Aquarela de 1828 intitulada ‘Feitores açoitando negros na Roça’, de Debret, mostra punição comum aos negros escravizados por aqui: o açoitamento amarrado a um pau-de-arara| Foto: Reprodução

Em 1816, a convite do príncipe Dom João VI, o pintor francês Jean-Baptiste Debret desembarcou no Brasil para organizar a recém-fundada Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro — e, também, aproveitar a estadia para retratar a opulência da vida na corte. O Brasil de então era parte do Reino Unido com Portugal e Algarves e, desde a fuga da família real da Europa oito anos mais cedo, o Rio era oficialmente a capital do império português. 

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Vivendo por quinze anos no país, Debret registrou os grandes eventos da rotina monárquica, mas seus desenhos incluíam ainda instantâneos da vida cotidiana brasileira, sem ignorar as mazelas da época. Em uma das mais de 700 gravuras que fez, uma aquarela de 1828 intitulada ‘Feitores açoitando negros na Roça’, o francês eternizou uma punição comum aos negros escravizados por aqui: o açoitamento de um homem amarrado a um pau-de-arara.  

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Um século e meio mais tarde, na década de 1970, a mesma cena se tornaria emblemática das torturas empregadas pela mais recente ditadura brasileira contra os opositores políticos. 

Não mais a céu aberto e à vista de pintores estrangeiros, mas em porões escuros e salas secretas dos organismos estatais de repressão, o pau-de-arara permanecia como uma das formas de aviltamento mais temidas: com os pulsos e os tornozelos amarrados juntos e uma barra de ferro atravessada entre os joelhos e punhos, os prisioneiros políticos eram pendurados a alguns centímetros do chão e, nus, eram submetidos a diferentes sevícias – golpes com pedaços de metal, socos, chutes, choques elétricos ou queimaduras com cigarros acesos. 

Um longo passado 

A permanência de um método de tortura já utilizado no início do século 19 é apenas um sintoma de uma questão mais abrangente — o próprio fato de que o Brasil, desde o período colonial, nunca superou esse crime contra a humanidade. 

“Costumamos pensar a tortura como um instrumento típico do período ditatorial, pois nessa época ela foi uma forma sistemática de perseguição, ameaça e dominação”, aponta a historiadora Mariluci Vargas, doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ex-analista de pesquisa da ONU na Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

“Mas a tortura não se inicia na ditadura e não se encerra nela. Existe um perfil da vítima naquele momento que é causado por questões ideológicas, mas ao longo da história os torturados são principalmente definidos pela classe social e pela raça”, explica. 

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Elaborada em 1984, a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura a define como “qualquer ato pelo qual se inflijam intencionalmente a uma pessoa dores ou sofrimentos severos, físicos ou mentais”. 

Formulada em parte como uma resposta às violências cometidas pelos governos militares da América do Sul, a definição ainda especifica que a tortura, nesses termos, costuma ser levada a cabo por agentes do Estado com fins de punir, intimidar ou obter confissões — sejam elas da própria pessoa que é alvo da violência ou, ainda, de um terceiro: há numerosos relatos, no Brasil e nos países vizinhos, de torturas cometidas contra cônjuges ou filhos de militantes de esquerda, como uma forma de fazê-los confessar supostos crimes — ou, no caso dos suspeitos de integrar a luta armada, entregar seus colegas — mais rapidamente.  

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A definição da ONU nasce buscando responder, principalmente, às torturas por razões políticas vistas na segunda metade do século 20. No entanto, a história das punições violentas é mais antiga — e nem sempre foi destinada a opositores, mas também teve como alvo criminosos ou desobedientes. 

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A tortura, afinal, já chegou a ser vista como um elemento a mais na manutenção da ordem. No Brasil, esse passado começa com a própria colonização do território pelos portugueses e se intensifica com o emprego do trabalho escravo de Norte a Sul do país.

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Estima-se que mais de 5,5 milhões de pessoas tenham sido trazidas ao Brasil nos três séculos em que o tráfico negreiro através do Atlântico operou. 

Uma vez aqui, além de serem submetidos às terríveis condições da vida na senzala, os africanos e seus descendentes eram com frequência torturados após ações consideradas inadequadas pelos seus senhores. 

Pública ou secreta, sempre presente 

O açoite era um dos instrumentos mais utilizados nesse período e, além do pau-de-arara, costumava ser visto em conjunto com o pelourinho — este, um poste feito de madeira ou de pedra com argolas de ferro no topo, onde os infratores eram presos e chicoteados. 

