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O coringa – o trapaceiro, palhaço, provocador presente no nosso imaginário desde a Grécia Antiga – está de volta aos cinemas.
O coringa – o trapaceiro, palhaço, provocador presente no nosso imaginário desde a Grécia Antiga – está de volta aos cinemas.| Foto: Divulgação

O coringa, o trapaceiro, o palhaço, o provocador – esses papéis têm uma longa história cultural, algo que remonta a Hermes na mitologia grega.

Um dos palhaços mais famosos da era moderna é o Coringa, que apareceu pela primeira vez na história em quadrinhos do Batman em 1940.

Como arqui-inimigo do Batman, o Coringa serve como uma forma de alívio ao narcisismo menos interessante e aos exageros angustiados do herói. A forma como o Coringa castiga a sociedade é geralmente cômica e seu incansável espírito irônico de rebeldia contrasta com a moralidade virtuosa de Batman.

O Coringa é engraçado, interessante e divertidamente inteligente. Ele também está de volta aos cinemas, com o filme Coringa, que há um mês ganhou o prêmio de Melhor Filme no Festival de Veneza.

O provocador cultural

No baralho, o coringa é (quase sempre) formalmente inútil. As duas cartas são excluídas da maioria dos jogos e ainda assim um baralho fica incompleto sem elas.

O coringa é necessariamente uma não-carta, a exceção que une as demais cartas. Carta de valor aleatório, o coringa acrescenta um quê de improvisação à ordem hierárquica rígida.

Culturalmente, o coringa reafirma a ordem social por meio da sátira, transformando lugares socialmente importantes em espaços de balbúrdia e diversão, revelando as lacunas cômicas e absurdas com um espírito anárquico.

Ainda assim, seu papel sempre esteve atrelado às instituições que ele parece subverter. O bobo-da-corte, por exemplo, servia, em parte, para legitimar a ordem social. Ele mantinha uma relação artística com o povo, mas seus atos de subversão do poder reafirmavam seus limites.

Há muitos desses autointitulados “dissidentes” na política mundial atual. Pessoas que se posicionam estrategicamente como alguém de fora das estruturas do poder que, na verdade, ajudam a reproduzir.

As palavras e ações de tais provocadores que flertam com os limites do bom gosto e da etiqueta social sempre devem ser vistas com ressalvas. O poder pode se reproduzir de várias formas – até mesmo como uma aparente crítica.

1989: loucura com um quê de perversidade

Dentro da franquia do Batman, a melhor interpretação do Coringa o retrata se perigosamente equilibrado entre a comédia tola e o sadismo psicopata – naquele limite dentro do qual supostamente todas as grandes comédias acontecem.

O maior ator a interpretar o papel talvez tenha sido Jack Nicholson no Batman de Tim Burton (1989). O Coringa de Jack Nicholson capta a loucura da interpretação de Cesar Romero na série de TV da década de 1960, acrescentando um quê de perversidade, e essa combinação da insanidade colorida e da brutalidade letal gera uma experiência incômoda para o espectador.

“Faço arte até alguém morrer”, diz o Coringa de Jack Nicholson para a jornalista Vicki Vale (Kim Basinger) num museu depois que ele e seus capangas destroem várias obras cantando ao som de Prince.

“Está vendo? Sou o primeiro assassino completamente funcional do mundo”.

No fim dos anos 1980, Nicholson, aparecendo como o perfeito canalha em filmes como As Bruxas de Eastwick (1987), era o homem por trás de alguns dos personagens mais odiados do cinema. Ele foi, portanto, perfeitamente escolhido como o Coringa – e ajuda o fato de o rosto diabolicamente deformado do Coringa ser um tanto quanto parecido com o dele.

Nicholson era o nome de destaque no Batman e, como disse o crítico Roger Ebert, o espectador tende a torcer pelo Coringa, e não pelo Batman. É essa ambiguidade o que torna o filme de Burton tão interessante.

2008: Por que está tão sério?

