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A Primeira Guerra Mundial ainda não havia terminado e já tinha feito oito milhões de vítimas quando apareceu a gripe espanhola, que mataria muito mais: entre 50 e 100 milhões de pessoas.
Antes desse terror todo se espalhar mundo afora, o Brasil vivia um período de relativa calma. Francisco de Paula Rodrigues Alves foi eleito em março de 1918 para o cargo (que já tinha ocupado entre 1902 e 1906) de presidente da República e o país parecia relativamente alheio aos horrores da guerra que começava a devastar os campos da Europa.
A doença só chegava aqui pelos jornais. Nosso primeiro contato com a gripe espanhola foi no começo de setembro de 1918, quando uma divisão naval mandada pelas Forças Armadas brasileiras chegou à África, mais precisamente em Dacar, no atual Senegal, para ajudar os Aliados a patrulharem o Atlântico. De cara, mais de cem marinheiros morreram – mais do que o total de brasileiros envolvidos no conflito até então.
No mesmo mês, o navio-correio britânico Demerara chegou ao Brasil. Depois de partir de Liverpool, o vapor fez escalas em Lisboa, Recife e Salvador (além da mesma Dacar) antes de chegar ao seu destino final, o Rio de Janeiro, trazendo consigo diversos passageiros infectados.
De acordo com o jornal A Tarde, da Bahia, no dia 25 a epidemia já a assolava o estado, com “cerca de setecentos enfermos nos quartéis, nos hospitais, em casas particulares e em todos os centros de aglomeração de operários”.
A doença não tardou em ser usada politicamente. O governo federal decidiu fechar o porto de Salvador, considerando-o “um porto sujo”. Enquanto isso, o jornal O Imparcial acusou o governo brasileiro de, mesmo sabendo que a frota já estava infectada, decidir escolher a Bahia como bode expiatório, estampando em sua capa, em letras garrafais, a manchete: “A influenza na Bahia é… política!”
A essa altura, o navio já tinha atracado no Rio de Janeiro e seus marinheiros já tinham invadido bares e “casas de tolerância” por toda a região do porto, espalhando a doença assim que puseram os pés em terra firme. Em questão de dias o número de vítimas começou a ser contabilizado. No mês seguinte, o jornal A Noite acusava Jaime Silvado, inspetor sanitário do Porto do Rio de Janeiro, de permitir a entrada da epidemia por consentir que o navio atracasse, tendo em vista que, sendo positivista, “não acreditava em micróbios”.
Não ajudou o fato de que o diretor-geral de saúde (um cargo equivalente ao atual ministro da saúde) de então, Carlos Seidl, ter tido que a espanhola não passava de uma "gripezinha". Sua atuação e do presidente Wenceslau Braz foram alvo dos jornais, que os criticavam com virulência pela falta de um plano para lidar com a doença. Seidl acabaria demitido, mas antes chegou a recomendar a censura da imprensa. No Rio, a gripe espanhola chegou a ser conhecida como "mal de Seidl".
Ruy Castro, em seu livro 'Metrópole à Beira-Mar - O Rio moderno dos anos 20', descreve com riqueza de detalhes a curiosa maneira com que o carioca resolveu lidar com o problema, usando remédios à base de “alfazema, limão, coco, cebola, vinho do Porto, sal de azedas, cachaça de fumo de rolo”, ou até canja de galinha. A multinacional Bayer oferecia sua aspirina Fenacetina, um “tiro e queda contra a influenza”.
Desdém e ceticismo
Muitos duvidaram que uma doença comum, uma mera “catarreira”, um “limpa-velhos” como, se dizia na época, pudesse oferecer grande risco ao resto da população.
Assim como hoje em dia não faltam os que acusem as notícias sobre o coronavírus de exagero, histeria ou arma biológica dos chineses, em 1918 não faltaram aqueles que riram do temor de uma grande epidemia ou que acusaram alguém de estar por trás daquilo tudo. Segundo Ruy Castro, uma das teorias dizia que os alemães, então vilões da Primeira Guerra Mundia, estariam embutindo a doença nas salsichas consumidas pelos cariocas ou por intermédio de seus submarinos.
Diz um artigo da época:
“A influenza espanhola e os perigos do contágio – esta moléstia é uma criação dos alemães que a espalham pelo mundo inteiro, por intermédio de seus submarinos, (…) nossos oficiais, marinheiros e médicos de nossa esquadra, que partiram há um mês, passam pelos hospitais do front, apanhando no meio do caminho e sendo vitimados pela traiçoeira criação bacteriológica dos alemães, porque em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados, de maneira que, levadas pelas ondas para as praias, as garrafas apanhadas por gente inocente espalhem o terrível morbus por todo o universo, desta maneira obrigando os neutros a permanecerem neutros”.
Mas logo viu-se que não havia o menor motivo para desdém ou brincadeira. Até o fim de outubro de 1918, a doença tinha atingido todas as grandes cidades do país e, em novembro, a Amazônia. No mesmo mês, aportou no porto do Rio o vapor Royal Transport, trazendo consigo ainda mais pessoas infectadas a bordo.
Logo, quem pôde abandonou os grandes centros urbanos, e as autoridades pediram a todos que evitassem grandes aglomerações. Algo que nos soa estranhamente familiar. Outros já temiam “a ameaça da medicina oficial, da ditadura científica”, temendo que o governo fosse “tomando providências ditatoriais, ameaçava ferir os direitos dos cidadãos com uma série de medidas coercitivas, (…) preparando todas as armas da tirania científica contra as liberdades dos povos civis”.
