepção desse choque e a dramatizou como poucos no livro X da sua Politeia. Neste célebre trecho, a competição sagrada que Platão acentua na História da Filosofia tem como alvo ninguém menos que Homero, o poeta que teria escrito os épicos fundadores da cultura grega, a Ilíada e a Odisséia. 

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Deve-se observar, entretanto, que a grande preocupação do filósofo em relação ao poeta não é somente de ordem estética ou retórica; é, antes de tudo, de ordem epistemológica – ou seja, como a influência da poesia na vida prática pode prejudicar a estrutura da polis, em especial a da convivência política entre seus membros, ao apresentar um conhecimento completamente diferente do que é a realidade. Para Sócrates, que personifica boa parte da visão de Platão sobre o assunto, a poesia lida com a imitação [mimesis] do real e, ao aplicá-la nos assuntos públicos, ela não deve ser admitida como verdadeira porque não passa de um simulacro de um simulacro. 

Explica-se esse raciocínio da seguinte forma: para Platão, o conhecimento da realidade se dá por meio das ideias [logoi], formas que existem independentemente das contingências do tempo e do espaço, e que podemos apreendê-las pelas nossas faculdades racionais, seja pelo objeto que se apresenta no mundo concreto, seja pela capacidade de rememorar [anamnesis] a origem dessas formas pelo simples fato de que esse mesmo conhecimento já existia desde o início dos tempos.

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Assim, a inserção das ideias na polis, onde os assuntos são efêmeros, sempre regulados não pela razão e sim pelas paixões dos homens, depende antes de tudo que o ser humano passe por uma periagoge, uma conversão que, simbolizada na Politeia pelo episódio do “mito da caverna”, torna-se uma verdadeira reviravolta da alma na qual quem decide viver fora da contingência opta contemplar as formas eternas (a luz do sol que irradia na entrada da caverna – o símbolo da episteme, do conhecimento seguro do real) e não se preocupar somente com as aparências que são as sombras reproduzidas na parede do lugar onde todos estão aprisionados.

Caso contrário, essas sombras terão a sua influência nas opiniões mundanas [doxa] que podem comandar a polis, sem se inquietar com a hierarquia de paixões que ordenam a sensibilidade humana e que, se não forem corrigidas a tempo, criarão o clima nefasto do nosos, a doença do espírito que recusa qualquer perspectiva transcendente. 

A partir da concretização desta periagoge no reino das aparências – algo que só acontecerá por meio de uma considerável dose de esforço e de confronto com os obstáculos encontrados pelo caminho – é que se pode realmente governar a polis dentro da verdadeira constituição que regula tanto a sociedade como a alma do indivíduo que a compõe – o “princípio antropológico” de Platão. Tal constituição, como o próprio Sócrates fala nos momentos finais da Politeia, é espelhada em um modelo que talvez exista apenas no céu e em nenhum outro lugar, “para quem queira vê-la e, de acordo com o vê, queira ele próprio fundá-la” (592b). 

O desejo de ver apenas o que interessa é o elemento-chave para se entender o que está em risco quando a formação de um modelo político ideal depende da poesia para a educação [paideia] de seus cidadãos; Platão pretende, pelo caminho tortuoso da filosofia, similar a uma descida ao Hades [katebein, “desci”, em grego, que, não à toa, é a palavra que abre o diálogo], fazer o ser humano ver a realidade invisível que fundamenta as aparências que o seduz; e a arte é uma técnica que obriga o homem a direcionar o que deve ver para uma outra direção – que não se ocupa do principal, no caso a instituição das ideias em uma cidade onde elas possam existir sem a perturbação da contingência. Mesmo assim, a cidade necessita da arte [techné] – aqui, a poesia [poiesis], representada por Homero – para moldar a sensibilidade dos membros da polis desde a tenra infância. 

Este impasse recriado por Platão em Politeia mostra que ele não está em guerra com a poesia como uma arte. Na verdade, é um dos poucos que não hesita a falar do seu amor e da sua reverência por Homero, intitulado nada mais nada menos de que “o mais poético dos poetas”, mesmo que tenha uma preocupação com o “encantamento poderoso” que os versos, o ritmo, a métrica e a harmonia afetarão na representação realista da condição humana. 

