Fundada com princípios ambiciosos, a ONU hoje é vista por críticos como um fracasso. Na última semana, pouco antes de os Estados Unidos bombardearem uma base militar síria em resposta ao uso de armas químicas atribuído ao ditador Bashar Al-Assad, a embaixadora americana nas Nações Unidas, Nikki Haley, foi enfática: “quando a ONU falha consistentemente, há momentos na vida dos Estados em que precisamos agir por conta própria”. A resposta foi praticamente imediata. No dia seguinte, os americanos dispararam seus mísseis. Assim como havia falhado em conter Al-Assad, a ONU não teve qualquer papel em autorizar ou negar o ataque ordenado por Trump.
Em 1995, no cinquentenário da organização, o jornalista britânico Neal Ascherson, especializado em relações internacionais da Guerra Fria, formulou uma crítica que permanece atual: “as Nações Unidas permanecem fracas porque os grandes poderes a mantêm dessa forma”, escreveu, na época, ao jornal inglês The Independent. “Se quisermos reinventar a ONU para ser mais do que um teatro, o controle do Conselho de Segurança precisa ser esmagado primeiro. A ONU precisaria de uma renda segura, um Comitê Militar de verdade, uma licença para agir por conta própria em assuntos urgentes”, dizia Ascherson.
“Já é difícil para os membros reagirem às atrocidades, que dirá preveni-las. Os Estados têm a ONU que eles merecem”, completa Thomas Weiss, professor da City University of New York e especializado em estudos internacionais, em entrevista à Gazeta do Povo.
Princípios
A ONU nasceu em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, e em sua carta de fundação insistia na sua determinação em “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. Não era a primeira vez que esses ideais originavam uma instituição internacional: poucas décadas antes, ao final da Primeira Guerra em 1919, a Liga das Nações tinha surgido com objetivos semelhantes. Porém, como o expansionismo de Hitler mostraria anos depois, a Liga foi incapaz de impedir que as grandes potências do Hemisfério Norte embarcassem em um novo conflito global, no intervalo de apenas uma geração.
Embora não tenha voltado a ver algo como a mortandade da década de 40, a ONU jamais conseguiu evitar que o mundo seguisse seu histórico de tentar resolver impasses políticos com armas na mão. A Guerra Fria passou a ser um fato consumado imediatamente após a fundação das Nações Unidas, gerando guerras reais que estendiam a batalha ideológica de americanos e soviéticos para países como a Coreia e o Vietnã.
Na década de 1960, conflitos de independência na África marcariam uma nova fase de violências – e, após obtida a soberania, essas novas nações empobrecidas pelo passado colonial mergulhariam em guerras civis e genocídios internos. Na virada do século, a chamada Guerra ao Terror transformaria o já conturbado Oriente Médio numa fonte inesgotável de conflitos.
Clubinho de boas intenções
Mais de 20 anos após o diagnóstico de Ascherson, pouco mudou. A ONU segue sem autonomia para intervir em questões urgentes, e o Conselho de Segurança continua com a mesma composição que possuía em 1945, ocupado pelas potências vencedoras da Segunda Guerra: Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, China e Rússia (que substituiu a União Soviética após o colapso do comunismo) atualmente dividem espaço com outros dez membros “temporários”, que não detêm o mesmo poder e são alterados anualmente.
Com o tempo, uma longa lista de fracassos foi sendo construída pela ONU – se o projeto inicial de impedir guerras caiu por terra ainda na década de 1950, outra bandeira herdada da época da fundação (a prevenção de novos genocídios, como o sofrido pelos judeus) seria definitivamente enterrada após o massacre da etnia tutsi pelos hutus em Ruanda, em 1994. Na ocasião, as Nações Unidas foram acusadas de negligência e de se esconder atrás de brechas legais para não intervir no país, recusando-se a classificar o que acontecia em Ruanda como um “genocídio” – conforme os acordos firmados após a Segunda Guerra em países como os Estados Unidos, reconhecer a existência de um novo genocídio deveria provocar uma imediata resposta militar.
Autoridade questionada
Ao mesmo tempo, o próprio Conselho de Segurança teria sua autoridade questionada: em 2003, os Estados Unidos autorizaram a invasão ao Iraque mesmo sem o consentimento explícito dos outros países-membros do grupo. “O Ocidente não deveria subestimar a confiança que o resto do mundo tem na ONU”, defendeu Kishore Mahbubani, ex-diplomata de Cingapura e um dos críticos ao modelo atual da organização. “Mas a ONU só pode manter essa confiança se estiver claro que ela atua em nome de interesses globais, e não apenas ocidentais”.
