Quando a Alemanha invadiu a Holanda em maio de 1940, atos de resistência aos nazistas já faziam parte da rotina de Hannie Schaft e das irmãs Truus e Freddie Oversteegen, jovens de 19, 16 e 14 anos, respectivamente. De conseguir documentos falsos para ajudar a proteger judeus perseguidos e panfletagem contra o nazismo, passaram à luta armada que faria delas ícones nacionais.
“O papel das mulheres em conflitos armados é frequentemente negligenciado”, explica Sophie Poldermans, autora de “Seducing and Killing Nazis: Hannie, Truus and Freddie - Dutch Resistance Heroines of WWII” (Seduzindo e Matando Nazistas: Hannie, Truus e Freddie - Heroínas da Resistência Holandesa da Segunda Guerra Mundial, sem versão em português). “No que diz respeito às guerras, as mulheres são muitas vezes retratadas como as principais vítimas. É por isso que esta história é tão importante, para mostrar modelos de mulheres fortes e de liderança feminina para as jovens de hoje”.
"As pessoas não têm ideia do papel da mulher dentro da Resistência", diz a jornalista Blima Lorber, pesquisadora do Núcleo de Estudos Arqshoah sobre brasileiros no Holocausto e na resistênca ao nazifascismo. Lorber destaca que além de cuidar de doentes, conseguir alimentos e resgatar órfãos, elas também pegaram em armas, como foi o caso da polonesa Faye Schulman, que se juntou ao grupo armado Molotava Brigade após fugir de nazistas que mataram sua família no gueto de Lenin e registrou o período em fotos.
Três ícones
Hannie Schaft era uma estudante de Direito que sonhava em trabalhar na Liga das Nações, a precursora da ONU. Ela estava a par do que se passava na Alemanha nazista e, quando a Polônia foi invadida por Hitler, em 1939, começou a enviar ajuda para soldados através da Cruz Vermelha.
"É preciso mostrar a importância de se indignar em situações de injustiça e violação dos direitos humanos", afirma a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora livre docente na USP e coordenadora do LEER (Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação) sobre a relevância de pesquisas envolvendo sobreviventes e pessoas que atuaram contra o nazismo.
Em maio de 1942, os judeus da Holanda passaram a ser obrigados a usar uma estrela amarela presa em suas roupas quando andavam em locais públicos. Então Hannie começou a roubar carteiras de identidade de vários locais públicos onde havia vestiários ou chapelarias, como piscinas públicas, teatros, salas de concerto e cafés, conta Poldermans em seu livro. Os documentos roubados serviam de base para criação de identidades falsas para judeus e integrantes da resistência.
Pouco mais de um ano depois, Hannie procurou o Conselho da Resistência (em holandês Raad van Verzet, o RVV), um dos grupos ativistas que atuavam contra os nazistas, pedindo para fazer parte da luta armada. Ali ela conheceu as irmãs Truus e Freddie, que já faziam parte da organização e eram, até então, as únicas mulheres. Juntas, as três trabalharam em missões para reunir informações secretas para a resistência, fornecer esconderijos seguros a crianças judias, roubar documentos de identidade, além de atos de sabotagem, como plantar bombas em ferrovias e outros locais estratégicos.
“Elas foram das poucas mulheres na Holanda que se juntaram à resistência armada. Não importava o que outras pessoas, incluindo os homens, pensassem”, diz Jeroen Pliester, presidente da Fundação Hannie Schaft.
Truus e Freddie Oversteegen agiam na resistência antes mesmo do início da guerra. Em 1934, a mãe delas abrigou cinco judeus que haviam fugido do regime nazista na Alemanha. Quando a guerra estourou, a família passou a imprimir panfletos e cartazes antinazistas que as meninas distribuíam.
As irmãs despertaram a atenção do Conselho da Resistência e, em 1941, Frans van der Wiel, um dos líderes do movimento, procurou a mãe delas pedindo autorização para conversar com as irmãs. Ele convidou Truus e Freddie para entrarem no grupo porque pensava que ninguém suspeitaria que duas meninas fossem da resistência armada. E isso era verdade: elas conseguiam transitar sem chamar a atenção levando mensagens, armas ou crianças judias resgatadas.