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Neste ponto, a forma filosófica moldará a cidade ideal na alma do cidadão que a construirá por meio de palavras e discussões, pois como bem explica Eric Voegelin em “Platão e Aristóteles”, o terceiro volume da sua magnum opus, Ordem e História, “a objeção do filósofo aos poetas deve-se ao caráter mimético de sua obra. A mimesis, a imitação, é repreensível por duas razões.

Em primeiro lugar, a imitação não é o original, e o filósofo está em busca do ser ‘original’, da ideia. O artesão incorpora a ideia em seu produto, como, por exemplo, a ideia de uma mesa numa mesa, num certo sentido imitando-a; e o pintor que representa a mesa em sua pintura será, portanto, o imitador da imitação. A obra do artista, assim, é a realidade ‘no terceiro grau de afastamento’ (596a-597e). No mesmo sentido, o produtor de tragédias ocupa ‘o terceiro lugar na série a partir do rei e da verdade’ (597e).

Em segundo lugar, o imitador não está familiarizado com o ‘original’ que possam agradar a seu público. E o grande público está menos interessado na verdadeira natureza das coisas do que em paixões e personagens marcantes (605a). Tal ‘realismo’ na representação da alma incontida, confusa e inquieta, porém, leva inevitavelmente à corrosão da alma do espectador e do ouvinte, embora apenas alguns poucos estejam cientes de que aquilo que apreciamos nos outros irá necessariamente ter um efeito sobre nós mesmos (605c-606b). Assim, todas essas obras miméticas são prejudiciais para a mente do ouvinte – a menos que ele tenha, como antídoto, um entendimento da verdadeira natureza delas (595b)”. 

Ora, para Platão, será a filosofia que dará o entendimento desta verdadeira natureza; ela é vista pelo seu maior defensor como uma nova forma simbólica que entra no curso da História para superar e substituir não só os filósofos que articularam precariamente, no passado, a verdade percebida por poucos (Parmenides, Heráclito e Hesíodo), como também a tragédia dramática estabelecida por Ésquilo e Sófocles e, por fim, a poesia homérica – que, por sua vez, queria fornecer um conhecimento completo sobre esta mesma natureza. Por isso o ataque a Homero, explicitado na pergunta incômoda que Sócrates dirige aos seus interlocutores: 

“Mas, a respeito dos temas mais importantes e mais belos sobre os quais Homero tenta falar, as guerras, os comandos bélicos e o governo das cidades, a educação dos homens, é justo, penso, que lhe peçamos informações e perguntemos: ‘Se, caro Homero, em relação à virtude, não estás em terceiro lugar, se não és um demiurgo de imagens vãs que definimos como imitador, mas estás em segundo e se foste capaz de discernir que ocupações tornam vidas melhores ou piores os homens em sua vida privada ou pública, dize-nos que cidade graças a ti teve melhor governo, como a Lacedemônia, graças a Licurgo, e muitas outras cidades, grandes e pequenas, graças a muitos outros. Que cidade reconhece que foste bom legislador e lhe prestaste serviço? Como bom legislador, Itália e Sícilia têm Carondas e nós, Sólon... E a ti que cidade tem como bom legislador? Serias capaz de citar uma?’” (599e). 

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A resposta só pode ser obviamente negativa: apesar de terem a pretensão ao conhecimento de todas as artes [techné] e, portanto, do mundo que as cerca, mesmo que seja no “terceiro grau de imitação”, os poetas costumam se confundir entre a representação do real e o próprio real. Não adianta nada declamar que Homero foi o guia moral e o educador da Hélade; o fato é que ele não conhecia, pela via da experiência direta – a saber, da apreensão das ideias e de como elas podem ser incorporadas na contingência terrena –, nada a respeito de assuntos importantíssimos para o funcionamento da cidade ideal: a defesa da polis na guerra, a administração da justiça na paz e a educação [paideia] dos homens. 

Assim, para substituir o mito criado pela poesia homérica – e que praticamente fundou a própria educação sobre a qual Platão também surgiu –, a filosofia deve criar um novo mito justamente para restaurar a verdade da alma e passar a limpo todos os mitos anteriores. Somente com o conhecimento dessa “velha discórdia” [palaia diafora] entre filosofia e poesia, entende-se que o que está em jogo é a descoberta de uma alma que se volta para si mesma e deve-se reconhecer em sintonia com um deus que o transcende, jamais com o mundo que o circunda. 