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No caso dos escravos, a punição poderia ser ocasionada por qualquer ato considerado desobediente ou, mesmo, uma tarefa descumprida. Semelhante ao pelourinho, o tronco, também comum nessa época, recebia a pessoa a ser punida parcialmente despida, geralmente de costas para o algoz.

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Nesse período, as punições eram uma forma de causar temor pelo exemplo — e costumavam ocorrer em locais públicos. Os pelourinhos, como o que se localizava no centro histórico de Salvador, frequentemente eram instalados nas praças de grande circulação das cidades.

"Aplicação do Castigo do Açoite", do francês Jean-Baptiste Debret 

Esse tipo de punição começou a perder espaço no fim do século 18. Pouco a pouco, a Revolução Francesa e a ascensão de ideias iluministas sobre os direitos do homem e do cidadão levam a mudanças na maneira como a violência é empregada pelos governos ao redor do mundo. Conforme se fortalece o entendimento de que sociedades civilizadas não devem compactuar com tais brutalidades, elas vão sendo extintas ou ocultadas. 

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Movimentos abolicionistas se formam na Europa e pressionam seus governantes a acabar com o sistema escravista – nas Américas, o Brasil é o último país a formalizar a libertação de seus negros escravizados, mas também aqui esse momento chega, com a assinatura da Lei Áurea em 1888. 

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As torturas se transformam, mas não deixam de existir. “Os antigos presos políticos da época da ditadura militar recordam, em seus testemunhos, que a tortura não é algo restrito àqueles que tinham algo para falar ou alguém da militância para entregar: ela também é aplicada como uma punição aos presos comuns, sem atuação política”, assinala Mariluci Vargas. 

O uso de tortura por agentes policiais segue sendo denunciado no Brasil, mesmo mais de duas décadas após a aprovação da chamada Lei 9.455, de 7 de abril de 1997. Conhecida como “Lei da Tortura”, ela deu uma definição ao crime na legislação brasileira e estabeleceu penas de até 21 anos para quem for condenado. A definição da lei é semelhante àquela dada pela ONU: causar sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de um terceiro.  

Embora seja difícil de identificar com exatidão as vítimas atuais da tortura no país, um perfil comum costuma aparecer nas denúncias levadas a cabo por organizações de defesa dos direitos humanos: costumam ser negros e pobres, presos por crimes comuns, submetidos a diferentes tipos de violência.

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Já na época da ditadura esses detentos acabavam passando por experiências similares àquelas dedicadas aos guerrilheiros de esquerda – nos anos 70 e 80, o pau-de-arara, por exemplo, era utilizado indiscriminadamente, sem importar a existência de um envolvimento político-partidário do detido.  

Tortura política

Ainda assim, nenhuma tortura repercutiu tanto – e foi tão estudada e investigada posteriormente – quanto aquelas realizadas nas duas ditaduras vividas pelo Brasil no século 20. A repressão a militantes que se opunham ao governo começou a ganhar contornos sistemáticos na época do Estado Novo, instaurado em 1937, após Getúlio Vargas dar um autogolpe que permitiu ampliar seu poder e estendê-lo indefinidamente – ele, que havia tomado o poder em 1930, acabaria permanecendo no cargo por mais oito anos, até 1945. Mais tarde, já democraticamente, retornaria para outro mandato entre 1951 e seu suicídio, em 1954. 

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O temor de uma revolução comunista foi utilizado como pretexto para justificar o golpe, com o governo apontando para o “Plano Cohen”, um documento forjado que traria os projetos da esquerda para assumir o governo brasileiro. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi um dos bodes expiatórios desse período, com seus membros sofrendo dura perseguição nos anos seguintes.

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O escritor baiano Jorge Amado, ele próprio um membro do PCB que acabou preso durante o Estado Novo, relatou as experiências do período em “Subterrâneos da liberdade”, um romance em três volumes publicado em 1954. No segundo tomo, “A luz do túnel”, aparece uma das várias descrições da prisão política e as torturas coletivas às quais os comunistas estavam submetidos: 

“Eles estão alinhados ao lado da parede: os braços e as pernas amarrados, os corpos nus, alguns estão praticamente irreconhecíveis, após essa semana de cotidianas torturas. A uma ordem de Barros, os tiras retiraram do rosto do professor Valdemar Ribeiro, do operário mato-grossense, de Mascarenhas e de Ramiro as máscaras contra o gás asfixiante com que lhes faziam difícil a respiração. O professor causa lástima: só uma vez lhe bateram, deixaram-no duas noites de pé, sem comer, sem beber. No entanto ele parece dez anos mais velho, um magro corpo de Cristo crucificado, uns olhos de louco. [...] Não fora a surra que o envelhecera tanto, aprofundando as rugas do seu rosto, embranquecendo-lhe os cabelos. Fora o espetáculo das torturas aplicadas nos demais: quando haviam espancado Josefa o professor urrara até desmaiar”. 