O Coringa de Heath Ledger em O Cavalheiro das Trevas (2008), pelo qual ele recebeu o Oscar de Melhor Ator Coajuvante postumamente, era uma interpretação virtuosa. Ledger é estranhamente intenso. Ainda assim, a famosa pergunta que ele faz no filme – “por que está tão sério?” – podia facilmente se voltar contra o próprio Ledger.

Ledger confere ao papel um realismo psicológico que, paradoxalmente, o torna menos interessante (e menos complexo) para o espectador do que interpretações mais ambíguas.

A mistura incômoda do cômico e do sádico é o que torna o personagem eternamente atraente – nunca sabemos como o Coringa vai agir numa situação. Ledger, ao tornar o personagem “real”, o transforma apenas num louco sem senso de humor.

2017: Pego numa relação ruim

O caráter simbiótico da relação entre Batman e o Coringa não costuma ser explorada. Por sorte, LEGO Batman: o Filme (2017) enfatiza justamente essa relação.

O filme acompanha o Coringa (Zach Galifianakis), que tenta fazer com que o Batman (Will Arnett) admita que precisa do Coringa tanto quanto o Coringa precisa dele. O Batman se recusa a reconhecer a relação entre os dois ao longo de boa parte do filme. Quando finalmente a reconhece, a relação entre os dois finalmente desabrocha.

2019: Uma deterioração mental

A versão mais recente do Coringa é interpretada por Joaquin Phoenix, ator cuja carreira oscila entre o intenso (Johnny & June) e o cômico (Eu Ainda Estou Aqui). O filme de Todd Phillips promete revitalizar o personagem com uma história de origem que acompanha o palhaço/comediante azarado Arthur Fleck, que se transforma no Coringa depois que sua saúde mental se deteriora.

Os críticos elogiaram a representação que o filme faz do cenário político atual. A revista Time Out o chamou de “uma visão assustadora do capitalismo” e a IndieWire disse que o filme fala “dos efeitos desumanizadores do capitalismo que azeita a escada econômica”.

No contexto do movimento incel – no qual homens se reúnem em torno de seu vitimismo – uma narrativa de um herói violento surgindo em meio a seus sonhos fracassados de virar celebridade parece extremamente emocionante.

A frequência com que os tiroteios em massa ocorrem hoje em dia nos Estados Unidos (em 2012, James Holmes matou 12 pessoas durante a exibição de O Cavalheiro das Trevas em Aurora, Colorado) também tem despertado preocupação com a história. A mesma crítica da Indiewire disse que o filme é “um grito tóxico de incels cheios de autocomiseração”.

Levando em conta a necessidade de um defensor da lei e da ordem contra o qual o Coringa age, vale notar que o Batman não aparece no filme. O Coringa conseguirá segurar uma narrativa longa sozinho?

Que entrem os palhaços

Os palhaços parecem estar se tornando personagens comuns na política profissional. Em Abril, o comediante Volodymyr Zelensky foi eleitor presidente da Ucrânia. O novo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foi apelidado de “Bojo” pela imprensa – numa referência que não se restringe às primeiras sílabas de seu nome.

Boa parte da popularidade de Trump se deve ao fato de ele se apresentar como alguém que não faz parte da elite, alguém disposto a ridicularizar o poder – por mais que, enquanto um rico empresário de Nova York, ele seja a personificação do poder.

A importância mais abrangente do fenômeno é de difícil diagnóstico. Faz sentido que, numa época em que tudo é avaliado como entretenimento (e em que a maioria das pessoas conhece os truques dos produtos culturais que elas consomem), estrelas de reality shows, comediantes provocadores e empreendedores reúnam um poder sem precedentes no cenário público.

Os políticos nos divertem vestindo a fantasia de palhaço e tirando sarro dos políticos.

Talvez isso reflita um cinismo generalizado quanto à profissão política ou talvez reflita apenas um desejo de ter sempre palhaços divertidos para nos distrair.

De qualquer filme, vai ser ótimo assistir ao filme.

Ari Mattes é professor Estúdios Midiáticos na Universidade de Notre Dame, na Austrália

© 2019 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês

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