Só a filosofia representaria essa “novidade” adequadamente, ao contrário do “feitiço” próximo da magia que a poesia provocaria na percepção do real de qualquer cidadão, já que, para Voegelin,

“Platão é o descobridor da psique e de sua ordem que está em guerra contra a desordem, da qual a educação tradicional por meio dos poetas é um fator casual importante. A paideia do filósofo luta pela alma do homem contra paideia do mito. Nessa luta, como vimos, as posições mudaram mais de uma vez. A própria épica homérica, com a sua mitopoiese livre, foi um ato notável de crítica numa situação de crise civilizacional. A nova verdade de Hesíodo postou-se contra o velho mito, incluindo Homero. Para as gerações dos filósofos-místicos, tanto Homero como Hesíodo haviam se movido para a esfera do não-verdadeiro, à qual eles opunham a verdade da sabedoria, da alma e sua profundidade. Ésquilo criou o mito dramático da alma, no lugar do mito épico em geral. Para Platão, por fim, a tragédia e a comédia do século V tornaram-se tão desprovidas de verdade quanto Homero, de quem a cadeia de poesia helênica descendia. A descoberta da alma, assim como a luta pela sua ordem, é, desse modo, um processo que se estende pelos séculos e atravessa mais de uma fase até atingir na alma de Sócrates e em seu impacto sobre Platão. O ataque à poesia mimética desde Homero até a época de Sócrates declara não mais do que a simples verdade de que a Era do Mito havia se encerrado. Em Sócrates, a alma do homem finalmente encontrou a si mesma. Depois de Sócrates, nenhum mito é possível”. 

No entanto, não será uma simples declaração como essa que alterará toda uma tradição já sedimentada na História de uma civilização que, mesmo em crise, ainda existe. Como tudo que envolve a linguagem humana, é necessário um longo período de tempo para que determinadas palavras se tornem uma realidade. O banimento da mitopoiesis que legitima a paideia – e que deve ser posteriormente esquecida – só fará sentido se existir “um instrumento alternativo efetivo da nova paideia”, o mito que destruirá os outros mitos e que é nada mais nada menos que a própria Politeia criada pela forma simbólica do diálogo platônico: a constituição ideal de uma alma ordenada e aberta às exigências de uma realidade que está além da precariedade terrena. E, obviamente, o artista original, aquele que cria a partir da primeira visão da ideia, sem deixar se corromper pelo mimetismo das outras artes que não conseguem fazer o mesmo, será ninguém menos que o filósofo. 

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Descida ao Hades 

Esta mesma forma simbólica será levada à sua sofisticação extrema pelo próprio Platão em seu derradeiro diálogo, ‘As leis’. Muitos estudiosos tratam-no como uma espécie de continuação temática da Politeia, talvez pelo fato de que ambos lidam com o tema da constituição da polis ideal, mas, em termos estruturais, o correto é analisá-lo como uma obra que se opõe à antecessora.

Se a primeira era uma espécie de “descida ao Hades” que culminaria na periagoge da alma individual a qual sai das sombras da opinião comum [doxa] para enfim atingir o conhecimento perene das ideias [episteme] e assim liderar a formação de uma polis que fosse o reflexo do interior de quem a compõe e de quem a governa, a segunda obra é uma caminhada de três homens, cada um representando uma parte da Grécia (respectivamente, Atenas, Creta e Lacedemônia), que tentam ascender até o sol do meio-dia – ou seja, saem da caverna rumo à implantação efetiva das ideias à realidade tal como experimentamos no cotidiano, com suas contingências, dissabores e, em especial, a aceitação de que, nos assuntos de política, as violências interior e exterior – raízes indiscutíveis de qualquer decisão que pode ter um caráter trágico – talvez sejam as únicas forças dominantes na comunicação substancial que existe entre seus semelhantes. 

Assim como a Politeia explicitava o seu tema principal logo na primeira palavra que abria o diálogo – “desci” [katebein] –, As leis usa a mesma estratégia: “Deus” [theos] é o que lemos no início da sentença inicial, que também é uma pergunta – “Deus ou algum homem, ó estrangeiros – quem teria originado a instituição de vossas leis?”. A resposta, desta vez, é dita sem nenhuma ambiguidade: “Por um deus, é claro”.

Contudo, a forma simbólica criada por Platão – que deveria acabar com os mitos antigos que impossibilitam o homem de se adequar diante dessa verdade – também permite que tal resposta tenha sua área de indeterminação; afinal, o próprio diálogo é um drama sobre sujeitos que tentam distinguir se as leis que os regem são feitas à medida de si mesmos ou então à medida de um deus que está além de qualquer apreensão racional. 