Cadáveres nas ruas
O Rio de Janeiro foi de longe a cidade mais afetada pela epidemia. Estima-se que metade da população da cidade, que passava de 1 milhão de pessoas, tenha contraído a doença. O poeta Olavo Bilac foi um deles. O próprio presidente-eleito Rodrigues Alves acabou contraindo a Gripe Espanhola e foi obrigado a adiar sua posse, programada para 15 de novembro de 1918. Ele morreu em janeiro do ano seguinte, sem assumir o cargo.
De acordo com o escritor Pedro Nava, “o espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva”. O próprio Pedro Nava, então com quinze anos, descreve uma cena de terror: uma criança esfomeada, chupando os peitos da mãe morta, já em decomposição.
Uma manchete da Gazeta de Notícias declarava o Rio “um vasto hospital”. Já os hospitais em si não tinham leitos e foram fechados para visitas, numa tentativa de evitar qualquer contágio. Casas funerárias não davam conta de seu serviço, e faltava madeira para caixões. Com medo de serem infectados, as pessoas jogavam os cadáveres de seus familiares pelas ruas, na frente de suas casas, para serem recolhidos ao cemitério mais próximo, atraindo todo tipo de pragas. Pedro Nava conta: "Na minha rua, da janela, se via um oceano de cadáveres".
Urubus e cães se alimentavam dos cadáveres apodrecidos. "Lembro-me bem quando minha mãezinha foi obrigada a jogar no meio da rua os corpos do meu tio, seu irmão mais novo que ela havia criado com tanta dedicação e amor, e de meu irmão mais velho. Depois disso ela nunca mais foi a mesma. Ficou tomada de uma melancolia que não melhorava, nada conseguia fazê-la sorrir", conta Pedro Nava no livro 'Chão de Ferro'.
Muitas vezes “mortos” que ainda eram encontrados vivos eram liquidados ali mesmo, a golpes de pá, antes de serem transportados para seu fim derradeiro, fosse uma vala comum ou a cremação, tal como os camponeses medievais na cena da peste negra do clássico 'Monty Python e o Cálice Sagrado'. Surgiu aí também a lenda do “chá da meia-noite”, uma bebida misteriosa administrada aos pacientes em estado terminal, na calada da noite, o que rendeu aos hospitais o apelido de “casas do Diabo”.
A polícia fazia seu papel “convocando” transeuntes para assumirem o papel de coveiros. Segundo um relato de um jornal da época, um tal Alberto Mendes, ele próprio padecendo da gripe, foi “caçado” e levado para a delegacia local, onde de nada adiantou alegar sua condição precária de saúde. Ele foi prontamente colocado num bonde com outros 50 indivíduos para exercer seu dever cívico, retornando apenas de madrugada, ardendo em febre.
Durante estes sepultamentos, não eram poucos os casos de roubos dos poucos objetos de valor nos cadáveres, principalmente depois que os presidiários foram tirados das prisões para ajudar nos enterros. "Alguns, antes dos sepultamentos, cortavam os dedos ou orelhas de defuntos para se apossar de anéis e brincos esquecidos", relata Ruy Castro em 'Metrópole à Beira-Mar'.
Caipirinha
Em São Paulo, então com metade da população do Rio, a epidemia conseguiu ser relativamente contida. Autoridades locais declararam prontamente o isolamento dos doentes e o fechamento de todas as atividades coletivas, como missas, escolas, fábricas, teatros e cinemas. Mas muitos empresários se recusaram a conceder qualquer remuneração a quem se ausentasse do serviço durante o auge da epidemia, o que fez com que muitos fossem obrigados a se infectar apenas para preservar seu emprego.
O desabastecimento, algo que temos presenciado ao redor do mundo nos dias atuais, também se tornou comum. Produtos essenciais, como frango e leite, ou tiveram seus preços aumentados a ponto de serem impossíveis de serem comprados ou simplesmente sumiram das prateleiras. A procura por remédios aumentou e as farmácias se aproveitaram, a ponto de a prefeitura do Rio de Janeiro decidir tabelar os preços.
Num mundo que em não existiam vacinas, antivirais, ou sequer antibióticos que pudessem combater as complicações causadas pelo vírus, a procura por remédios caseiros também explodiu. Uma das lendas é a de que a origem da caipirinha dataria dessa época, depois que as pessoas passaram a acreditar que a combinação de cachaça com limão e mel poderia ter algum efeito benéfico.
Motivo de riso
No fim de outubro, tão rápido quanto surgiu, a epidemia desapareceu, deixando 15 mil mortos apenas no Rio de Janeiro. A vida aos poucos voltou ao normal. E, no Carnaval de 1919, a Gripe Espanhola foi o grande tema nos bailes e blocos do Rio de Janeiro. Marchinhas e desfiles tratavam do mesmo tema.
Assim é que é! Viva a folia!
Viva Momo – Viva a Troça!
Não há tristeza que possa
Suportar tanta alegria.
Quem não morreu da Espanhola,
Quem dela pode escapar
Não dá mais tratos à bola
Toca a rir, Toca a brincar…
O “chá da meia-noite” agora era motivo de riso e alegria."