Para Mahbubani, que presidiu o Conselho de Segurança duas vezes entre 2001 e 2002, as nações desenvolvidas com frequência lamentam a pouca efetividade da ONU, mas não reconhecem que esta é uma política deliberada para manter seu próprio poder: “Mesmo durante a Guerra Fria, quando Moscou e Washington discordavam em quase tudo, as duas nações estavam unidas em um aspecto: elas conspiravam ativamente para manter a ONU fraca”.
Segundo Karen Mingst, professora da Universidade de Kentucky (EUA) e autora de ‘Princípios de Relações Internacionais’, um dos livros clássicos da área, nenhum dos países-membros do Conselho de Segurança deseja mudar a situação atual, pois isso colocaria em xeque o seu próprio poder. Enquanto não houver vontade política para alterar o status quo, “a ONU vai continuar a contornar de forma informal as limitações legais” impostas pelas potências, argumenta. Mas, na leitura da especialista, isso é insuficiente: “a ONU não conseguirá exercer um impacto maior para evitar guerras a menos que os cinco membros do Conselho com poder de veto entrem em acordo. Do contrário, tudo o que eles fazem é falar, oferecer-se para negociar e fazer uso de bons escritórios”, ironiza.
Alternativas
Frente aos problemas comumente apontados, especialistas em governança global têm buscado apontar alternativas que permitam contornar a falta de poder direto da ONU. Thomas Weiss defende a necessidade de fortalecer uma noção que chama de “right to protect” (direito a proteger, em inglês): “é um princípio segundo o qual as nações não podem se esconder atrás do escudo de que a soberania lhes dá licença para cometer assassinatos em massa”, diz. “Se um Estado não quer ou não consegue proteger seus cidadãos – ou se é o próprio perpetrador da violência contra eles –, sua soberania é temporariamente suspensa e a comunidade de Estados tem a responsabilidade de vir ao resgate de seus cidadãos”.
Essa noção, que defende os direitos humanos como mais elementares do que a própria autoridade de determinado Estado, é o princípio por trás das chamadas intervenções humanitárias – caso, segundo os EUA, do seu recente ataque à Síria. Para o professor, a fraqueza das Nações Unidas é reflexo daquilo que seus próprios membros plantaram: “O objetivo fundamental expresso na carta de fundação da ONU (prevenir guerras) foi fruto de uma euforia que rapidamente se desapontou, porque o Secretariado-Geral da ONU não era, e ainda não é, equipado para ações militares sérias”.
“A ONU é uma observadora passiva neste momento”
Margaret P. Karns, uma das mais importantes especialistas em política internacional do mundo, critica a incapacidade da ONU de colocar fim à guerra civil na Síria
- Murilo Basso especial para a Gazeta do Povo
Uma das mais conceituadas especialistas em política internacional do mundo, Margaret P. Karns é professora emérita de ciências políticas na Universidade de Dayton (Ohio), e professora visitante no programa de doutorado em governança global e segurança humana da Universidade de Massachusetts, em Boston. Nos anos 1990, lecionou na Universidade de São Paulo e também visitou Curitiba duas vezes, dentro de um acordo de parceria entre a Universidade de Dayton e a PUC-PR. Co-autora do livro ‘The United Nations in the 21st Century’ (“As Nações Unidas no século 21”), Karns falou à Gazeta do Povo sobre o atual cenário da organização:
A ONU tem sido criticada ao longo dos tempos por ser pouco efetiva em alcançar seu objetivo mais ambicioso: encontrar uma maneira de acabar com as guerras. Essa crítica é justa?
A realidade é que a ONU ajudou a interromper algumas guerras como as da América Central e Irã-Iraque nos anos 80, e também Angola, Camboja, Serra Leoa e Libéria nos anos 90. A presença das forças de paz da ONU nessas e em muitas outras situações ao longo dos últimos 60 anos ajudou a manter acordos de cessar-fogo, deu oportunidades para saídas diplomáticas e condições para uma paz sustentável. A grande frustração que muitos têm com a ONU atualmente é por sua inabilidade de parar a guerra na Síria ou pela aparentemente infinita crise na República Democrática do Congo, por exemplo. A culpa, porém, não é da ONU propriamente dita, mas dos seus membros. Rússia e China usaram seu poder de veto no Conselho de Segurança para bloquear até mesmo auxílio humanitário na Síria. Mesmo assim, três Representantes Especiais do Secretariado-Geral da ONU têm trabalhado desde 2011 para promover negociações entre as muitas partes envolvidas no conflito sírio, e vão continuar a fazê-lo. Com muitos outros países interessados no resultado da guerra, e o forte apoio da Rússia e do Irã para o governo Sírio, este é um conflito particularmente difícil de se dar um fim.
Existe uma forma de fazer a ONU ter um impacto maior nesse sentido?