Platão tentará provar que este deus não está tão distante assim – e que as leis que nos orientam não são amarras que impedem a nossa verdadeira natureza e sim instrumentos que a aperfeiçoam. E, para isso, usa de um expediente bastante contraditório: nada mais nada menos que o próprio mito. Este recurso irônico, para quem já dizia há tempos que era algo que não deveria mais existir, é usado na simbologia a ser empregada no transcorrer do drama: o intercâmbio entre os termos “jogo” [paidia] e “formação” [paideia], representado na descrição do ser humano que é também um marionete literalmente manipulado por um deus que, conforme a sua vontade, ora puxa os fios de ouro, ora puxa os de prata. 

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Na antropologia filosófica elaborada pelo filósofo nos anos de maturidade, o ser humano é considerado uma pessoa completa, um indivíduo singular, ciente da responsabilidade que o conecta com a sua integridade moral – sempre acompanhado pelo mito do deus manipulador a revelar as forças que também o dilaceram por dentro. Voegelin nos explica que “essa [mesma] pessoa, contudo, é dividida dentro de si mesma por dois tolos conselheiros conflitantes, alegria e tristeza (ou prazer e dor: hedone, lype). Além desses sentimentos fundamentais, são encontradas na alma também as suas apreensões (elpis) correspondentes.

A apreensão da tristeza é um movimento de encolher-se em medo ou aversão (phobos); a apreensão da alegria é um movimento de expansão audacioso e confiante (tharros). E além dos sentimentos e de suas apreensões há por fim o discernimento reflexivo e o julgamento (logismos) referentes ao melhor ou ao pior dos movimentos básicos. A descrição dessa organização da alma é então conectada aos problemas da ordem na sociedade na medida em que um discernimento reflexivo quanto ao melhor e ao pior, se sedimentando num decreto da polis, é chamado de nomos [lei] (614c-d)”.

O Estrangeiro ateniense pede aos seus interlocutores de Creta e da Lacedemônia que imaginem as criaturas vivas como marionetes dos deuses. Será que elas existem apenas para serem seus brinquedos ou há algum propósito mais sério nisso? Ninguém sabe dizer. O que é certo é que cada um desses sentimentos ou apreensões que nos perturbam no nosso mais íntimo são as cordas e os fios pelos quais somos manipulados. Vivemos entre tensões – o que Platão chamaria de metaxo – que nos dividem entre vícios e virtudes e nos puxam em direções opostas. A corda de ouro nos leva para cima; a de prata para baixo; a primeira é o nomos individual que se reflete no nomos comunitário da polis; a segunda é o que desagrega a comunidade. Para ser eficaz, e justamente porque é frágil, o puxão da corda de ouro precisa do apoio do próprio homem; ainda assim, o puxão das cordas inferiores é de igual força – e deve haver resistência interior do ser humano ou então ele será arrastado. Como complementa Voegelin: “O homem que compreendeu a verdade desse logos [julgamento] compreenderá o jogo de autogoverno e derrota, e viverá em obediência ao puxão da corda de ouro; e a cidade que o tiver entendido irá incorporá-lo numa lei e viverá de acordo com ele tanto nas relações locais como nas relações com as outras polis (644d-645b)”. 

Para a lei que está sintonizada com o divino ser incorporada adequadamente à polis, é preciso de alguém que possa vivê-la em sua intensidade, como se fosse uma nomos empsychos [lei animada] – e Platão sugere que o rei-filósofo é o único que fará isso. No mito da Politeia, ele era o artista supremo que mimetizaria o primeiro grau de realidade; agora, será o responsável pela constituição efetiva e eficaz de uma polis que se deixa governar pelas leis que surgem do domínio das paixões adquirido em anos de luta da sua própria vivência. Mas há um problema: se o rei-filósofo é também uma criatura viva – e se ele é também manipulado como uma marionete –, onde está a importância do seu propósito, se há algum? A sua importância, responde o Estrangeiro aos seus companheiros de caminhada, é que o rei-filósofo imita ninguém menos que o próprio Deus e assim o que era para ser um mero “jogo” [paidia] torna-se uma “formação” [paideia], um jogo sério, em que o risco está no combate interior contra seu pior inimigo – o próprio homem – e isto o educa a ser um verdadeiro legislador que ensinará às outras gerações uma providência divina que abarca a tudo e a todos. 

