"Um momentito, señor”. Foi com estas palavras, ditas em arranhado espanhol, que um agente do Mossad, o serviço secreto de Israel, interceptou às 8h10m da noite do dia 11 de maio de 1960 os passos do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann num subúrbio de Buenos Aires. Apavorado, Eichmann empurrou o agente que conseguiu agarrá-lo, porém perdeu o equilíbrio. Abraçados, os dois homens caíram e rolaram para dentro uma vala aberta ao lado da rua de terra batida. No mesmo instante, outro agente pulou para dentro da vala. Eichmann foi imobilizado e arrastado para dentro de um carro estacionado com o motor ligado que partiu em segundos. Os agentes vendaram Eichmann que, estirado junto ao banco traseiro, balbuciou em alemão: “Vocês são de Israel, não são?”
A captura de Eichmann me foi pessoalmente narrada pelo agente que o abordou, Zvi (Zvika) Malkin. Eu o conheci anos depois de ter feito a cobertura do julgamento do criminoso nazista em Jerusalém. Fizemos uma grande amizade que se estendeu por 30 anos, até sua morte em 2004. Dele ouvi as mais autênticas narrativas sobre o sequestro, as quais detalho aqui.
O acaso
Desde o fim da Segunda Guerra, os serviços de inteligência israelenses se empenhavam para obter o paradeiro de dezenas de criminosos de guerra, com prioridade por três oficiais nazistas: Adolf Eichmann, Martin Borman e Joseph Mengele.
A busca por Eichmann começou a fermentar em setembro de 1957 quando Fritz Bauer, que era judeu, procurador-geral da província de Hesse, então Alemanha Ocidental, se encontrou com um diplomata de Israel. Bauer confidenciou ter uma importante informação: Adolf Eichmann, um dos formuladores e executores da “solução final”, o extermínio dos judeus europeus, se encontrava em Buenos Aires. Por não confiar nas autoridades judiciárias da Alemanha ou da Argentina, nem no pessoal da embaixada alemã em Buenos Aires, tinha decidido repassar a informação para o governo de Israel.
O diplomata enviou um relatório para Jerusalém que chegou às mãos de Isser Harel, diretor do Mossad que só lhe deu credibilidade por causa de um endereço nele contido: rua Chacabuco, número 4.621, no bairro de Olivos, subúrbio de Buenos Aires. Em janeiro de 1958, Harel convocou um agente que já tinha estado em Buenos Aires e ordenou que voltasse à Argentina para pesquisar a direção fornecida. Mas, no local, o emissário apenas encontrou uma casa de dois andares muito simples e vazia. Ao regressar, ponderou para Harel que um alto oficial da hierarquia nazista não poderia estar vivendo em condições tão precárias, num lugar tão modesto.
Entretanto, Isser Harel contatou o diplomata e pediu-lhe que marcasse novo encontro com Fritz Bauer, o que aconteceu no dia 21 de janeiro. O procurador revelou, então, que havia omitido o nome do autor da carta por precaução e para preservá-lo. O remetente era um judeu alemão chamado Lothar Hermann, residente na cidade de Coronel Suarez, a 480 quilômetros de Buenos Aires. Passou o endereço e o telefone de Hermann e se prontificou a escrever uma carta de apresentação para lhe ser entregue.
No entender de Harel era necessária uma informação mais consistente. Estava a ponto de desistir da investigação quando soube que um amigo chamado Efraim Hofstatter, inspetor de polícia, viajaria para a Argentina para cuidar de um assunto pessoal. Pediu-lhe, então, que quando lá estivesse, procurasse o tal homem que havia escrito para Bauer.
Em Buenos Aires, o inspetor ligou para Hermann e sugeriu que este viesse ao seu encontro. Extremamente desconfiado, respondeu que se o interlocutor quisesse conhecê-lo, que viesse até sua cidade. Hofstatter viajou de trem para Coronel Suarez, onde entregou a Hermann a carta de apresentação. O alemão chamou a mulher e pediu que ela lesse a carta em voz alta. Só então Hofstatter percebeu que o homem era cego.
Hermann contou que era sobrevivente do Holocausto. Depois da guerra tinha se casado com uma cristã alemã e com ela emigrado para a Argentina onde nasceu sua filha chamada Sílvia. Antes de se radicar em Coronel Suarez, a família havia morado em Buenos Aires, no bairro de Olivos. Ali, a moça tinha namorado um rapaz chamado Nicholas, ou Klaus, Eichmann, que frequentava sua casa na rua Cachabuco. Sem saber que Hermann era judeu, certa ocasião Nicholas comentou que lamentava o fato de Hitler não ter aniquilado maior número de judeus.
