Na tarde de segunda-feira (19), o céu escureceu de repente em São Paulo. Por volta das 15h, começaram a aparecer nas redes sociais os primeiros sinais de uma narrativa que mais tarde seria reforçada com a fala de especialistas. De acordo com a narrativa, o céu escureceu na maior cidade do país por causa das queimadas na Amazônia.
O meteorologista do Inmet Franco Villela foi um dos primeiros a sugerirem que a nuvem escura que obrigou os escritórios a ligarem as luzes e os motoristas a acenderem os faróis era mais do que água – era efeito de queimadas feitas em escala industrial para transformar a Amazônia num grande pasto. Em entrevista ao jornal O Globo, ele disse que uma das causas da escuridão era “o material particulado” que vinha de incêndios de grande porte.
O incêndio a que se referia Villela era, na verdade, o de Roboré, na Bolívia, que já consumiu meio milhão de hectares de mata nativa. O incêndio boliviano teria começado com os chaqueos, a popular “queimada”, que ainda é muito usada naquele país para limpar os terrenos para a agricultura. Não se vê, contudo, pressão internacional para que o governo esquerdista de Evo Morales aumente a fiscalização sobre a prática tradicional na Bolívia.
A narrativa de que o anoitecer no meio da tarde foi causado por uma enorme nuvem de fumaça ganhou força com as palavras de Josélia Pegorim, meteorologista do Climatempo que, também em entrevista ao jornal O Globo, disse que uma frente fria mudou a direção dos ventos para transportar a fumaça de queimadas na Bolívia e em Rondônia (leia-se: Amazônia) em direção a São Paulo.
De nada adiantou a também meteorologista Caroline Vidal explicar que o vento pode até trazer fumaças de queimadas, mas que “[o incêndio] teria que ser bem intenso” para escurecer o céu de uma cidade como São Paulo. “Isso ocorre mais com fumaça de vulcões”, completou ela, dando a exata dimensão do exagero travestido de verdade nas redes sociais.
Por meio de sua assessoria, o Inpe foi taxativo:
Podemos adiantar que as queimadas tiveram apenas parte pequena neste contexto de "escuridão do céu", que foi devido principalmente a nuvens baixas e médias muito densas associadas à frente fria que entrou ontem em SP.
Corredor de fumaça
A partir daí, teve início a divulgação de teorias científicas controversas que explicariam, para além de qualquer dúvida, o escurecimento do céu paulistano. A mais citada delas foi um modelo matemático desenvolvido por Saulo Freitas e Karla Longo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. O modelo foi criado para monitorar o transporte de “biomassa incandescente” e poluição antropogênica (isto é, causada pelo homem) na América do Sul.
De acordo com a teoria, a fumaça causada pelas queimadas na Amazônia é empurrada pelo vento até a Cordilheira dos Andes. Diante do obstáculo natural, contudo, a fumaça se vê obrigada a correr para o sudeste do continente.
A teoria é semelhante a outra tese evocada em 2015, quando da estiagem prolongada que atingiu São Paulo e quase secou o reservatório da Cantareira. Tema de longas matérias, a tese chegava a uma conclusão não menos do que catastrofista: o desmatamento estaria secando os “rios voadores” que levam umidade da região amazônica para São Paulo. Mas... “Grande parte da comunidade científica concorda que não é possível fazer uma relação direta entre desmatamento da Amazônia e a seca no Sudeste”, disse Tercio Ambrizzi, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP ao jornalista Leandro Narloch na época.
NASA
Como hoje em dia, e ao contrário do que diz Ben Shapiro, os sentimentos não estão nem aí para os fatos, de nada adiantou a Agência Espacial dos Estados Unidos, a NASA, ter divulgado vários mapas de satélite mostrando que, sim, há de fato queimadas em Rondônia, Amazonas, Pará e Mato Grosso, mas que “imagens de satélite indicavam [em 16 de agosto de 2019] que os incêndios na bacia Amazônica estavam ligeiramente abaixo da média em comparação com os últimos 15 anos”.
Esse indicador positivo foi completamente ignorado por aqueles que querem crer que o país se lançou politicamente numa cruzada permissiva em relação às queimadas. Não que as queimadas não sejam um problema. Dados recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) dizem que houve um aumento de 82% nos focos de incêndio desde o início do ano, em comparação com o ano passado. Mas daí a acreditar que uma enorme nuvem de fumaça conseguiu encobrir a maior cidade do país é um longo caminho.
Incêndios florestais são comuns no cerrado e na região Amazônica nesta época do ano e grandes nuvens de fumaça detectadas por imagens de satélite não são raras. Em 25 de agosto de 2016, por exemplo, a NASA divulgou imagens muito parecidas com as deste ano, mostrando incêndios na Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil. Na época, o aumento dos incêndios foi atribuído não só à atividade humana, mas também ao El Niño e a outras anomalias climáticas. A presidente do Brasil na época era Dilma Rousseff.
Reações
O Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, falou sobre o fenômeno. Durante a abertura da 27ª Feira Internacional da Bioenergia (Fenasucro), em Sertãozinho (SP), ele afirmou que esse “sensacionalismo na área ambiental não contribui para as melhores práticas e para a defesa efetiva das questões importantes do nosso País”.
Já o Partido dos Trabalhadores, por meio das redes sociais, culpou “a política destrutiva de Bolsonaro” pela nuvem que encobriu São Paulo. “Queimadas aumentaram 82% em 2019 e suas consequências já podem ser vistas em plena metrópole”, diz a publicação.
Água
A narrativa ecocatastrofista atingiu níveis alarmantes na manhã de terça-feira (20), quando circularam nas redes sociais fotos supostamente feitas na zona leste de São Paulo, mostrando a cor da água da chuva que teria caído naquela região.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, contudo, a meteorologista Neide Oliveira, do Inmet, garantiu que a “chuva apocalíptica” era impossível, explicando que a chuva dissiparia o material particulado suspenso no ar.
A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) tampouco detectou anomalias na qualidade do ar que fossem capazes de gerar uma chuva dessa coloração.
Mesmo assim, e sem o rigor científico necessário para a coleta do material, garrafas com a água preta foram analisadas por cientistas que se apressaram em atestar que a água que caiu do céu de São Paulo estava mesmo cheia de fuligem proveniente de queimadas.