A repressão política, outra vez contra organizações e partidos de esquerda, voltaria com força após a tomada do poder pelas Forças Armadas em 1964. Segundo números da Comissão Nacional da Verdade, que investigou violações de direitos humanos cometidos por agentes governamentais entre 1946 e 1988, há pelo menos 434 casos identificados de mortes e desaparecimentos sob a tutela do Estado brasileiro, e em torno de 1,8 mil episódios de tortura. 

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“Mesmo 50 anos depois, a tortura permanecia um objeto muito presente nos testemunhos e declarações. Seja no cinema, na literatura, ou nos depoimentos diante da Justiça Militar, na época da ditadura, ou frente às comissões de direitos humanos, após a redemocratização”, destaca Mariluci Vargas. 

“Os testemunhos voluntários [na literatura e no cinema] deram um panorama muito mais amplo para detalhar, entender e trazer elementos de subjetividade sobre a tortura que não apareciam nas provas jurídicas, pois a Justiça pouco espaço permitia para esses relatos”, pontua a historiadora. 

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Além do pau-de-arara e os espancamentos — como o infame “telefone”, em que, com as duas mãos em forma de concha, o torturador dava tapas simultâneos nos ouvidos do preso —, outra tortura notória dessa época era a chamada “cadeira do dragão”: uma cadeira metálica ligada a terminais elétricos em que os presos eram obrigados a se sentar, nus — uma corrente elétrica era então ligada e os choques acabavam transmitidos a todo o corpo da vítima. A técnica envolvendo o uso de eletricidade, que proporcionava uma tortura “limpa” (sem sangue), seria depois exportado por agentes brasileiros para outras ditaduras sul-americanas, em especial o Chile de Augusto Pinochet

Versão militar

Durante o regime ditatorial estabelecido em 1964, uma das explicações para a violência destinada a opositores era a tese da “guerra suja”: as Forças Armadas estariam devolvendo na mesma medida, usando técnicas semelhantes às que atribuíam às organizações de esquerda. Grupos armados eram acusados de também praticar tortura, como no caso do assassinato do fazendeiro José Gonçalves Conceição, conhecido como Zé Dico, no final de 1967. Antes de ser assassinado, Zé Dico teria sido trancado em um quarto e barbaramente torturado. 

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O governo apontou Edmur Péricles de Camargo, militante do PCB e fundador da guerrilha M3G (Marx, Mao, Mariguella e Guevara), como responsável pelo crime. Preso como terrorista e banido do país no início dos anos 70 como parte de uma troca pelo embaixador suíço — que havia sido sequestrado por guerrilheiros — o próprio Edmur acabaria recapturado na Argentina em 1974, entregue de volta ao Brasil, e se tornaria um desaparecido político. 

Em meados dos anos 1980, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra acabaria se tornando um dos mais conhecidos acusados de cometer torturas em nome do Estado brasileiro. Em seus livros de memórias, “Rompendo o Silêncio” e “A Verdade Sufocada”, dedicou-se a apresentar justificativas, negar ou minimizar os episódios em que estaria envolvido.

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“Excessos em toda guerra existem, podem ter existido, mas a prática de tortura como eles falam não ocorreu. Eu efetivamente não cometi excesso contra ninguém”, declarou Ustra em 2006. A tortura de prisioneiros é uma das atrocidades vedados pelas Convenções de Genebra — que regulamentam as ações militares em conflitos — mesmo em caso de guerra. 

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Em 2012, Brilhante Ustra tornou-se o único militar brasileiro reconhecido como torturador pela Justiça — a “ação declaratória”, no entanto, não tinha poder para responsabilizá-lo criminalmente. Em outubro deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou uma decisão que obrigava Ustra, falecido em 2015, a indenizar a família de um jornalista morto na ditadura. O entendimento foi de que o crime já havia prescrito.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]