A investigação
Em Tel Aviv, Harel convocou um de seus melhores agentes, Zvi Aharoni, para prosseguir a investigação na Argentina. Aharoni chegou a Buenos Aires no dia 1º de março de 1960. Já no dia seguinte, alugou um carro e, acompanhado por um jovem judeu argentino, que se oferecera para ajudá-lo, rumou para o endereço em Olivos, onde encontrou uma casa de dois andares que parecia vazia. No entanto, percebeu que havia operários trabalhando no andar térreo. Estes só sabiam que os inquilinos do andar de cima tinham se mudado havia cerca de vinte dias.
Em suas anotações, Aharoni percebeu que o dia seguinte correspondia ao do aniversário de Klaus, um dos filhos de Eichmann. No dia 3, comprou um buquê de flores e voltou para Olivos. O jovem argentino encontrou uma pessoa no terreno ao fundo da casa em obras. Disse que as flores eram para alguém que fazia aniversário e morava no andar de cima, mas ninguém atendia. Soube, então, que os ocupantes do sobrado haviam se mudado há pouco para o bairro de San Fernando, mas um dos rapazes da família trabalhava numa oficina mecânica ali perto.
Aharoni e o voluntário argentino foram até a dita oficina, mas o nome Klaus era desconhecido. Entretanto, ouviram um dos mecânicos chamar um colega de trabalho como “Dito”. Aharoni concluiu que deveria ser Dieter, outro filho de Eichmann. O agente do Mossad e o rapaz judeu ficaram em vigília, esperando o fim do expediente para segui-lo. O jovem alemão entrou num automóvel dirigido por um colega de trabalho que o deixou no número 14 da rua Garibaldi, no bairro San Fernando. Dieter entrou numa casa modesta, porém com aparência de nova.
A confirmação
No dia seguinte, com a ajuda de um arquiteto indicado pela embaixada de Israel, Aharoni obteve a documentação da casa no registro de imóveis daquele bairro. A casa estava em nome de Veronica Liebl de Eichmann, ou Vera, como a mulher de Eichmann era conhecida.
Aharoni voltou à rua Garibaldi e fotografou no quintal da casa, estendendo roupa num varal, um homem com cerca de 50 anos, estatura mediana, testa larga e calva incipiente. Quando revelou o filme ficou na dúvida: pelas fotografias de Eichmann que já conhecia, aquele homem era parecido com o oficial nazista, mas faltava certeza.
Dias depois, ficou acompanhando de longe outro voluntário bater na porta da casa, sendo atendido por Eichmann e seu filho Dieter. O homem inventou um pretexto para puxar conversa enquanto fotografava pai e filho com uma câmera oculta numa maleta. Aharoni voltou para Israel no dia 9 de abril e disse a Harel ter a mais absoluta certeza de que o morador da rua Garibaldi, número 14, era Adolf Eichmann.
Harel se reportava a um supervisor chamado Rafi Eitan, uma figura mítica do mundo da espionagem, que morreu em 2019, aos 93 anos de idade. Embora nos anos subsequentes à captura de Eichmann o diretor Harel tenha se posicionado como o principal responsável pela operação, a complexa articulação e execução do sequestro coube de fato a Rafi Eitan que, inclusive, acompanhou tudo de perto em Buenos Aires.
A captura
Rafi Eitan armou um time com seis agentes e os despachou para a Argentina. A Zvi Malkin competiria apreender Eichmann na rua. Zvi Aharoni seria incumbido de fazer o primeiro interrogatório porque era fluente em alemão. Os demais deveriam alugar duas casas, uma para servir de esconderijo e outra para reserva. Em sistema de rodízio, todos fariam vigília na rua Garibaldi para acompanhar a rotina de Eichmann.
Havia um problema muito difícil de resolver: depois que a captura fosse bem sucedida, como transportar Eichmann da Argentina para Israel de modo rigorosamente sigiloso?
Eitan verificou que no dia 18 de maio teria início uma comemoração pelos 150 anos da independência da Argentina. A ideia consistiu em Israel se fazer representar na solenidade. Uma delegação oficial viajaria para Buenos Aires a bordo de um avião da companhia israelense El Al. No mesmo avião, Eichmann seria levado para Israel. O chefe da delegação, o chanceler Abba Eban, de nada sabia.
No dia seguinte, depois de mantido prisioneiro por oito dias, Eichmann foi vestido com um uniforme de comissário de bordo da El Al e levemente sedado. No aeroporto, os agentes que o amparavam, também vestidos como comissários, disseram às autoridades locais que o colega apenas tinha exagerado na bebida.
Adolf Eichmann começou a ser julgado em Jerusalém no dia 11 de abril de 1961. Em dezembro do mesmo ano foi condenado à morte. Sua apelação não foi acatada e a sentença foi cumprida no dia 1º de junho de 1962.
*O jornalista Zevi Ghivelder cobriu em Israel o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, um dos responsáveis por implantar a chamada "solução final", uma maneira de exterminar os judeus na Europa. Na época, Ghivelder era repórter da revista Manchete.
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