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Novamente, é Voegelin quem toca o centro da questão: “O jogo sério é realizado por todos os homens em sua vida pessoal ao dar apoio ao puxão da corda de ouro; ele é realizado pelo homem em comunidade na celebração dos ritos da polis em conformidade com os nomoi. Ainda assim, o homem, ao participar do jogo, não o esgota nem em sua vida pessoal nem em sua vida social. O homem só pode desempenhar a parte que lhe é atribuída por Deus. Em última instância, o jogo cósmico está nas mãos de Deus, e apenas Ele conhece o seu pleno significado.

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Os legisladores precisam usar persuasão com os jovens agnósticos para convencê-los de que os deuses não são indiferentes às questões humanas. Diante do frequente sucesso mundano dos maus e dos igualmente frequentes infortúnios dos bons, diante, além disso, do louvor do povo comum a ações que destroem a verdadeira eudaimonia [bem-aventurança], o jovem pode cair em confusão moral e acreditar que tudo isso só pode acontecer porque nenhum deus está cuidando dos acontecimentos da esfera humana. Contra esse erro, os legisladores precisam insistir que o processo cósmico é penetrado pela ministração divina até a menor e mais insignificante partícula, como o homem. Pois o cosmos é todo psique, e a vida do homem é parte dessa natureza animada [empsychos physis]; todas as criaturas vivas, porém, assim como o cosmos como um todo, são o tesouro (ou posse, ktemata) dos deuses (902b).

Os legisladores devem persuadir os jovens de que o deus que criou o cosmos dispôs todas as coisas para a prosperidade e a virtude do todo. A ação e a paixão da menor das partículas são governadas por poderes divinos, até seus mínimos detalhes, para o bem. O desgosto dos jovens tem sua causa no fato de que todas as partes são ordenadas para o todo e que o todo não existe para a conveniência de uma de suas partes; essa ordem do todo está na mente de Deus e não é inteligível em seus detalhes para o homem; daí a reclamação quanto a eventos que só fazem sentido na economia da psique cósmica, mas parecem não ter significado na perspectiva da psique humana finita”. 

Este jogo sério precisa de uma forma simbólica para ser adequadamente representada entre os membros da polis. O diálogo platônico poderia ser essa forma, mas ele é, antes de tudo, um meio de estabelecer uma comunicação substancial entre pessoas que possuem o mesmo logos dentro de si mesmas, após anos de confronto com seus obstáculos interiores e exteriores. Ora, como o próprio Platão reconhecia, a existência desta pequena comunidade, incapaz de influenciar efetivamente o comando de uma cidade, era impossibilitada justamente pela natureza dividida e, ao mesmo tempo, completa do homem. Portanto, ao rivalizar com a forma criada por Platão para expressar o fim de todos os mitos – e em vez de novamente atacar a poesia homérica pela sua incompetência mimética de representar os primeiros graus do real –, desta vez escolheu-se outro meio para representar o drama cósmico que é o drama da polis – a tragédia. 

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Jogo 

Neste aspecto, a tragédia – estabelecida em seu cânone por Sófocles, Ésquilo e Eurípedes – tem a ver com o jogo sério da relação entre o homem, Deus e a sociedade, porque esses três participantes lidam com a educação de quem vê e usufrui da representação que está sendo exibida diante dos seus olhos. Na ‘Poética’, Aristóteles afirma que há uma relação específica entre um determinado gênero literário e uma determinada elevação de caráter de quem o usufrui. Na sua época, a tragédia era o gênero cuja função era a de purgar certas características da personalidade do espectador – características que não teriam uma virtude definida e sim um vício ainda difuso – e expô-las em cena para que ele percebesse o que acontecia em sua alma, provocando uma decisão e, sobretudo, uma ação responsável. Daí sua nobreza, por assim dizer: a catharsis seria uma revelação do pior que há no sujeito para que ele o retire dentro de si e enfim se torne o spoudaios, o homem maduro, que a polis precisaria para ser bem governada. 

