Nunca se viu nada parecido na história da humanidade. Na tentativa de implantar à força o comunismo em todos os estratos da população, o líder comunista Mao Tsé-Tung colocou em ação políticas que levaram os chineses a níveis extremos de fome: registros apontam que 45 milhões de pessoas morreram entre 1958 e 1962.
Para o historiador Frank Dikotter, as mortes elevam Mao à posição de maior assassino em massa da história mundial. Dikotter teve acesso a arquivos históricos sobre o regime maoísta logo após serem abertos, em 2006. Os dados encontrados foram a base para o seu livro "A Grande Fome de Mao", lançado em 2010.
Segundo ele, a tortura, brutalidade e o assassinato sistemático de camponeses chineses é comparável à Segunda Guerra Mundial. Pelo menos 45 milhões de pessoas morreram de fome, espancamentos ou trabalho excessivo na China entre 1958 e 1962; o número mundial de mortes na Segunda Guerra Mundial é de 55 milhões. "Ele se classifica ao lado dos gulags e do Holocausto como um dos três maiores eventos do século 20", diz Frank.
Em seu livro, Dikotter conta que houve um "grau impressionante de violência", catalogado em relatórios do Bureau de Segurança Pública. Os arquivos revelam que os agricultores das comunidades rurais eram vistos pelo Partido Comunista apenas como números para compor a força de trabalho; eram pessoas completamente desumanizadas.
Para aqueles que cometiam qualquer ato de desobediência, por menor que fosse, as punições eram drásticas.
Pessoas que cometessem infrações pequenas, como furtar alguns vegetais, inclusive crianças, eram amarradas e jogadas em uma lagoa. Pais foram obrigados a enterrar seus filhos vivos ou seriam afogados em excrementos e urina, outros foram imolados, ou tiveram o nariz ou a orelha cortados. As pessoas eram forçadas a trabalhar nuas durante o inverno. Em uma aldeia, 80% das pessoas (cerca de 200 mil) foram banidos da cantina oficial porque estavam muito velhos ou doentes para trabalhar.
Coletivismo
Uma das medidas do governo maoísta foi a instituição, em 1958, de cantinas comunitárias e proibição de cozinhas individuais nas residências. A justificativa foi que as cozinhas residenciais seriam "símbolos de egoísmo". Para o regime maoísta, a coletivização agrícola seria um passo fundamental para a construção de uma consciência socialista na China.
A “Comuna do Povo” foi um ponto central para esse objetivo, um sistema que consolidou os agricultores em comunas com uma média de 23.000 membros. Em outubro de 1958, 99,1% dos agricultores chineses foram colocados em comunas.
"Mao acreditava que o campo poderia se erguer se fosse devidamente motivado de forma ideológica e transformado em um centro de produção agrícola e industrial. Então o campo foi reorganizado em grandes comunas populares; propriedades privadas foram apreendidas e as famílias foram separadas para serem mais produtivas. As pessoas trabalharam o tempo todo, até a exaustão", diz o professor de Estudos Chineses da Universidade Harvard, William C. Kirby, em entrevista à Gazeta do Povo.
As já citadas cantinas comunitárias, que ofereciam refeições gratuitas para a população, foram um eixo central das comunas. Um slogan popular ordenava que os chineses "abram os estômagos, comam quanto quiserem e trabalhem duro pelo socialismo". A cozinha das cantinas era abastecida com os alimentos cultivados pelos agricultores da comuna, que eram obrigados a entregar toda a colheita.
Sem possibilidade de administrar os próprios estoques de comida e sujeitos a uma sucessão de erros e a corrupção dos planejadores centrais do regime, os chineses rapidamente começaram a sofrer com escassez nas cantinas e se encontraram sem alternativas para alimentação.
Em uma cidade na província de Henan, mais de um milhão de pessoas (um oitavo da população) foi morta pela fome em três anos. Em outra comuna próxima, um terço da população (mais de 12 mil pessoas) morreu em nove meses. Em todo o país, oficiais do governo obrigavam agricultores a declaram safras maiores que as reais, torturando ou executando quem indicasse safras realistas.