Sedução e assassinato
As ações mais arriscadas eram as que envolviam assassinar — ou liquidar, como dizia Freddie — nazistas e colaboracionistas holandeses. “Às vezes, elas até usavam sua juventude, beleza, feminilidade como uma arma de guerra”, diz Poldermans, ao detalhar que as garotas se arrumavam para ir a bares seduzir oficiais nazistas de alto escalão para conseguir informações confidenciais e matá-los.
Na primeira dessas missões, apesar de nervosa, Truus desempenhou seu papel de sedutora com perfeição. Ela flertou com um oficial alemão da SS, a polícia nazista, em um bar e o convidou para um passeio romântico na floresta. Quando saíram, foram seguidos por Frans, que matou o oficial com um tiro na cabeça.
Como as ações que envolviam ‘liquidar’ alguém eram as mais arriscadas, Hannie sempre carregava sua arma na bolsa e, segundo desabafou para Truus, saía maquiada e com seu cabelo ruivo bem penteado para “morrer bonita”. “Muitas das liquidações foram realizadas pelas mulheres atuando em duplas, atirando em plena luz do dia, fugindo o mais rápido que podiam em suas bicicletas”, diz Poldermans.
Mártir da resistência
Em junho de 1944, após um parceiro da resistência com quem frequentemente dividia missões ter sido ferido e capturado, Hannie precisou reforçar seu disfarce. Ela pintou seu cabelo de preto e passou a usar óculos falsos. Seus pais foram capturados por Emil Rühl, um oficial nazista da SD, o serviço de inteligência da SS. A captura da ‘moça de cabelos vermelhos’, como Hannie era conhecida, era uma prioridade. Ela pensou em se entregar, mas foi convencida a continuar escondida.
Menos de um ano depois, quando seus pais já haviam sido libertados, Hannie foi presa durante uma checagem de rotina em um bloqueio policial, quando soldados alemães encontraram folhetos de resistência em sua bicicleta. Ela foi levada à prisão e depois de muitos interrogatórios e torturas, foi reconhecida pelas raízes ruivas de seus cabelos. Rühl interrogou-a intensamente, sem que ela nada revelasse sobre a rede de resistência. Hannie assumiu a autoria de alguns atentados e, em 17 de abril de 1945, 18 dias antes de libertação da Holanda, foi executada nas dunas de Overveen, no norte do país.
Depois da guerra, os corpos de centenas de lutadores da resistência, incluindo o de Hannie Schaft, foram encontrados enterrados nas dunas. Em 27 de novembro de 1945, eles receberam um sepultamento apropriado que foi acompanhado pela rainha Guilhermina.
As irmãs Truus e Freddie sobreviveram à guerra e tiveram uma vida longa. Truus dedicou-se às artes plásticas e à escrita, tendo sido uma importante porta-voz sobre a experiência delas durante a guerra. Freddie viveu uma vida mais discreta, longe dos holofotes. Em 2014, as irmãs receberam a Cruz de Guerra de Mobilização, uma homenagem militar holandesa por seus atos de resistência durante a guerra. Truus morreu em 2016 e Freddie, em 2018.
Para Pliester, é importante divulgar a história das três destacando outros elementos, sem reduzi-las a termos como 'viúvas negras’. “As três acreditavam fortemente em paz, liberdade e inclusão”. E esses são alguns pilares da fundação Hannie Schaft, fundada por elas para manter vivos o exemplo e a memória da amiga. “Além disso, para elas era fundamental ensinar às crianças as consequências da exclusão e do extremismo”, diz.
Não se sabe quantos oficiais da SS e colaboracionistas holandeses foram mortos pelo trio. Quando questionada sobre isso, Freddie costumava dizer que não se pergunta a um soldado quantas pessoas ele matou. “Elas fizeram o que fizeram ‘porque tinha que ser feito’ e, acima de tudo, tentaram permanecer humanas em circunstâncias desumanas”, diz Poldermans, que conviveu e trabalhou com as irmãs por duas décadas.
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