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Dessa forma, a tragédia é o ritual que ajuda o homem a compreender que ele está dentro de um jogo sério no qual Deus joga constantemente com as criaturas vivas como se fossem marionetes ou peças em um tabuleiro. Este é o simbolismo que Platão revela de forma evidente em ‘As leis’ quando faz o Estrangeiro afirmar que, antes de tudo, o cidadão deve ser educado desde criança para que ele não caia no erro da impiedade. Logo, o “jogo” [paidia] é parte fundamental da “formação” [paideia] de qualquer um que deve se autogovernar para depois governar a própria polis onde vive – e, nesse ponto, a tragédia é a forma simbólica máxima que representará a seriedade do propósito de viver enquanto Deus o manipula rumo ao Bem Supremo, e isto deve estar apto apenas aos adultos. 

A descrição desse processo da criança que se torna homem adulto e, depois, o modo como este se transforma em um “homem idoso que age como uma criança” é um tratado pedagógico ímpar para quem quer dominar a sua violência interior e redescobrir a razão que fundamenta a sua escolha política correta e livre. Para Eric Voegelin, “Platão aborda o problema do jogo em sua raiz e faz com que a cultura, a paideia, de sua polis cresça do jogo de crianças, a paidia. Na análise da criança e de sua educação ele emprega a teoria da alma que apareceu no contexto do Jogador e das Marionetes.

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Os sentimentos, as apreensões e o logismos [julgamentos] em sua coexistência caracterizam a estrutura da alma adulta; na alma da criança, as primeiras experiências são aquelas de prazer e dor e, no meio desses sentimentos, a criança tem de adquirir as suas primeiras noções de virtude e vício; sabedoria e crença verdadeira podem ser desenvolvidas apenas na vida posterior e a sua aquisição marca o crescimento da alma à sua estatura adulta. Entre esses dois estados estende-se a paideia, a formação ou a educação. ‘Por paideia, refiro-me a virtude [arete] na forma em que ela é adquirida por uma criança’ (653b). Se prazeres e preferências, se dores e aversões forem formadas nas crianças de tal maneira que fiquem em harmonia com o discernimento quando elas tiverem atingido a idade do discernimento, então poderemos chamar essa harmonia de virtude, enquanto o fator de treinamento em si deve ser chamado de paideia.

A educação ou formação (no sentido de uma disciplina certa de gostos e aversões) de prazeres e dores, porém, é facilmente relaxada e desviada sob os fardos da vida humana. Os deuses, portanto, tiveram compaixão dos homens pelas dificuldades que estes enfrentam e acrescentaram à sua vida o ritmo dos festivais; e, como companheiros em seus festivais, deram-lhes as Musas, Apolo e Dionísio, de modo que, por meio de companheiros divinos na comunidade, a ordem das coisas pudesse ser resgatada (653c-d).

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Depois desses comentários preparatórios, o Estrangeiro chega ao ponto: os festivais, com seus cantos e danças, podem ter o efeito de restaurar uma paideia que esteja sofrendo por causa das dificuldades da vida, porque esses rituais são enxertados na paidia, ou seja, no jogo das crianças. Sabemos que os filhotes de todas as criaturas não conseguem ficar quietos de corpo ou voz; eles pulam e rolam, eles brincam com espontaneidade e soltam gritos de alegria.

Com relação a esses movimentos e ruídos elementares de jogo, porém, há uma diferença entre os animais e os homens, na medida em que os animais não têm percepção de ordem e desordem nessas ações lúdicas, enquanto aos homens os deuses deram as percepções de ritmo e melodia. Pela orientação divina, o jogo elementar, que é encontrado também nos animais, é levado à forma do coro trágico [que comenta a trama] no jogo do homem. Assim, a paideia tem de começar da paidia, e o fará da maneira mais apropriada por intermédio do espírito das Musas e de Apolo (653e-654a)”. 

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Portanto, a violência interior que ocorre quando o poeta (ou, no caso, o cidadão que pode se tornar o rei-filósofo) se depara com as Musas é transformada, ao participar dos rituais sagrados em que a tragédia tem a função de purgá-la, no discernimento hierárquico entre o que é bom e o que é ruim, o que provoca prazer e o que provoca dor – e, sobretudo, o que é útil e o que é perigoso para o funcionamento da sociedade. Entre o encantamento provocado pela poesia de Homero – que poderia prejudicar a administração da polis – e o encantamento dos coros das tragédias que ensinam virtudes [arete] às crianças, Platão claramente prefere o segundo. 