A realidade é que, a menos que os envolvidos no conflito estejam prontos a parar de lutar e trabalhar por um acordo de paz, isso é improvável de acontecer. Nós podemos pensar em variações dessa explicação para outros conflitos. Uma grande lição que a ONU aprendeu nos seus 72 anos de existência é que, para qualquer tipo de ação militar conjunta, ela precisa das grandes potências, de uma coalizão de países dispostos, ou da OTAN e suas capacidades de alianças. Os Estados simplesmente não estão dispostos a prover à ONU o tipo de recursos militares para uma grande ação coerciva. Mas ela tem tido algum sucesso com sanções objetivas de vários tipos ao longo dos últimos 20 anos, como se viu na Serra Leoa, Libéria e Angola, entre outros casos.
Na semana passada, referindo-se ao ataque químico na Síria, a embaixadora americana na ONU declarou que “quando a ONU falha consistentemente [...] precisamos agir por conta própria”. Não tardou para os EUA darem início ao ataque que ela mencionava. A senhora concorda que a ONU tem falhado em dar uma resposta adequada ao que está acontecendo na Síria?
Não havia muito mais que a ONU pudesse fazer após os mais recentes ataques com armas químicas na Síria. Rússia e China bloquearam qualquer ação através de seus vetos no Conselho de Segurança. Sim, o Secretário-Geral António Guterres e outros líderes da ONU poderiam ter condenado – e de fato o fizeram – o ataque sírio e a violação do acordo assinado em 2013 sobre as armas químicas. A condenação verbal tanto da ação do governo sírio quanto da cumplicidade russa ocorreu, dentro e fora da ONU, por parte de vários de seus membros. O ataque americano na base aérea síria tinha a intenção clara de mandar um sinal a Assad e Putin: o ataque químico havia passado dos limites. O que virá a seguir ainda está por ser visto, com o Secretário de Estado americano Rex Tillerson em visita oficial a Moscou neste momento, e o governo Trump ainda buscando definir uma política e estratégia para a Síria no futuro.
Com americanos e russos ficando cada vez mais envolvidos lá, há algo que a ONU possa fazer além de permanecer como uma observadora passiva?
O Representante Especial da ONU deve dar início a uma nova rodada de conversas em breve, mas há poucos indícios de que os debates vão render alguma coisa. De fato, a ONU é uma espécie de observadora passiva neste momento, mas também um fórum útil para os diplomatas continuarem buscando uma base para um acordo político e pacífico.
Muitos argumentam que o Conselho de Segurança é uma relíquia legada pela Segunda Guerra Mundial, mas mesmo os críticos do sistema apontam que qualquer solução apresentada traz tantos problemas novos quanto aqueles que tenta resolver. É possível reformar o Conselho?
Certamente existem formas de reformar o Conselho de Segurança e as linhas gerais dessa reforma são evidentes há anos. O número de membros foi aumentado em 1963 e várias melhorias em seus procedimentos foram feitas nos anos 1990. A questão chave é quando o cenário político vai ser adequado para uma mudança. O que é particularmente interessante é que, apesar de repetidos pedidos para uma reforma do Conselho de Segurança ao longo dos anos, ele manteve sua legitimidade e autoridade como “a” entidade do mundo capaz de autorizar o uso de força em resposta às ameaças à paz e segurança internacionais. Mesmo assim, Índia, Japão, Alemanha, Brasil, e um ou mais países africanos terão que ser pacientes. Algum dia, o contexto político vai estar alinhado para uma mudança e haverá mais apoio para as mudanças que tornarão o Conselho realmente representativo da comunidade internacional.
Com a crise financeira, o crescimento do fervor nacionalista ao redor do mundo e as tensões sem fim no Oriente Médio, alguns analistas defendem que este é o momento mais difícil da política global desde o fim da Guerra Fria. A senhora concorda com esse ponto de vista? Qual é o poder real da ONU em um momento de dificuldade como este?
Será este o momento global mais difícil desde o fim da Guerra Fria? Eu não tenho certeza se diria isso, mas certamente é um momento difícil, que se tornou ainda mais por conta das incertezas criadas pela eleição de Donald Trump nos EUA, pela decisão da Grã-Bretanha de seguir adiante com o Brexit, e pelo aumento de sentimentos nacionalistas e populistas em muitas partes do mundo. As incertezas são agravadas pela ascensão da China como uma potência mundial com influência crescente dentro da ONU, e também sobre a América Latina, a África e a própria Ásia. É difícil falar sobre um “poder real” da ONU. Eu prefiro falar sobre a continuidade da relevância da ONU como o maior fórum global para discutir as diferentes questões que afligem o mundo hoje, desde a mudança climática até a desigualdade, de direitos humanos a desenvolvimento. Eu também gostaria de destacar que temos em António Guterres um novo, experiente e mais ativista Secretário-Geral, que inspira esperança por uma liderança mais forte e também por reformas muito necessárias dentro da própria ONU.