"As pessoas morriam e a família não enterrava porque ainda podiam receber suas cotas de comida; mantinham os corpos na cama e os cobriam e os cadáveres eram comidos por ratos. As pessoas comiam cadáveres e lutavam pelos corpos. Em Gansu, eles mataram pessoas de fora; as pessoas me disseram que estranhos passavam e os matavam e comiam. E eles comiam seus próprios filhos. Era terrível", relata Yang Jisheng, autor do livro "Tombstone", que reconta história da Grande Fome Chinesa.
"Eu tinha 18 anos na época e só sabia o que o Partido Comunista me dizia. Todos fomos enganados. Eu era muito vermelho, estava em uma equipe de propaganda e acreditava que a morte de meu pai era uma desgraça pessoal. Nunca pensei que fosse problema do governo", acrescenta.
Terra prometida
A promessa de Mao Tsé-Tung para a China era construção de um paraíso comunista através da revolução, coletivização de terras agrícolas e criação de comunas gigantescas rapidamente. Em 1958, ele lançou o “Grande Salto Para Frente”: um plano ambicioso para modernizar a economia chinesa que, assim como acontece com os grandes planos socialistas, se transformou em desastre.
A execução desastrosa, combinada a uma ambição de grandeza do ditador, levaram a China para a ruína: a economia do país não se recuperou até a década de 1970, e a agricultura chinesa nunca se recuperou da destruição daquela época. Antes de Mao, a agricultura chinesa era uma das mais produtivas do mundo, mas as políticas maoístas fizeram os agricultores perderem suas terras para o estado. "Foi em suma, não apenas má política, mas uma política criminosa. Foi um crime contra a humanidade", afirma Kirby.
O objetivo de Mao era se tornar o imperador mais poderoso da história da China, mas também ficar à frente do movimento comunista internacional - ideia que foi comprada pelo país de forma generalizada. "É um processo histórico muito complicado, porque a China acreditava no maoísmo e adotou esse caminho. Não foi um erro de uma pessoa, mas de muitas pessoas", diz Yang Jisheng.
Segundo Yang, a fome não foi um desastre como qualquer outro, mas sim resultado de totalitarismo. A análise do autor é contrária à narrativa oficial do governo chinês, que até hoje trata a Grande Fome como um desastre natural e nega o verdadeiro número de mortes. "O problema básico está no sistema. Eles não se atrevem a admitir os problemas do sistema. Isso pode influenciar a legitimidade do Partido Comunista", conclui.
Havia alimento suficiente
Mas a fome não foi apenas uma consequência de um regime cruel: ela foi usada como arma para fazer as pessoas trabalharem para o Partido Comunista. E tanto opositores quanto os inaptos ao trabalho foram empurrados para a morte.
Uma pesquisa de Felix Wemheuer, professor de Estudos Modernos da China na Universidade de Colônia, na Alemanha, aponta que no período socialista a fome delineou as relações entre o Estado e a população.
A crise do final da década de 1950 foi diferente de qualquer outra fome anterior que assolou a China: foi maior em extensão, em número de mortes e resultado direto de políticas do governo maoísta.
"Foi resultado de políticas verdadeiramente bizarras destinadas a fazer com que a China 'saltasse' para o comunismo de uma só vez", explica Kirby. "Foi acima de tudo uma fome feita por Mao Tsé-Tung, resultado de políticas ignorantes e destrutivas que levaram miséria para o interior da China", acrescenta.
Um estudo do Centro de Pesquisa de Política Econômica (EUA) corrobora a afirmação de Kirby: o levantamento indica que a produção de alimentos na China em 1959 foi quase três vezes maior do que o necessário para evitar a mortalidade por fome. Segundo a pesquisa, as regiões rurais que produziram mais alimentos per capita em 1959 sofreram maior mortalidade por fome, efeito inverso que normalmente acontece durante episódios semelhantes.
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