Assim, a paideia vestida de trágica leva o homem a participar do jogo de crianças ao jogo da comunidade sob os nomoi, passando pelo jogo adulto. Este sim é de uma seriedade perturbadora porque sua medida é nada mais, nada menos que Deus. Por isso, deve-se discernir o que é sério e o que é mera brincadeira, especialmente quando ocorrem os rituais de festa, uma vez que um cidadão livre e maduro não pode passar ridículo ao retratar o drama da sua comunidade perante os seus companheiros. As sátiras e as peças burlescas devem ficar a cargo dos estrangeiros e escravos; e quando alguém quiser representar uma tragédia deve-se pedir autorização a um conselho de magistrados. 

É neste momento de As leis que o filósofo explicita toda a tensão e toda a rivalidade que sempre existiram na “velha discórdia” entre a poesia, a filosofia e a política que desembocam na perspectiva trágica – e que, por sua vez, deveriam existir no íntimo dele. “Platão tinha medo do artista que havia dentro de si mesmo”, afirma Iris Murdoch em ‘The Fire and the Sun’.

Era algo que ele não tinha como escapar: seus diálogos devem ser analisados não como tratados filosóficos e sim como obras-de-arte em que conceitos, símbolos, metáforas, analogias e mitos são construídos em uma trama dramática de tamanho requinte que, se retirar um detalhe, o plano todo perde o seu sentido. Esta luta entre o pensador, o poeta e o dramaturgo trágico é retratada em cada uma das situações apresentadas, numa rivalidade entre as três faculdades em que se tenta abolir uma em detrimento da outra, sempre dando a vantagem à primeira, uma vez que a filosofia seria a forma simbólica adequada para constituir e educar os cidadãos que criariam a polis ideal.

Todavia, quando nos deparamos com o trecho abaixo, as coisas ficam ainda mais complicadas porque, desta vez, Platão não consegue articular adequadamente a querela que existia dentro de si mesmo e que o consumia há muitos anos. O resultado é uma das declarações mais enigmáticas já feitas: 

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“Respeitados estrangeiros! Nós somos, nós mesmos, os poetas de uma tragédia – e é a melhor e a mais nobre de todas. De fato, toda a nossa constituição [politeia] foi arquitetada como a representação [mimesis] simbólica da vida melhor e mais nobre e acreditamos que ela seja realmente a mais verdadeira de todas as tragédias. Assim, vocês e nós somos ambos poetas do mesmo estilo, artistas rivais e atores rivais no mais nobre dos dramas que apenas um nomos verdadeiro pode alcançar – ou esse é pelo menos é o nosso sentimento. Portanto, não esperem que permitamos facilmente que vocês ergam o seu palco em nossa praça pública e que deixemos que as vozes melodiosas de seus atores se elevem acima das nossas próprias em arengas para nossas mulheres e filhos e para o povo em geral sobre os mesmos temas que os nossos e, em sua maior parte, para o efeito oposto. Pois seríamos totalmente loucos, e assim o seria toda a polis, se essa autorização lhes fosse concedida antes que os magistrados tivessem decidido se as suas composições são adequadas para ser recitadas em público ou não. Então vão, filhos e herdeiros das mais doces Musas, e mostrem seus cantos para os magistrados para comparações com os nossos próprios; e, se eles forem tão bons quanto os nossos ou melhores, nós lhes concederemos um coro; porém, se não forem, amigos, não poderemos fazê-lo (817b-d)” [Grifos nossos]. 

Esta é a afirmação feita pelo grupo de magistrados para quem deseja representar uma tragédia no ritual sagrado que coordena os ritmos da vida cotidiana da polis, no jogo de educação [paideia] o qual também corresponde ao jogo sério dos homens governados pela nomos empsychos pois, ao mesmo tempo, eles são manipulados pelo Deus das Marionetes que anseia somente pela soberania do Bem. Todo o cuidado é pouco no momento de criar e interpretar uma tragédia, informa o alerta. E, ao mesmo tempo, a figura do filósofo se retrai: é o nomos que deve ordenar as relações entre os habitantes e entre eles mesmos. 

A rivalidade entre poesia, filosofia e política, subordinada à tragédia, chega a um impasse que atinge a própria essência da polis. E por um motivo simples: uma “voz” precisa da outra, um discurso sempre se amalgamará sobre o outro, pois a política precisa da linguagem para comunicar qualquer intenção sua, na busca de uma decisão política correta. Nesta tensão, a poesia, a filosofia e a política são obrigadas a usar a linguagem da tragédia para dissecar o que se passa dentro de qualquer ação humana que afetará a vida da sociedade. 

Por outro lado, a mesma rivalidade prova que há, como bem anteviu Platão, um drama maior: o de que qualquer ação política terá, nas palavras de George Steiner no livro ‘The Poetry of Thought’, “um fim inevitavelmente trágico já que o seu reino pertence, na verdade, à esfera do contingente, da decisão pragmática que sempre será transitória e, por sua vez, destinada ao fracasso”. E ao ter essa intuição prestes a se despedir deste mundo, após ter vivido a sua cota de derrotas pessoais na administração das coisas humanas, Platão também dá a entender que, apesar do seu temor, ele reconhecia que não havia como escapar do artista dentro de si mesmo – e que a filosofia só poderia ganhar força, como discurso coerente em busca de uma verdade surgida no interior de uma alma individual, se aceitasse a linguagem trágica como uma “poesia do pensamento”, no dizer de Steiner, numa ambivalência que teria uma influência decisiva na história das ideias políticas. 

Fim trágico 

Dessa forma, o conflito entre os artistas rivais que existem dentro de um filósofo, de um dramaturgo ou de um poeta, leva a cada um desses indivíduos a ter que lidar com a filosofia como se ela tivesse uma “voz” que a aproximasse das qualidades da poesia, e não como se fosse um método lógico. Afinal, já dizia Alain, “o estilo é a substância do pensamento” – e este sempre começa com uma metáfora. A partir daí, a filosofia, a poesia e a política se tornam um meio de vida trágico, em que os seus respectivos representantes são exemplos de conduta que serão imitados por quem mais os admira. 

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O mesmo ocorre com quem pratica a decisão política correta, a politike pragmateia, filhote dessas três “vozes”: aqui, o político não é mais um simples funcionário público; é agora um estadista, alguém que pensa na sociedade onde vive igual a um grande drama em que cada um tem seu papel no funcionamento da cidade ou do Estado que governa. Ele é um artista que comanda e que educa, que pensa e reflete, que age e reage de acordo com o que está dentro da sua nomos interior e deve mostrar aos outros que ele a incorporou como algo vivo e não como uma mera regra a ser corrompida conforme as pressões da existência. 

E como qualquer ação sua terá um fim trágico porque o fracasso é a primeira coisa presente na política – mesmo que esta faça de tudo para afirmar o contrário –, o estadista também terá os “artistas rivais” que lutarão em seu íntimo – e cada um deles exigirá o seu respectivo dilaceramento moral. Talvez alguma espécie de mito seja a forma em que ele se permita uma solução para si mesmo e que o apazigue dos dilemas que o afligem ao se confrontar com o governo da cidade onde vive e com o autogoverno da sua própria nomos. Afinal, se tudo não passa de um jogo sério, devemos também observar que agon significa tanto a parte brincalhona como a parte combativa de um ritual sagrado. Será justamente na rivalidade inseparável entre poesia, filosofia e política que a tragédia será o discurso adequado para persuadir os cidadãos qual será o caminho correto para que a comunidade decida o que é o Bem Comum para todos, mesmo que a derrota seja uma possibilidade no horizonte. 

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Na atual sociedade democrática, entretanto, o que nos resta é aquilo que, para voltarmos a Benedito Nunes, “a disciplina superior do conhecimento”, a única que a unidade da poesia, filosofia e política pode dar-nos, “é a negação de que a determinada forma [deste mesmo] conhecimento se possa atribuir superioridade incontestável. Nem a própria filosofia conserva o poder que a sabedoria [tradicional] lhe outorgava, de desprender-nos do Tempo, de conciliar-nos com a vida e de abrigar-nos na Razão. Seu poder está unicamente no jogo do pensamento com a existência, da existência com as probabilidades de ser, até o extremo do paradoxo e do absurdo”. 

Neste jogo, prenhe de destruição, qualquer escolha política não será apenas errada. Será, sobretudo, trágica – e sem nenhuma alternativa mais esperançosa ou sequer poética. Restam-nos os uivos das gerações futuras, em sua maioria completamente perdidas, com suas melhores mentes “devastadas pela loucura, pela fome, pela histeria”, todas nuas, inconsoláveis, como nos confidenciou o vate, enquanto via o abismo de todos os séculos. 

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Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pesquisador pela FGV-EAESP.