A consultora financeira Bettina Rudolph deu início a uma grande discussão nas redes sociais ao apresentar-se ao público dizendo ter alcançado seu primeiro milhão de patrimônio aos 22 anos, após apenas 3 anos de investimentos.
Entre as diversas controvérsias geradas, como debates acerca de como isso foi possível com um aporte inicial de apenas R$ 1.520,00, seu mérito pessoal foi colocado em cheque. Posteriormente ela explicou que fez diversas aplicações mês a mês, ou seja, omitiu fatos importantes para a tomada de decisão do telespectador, induzindo a uma expectativa inicialmente irreal.
Porém, apesar de contar uma verdade parcial, todo o resto de sua história se destaca em relação à média. Entre as críticas, milhares de comentários diminuíram o feito ao argumentarem que ela apenas acumulou tamanho capital tão cedo por pertencer a uma família estruturada, sem contas para se preocupar, ter tido acesso a uma educação de qualidade, ganhado R$ 35 mil do pai, por ser branca, atraente, entre razões elencadas de toda sorte.
Leia mais: Como pensar sobre o privilégio
Como dizia o músico Tom Jobim, sucesso no Brasil é a maior ofensa pessoal possível. O ditado de que “pobre ganha na loteria e continua pobre” comprova e é evidenciado por casos reais de pessoas que, do dia para a noite, enriqueceram com um bilhete, e pouco tempo depois perderam todos os recursos obtidos.
Em um país em que há mais de 63 milhões de indivíduos com nome inscrito em órgãos de proteção ao crédito, como o SPC, ter o básico de noções sobre finanças não é o comum. Saber fazer o dinheiro render, como Bettina, muito menos. Com R$ 35 mil, muitos poderiam optar por adquirir um carro próprio. Ela escolheu investir em ações, e não há nada de errado nisso.
A despeito de todos os estereótipos colocados e de todas as hipóteses criadas sobre a obtenção de seu patrimônio, ela trabalhou desde os 15 anos. Saiu de casa e assumiu todas as suas despesas aos 21. Quantos jovens, ainda que pertencentes a famílias com boas condições financeiras, assumem riscos e fazem o mesmo?
Se o Índice Ibovespa bateu 100 mil pontos nesta semana — número simbólico para investidores nacionais e internacionais —, muito se deve ao trabalho de consultores como Bettina, que encorajam o brasileiro a sair da poupança e adotar outros investimentos com riscos e rentabilidades de toda sorte.
“Teoria dos Privilégios” sedimenta ressentimento
O que se viu nos últimos dias foi que, diante de uma mostra de sucesso individual, a primeira reação popular foi negar o mérito de Bettina em virtude da percepção de que ela partiu de uma condição mais favorável que a de muitos brasileiros.
As reações de boa parte dos brasileiros são a concretização do que a norte-americana Peggy McIntosh escreveu em 1988. À época, fundamentou em umartigo o que ficou conhecido como a Teoria do Privilégio, segundo a qual este se dá em função de aspectos socioeconômicos mais vantajosos e delimitados a partir do nascimento.
A origem do termo privilégio denota a “lei para poucos”, isto é, uma distinção que possui origem e chancela estatal. Para a professora, no entanto, os privilegiados se beneficiam de vantagens individuais não concedidas pelo Estado e que podem ou não ser aproveitadas: quem nasce homem, branco, hétero e rico é naturalmente privilegiado em relação a mulheres, negros, gays e pobres. Os primeiros não sofrem opressão, enquanto quem não dispõe das mesmas características tende a ser vítima desta.
Para o cientista político Bruno Garschagen, que tratou do tema em sua obra “Direitos Máximos, Deveres Mínimos”, se trata de “um reforço à caricatura que o marxismo faz entre ricos e pobres, entre opressores e oprimidos”.
O filósofo Joel Pinheiro da Fonseca vai além. Para ele, a aplicação que se faz, no debate público, da teoria de McIntosh para analisar qualquer processo social é muito pobre: “Cada uma dessas categorias se dá em um contexto individualizado. Em determinada circunstância, uma mulher negra pode ter poder e oprimir um homem branco, por exemplo. De fato, em geral homens tendem a ter maior poder que mulheres, mas o importante é a análise do caso concreto e de seu contexto, o que se perde ao tratar indivíduos apenas com base em categorias e teorias abstratas”.
Deixar de reconhecer o mérito de alguém apenas porque essa pessoa não está nas piores condições do universo é alimentar ressentimento e ignorar que todos nós, quando comparados em situações extremas, possuímos algum grau de vantagem ou desvantagem. Mesmo os mais pobres moradores de regiões da periferia de capitais brasileiras podem estar em condições privilegiadas em relação aos brasileiros de menor renda dos anos 1960, ou a pessoas que nascem em áreas mais precárias ao redor do mundo, ou mesmo em locais que experimentam guerras civis.
Como explica Pinheiro, em qualquer trajetória individual há fatores ambientais, ou externos, e os que decorrem de suas características, como vontade, dedicação, inteligência e talentos. “Ambos fatores estão envolvidos em tudo, às vezes de maneira complexa. O obstáculo imposto pode ser justamente aquilo que dá garra ao indivíduo para superá-lo. É fato que as oportunidades que recebemos determinam em larga medida muito do que é possível ou não para nós ao longo da vida. Alguém que nasce mais pobre terá menos oportunidades e precisará se esforçar muito mais para obter resultados, e talvez fique longe de condições de outras pessoas que nasceram longe de situações adversas e que gozam disso sem terem feito absolutamente nada por aquilo. Por outro lado, dadas as suas condições, há quem faça muito com isso e quem não. Quem faz, deve ser valorizado”.
O ressentimento verificado perante o caso de Bettina compõe uma mentalidade perigosa. Joel complementa que “o sucesso de cada indivíduo depende também de sua crença de que é possível melhorar. Caso não se acredite nisso, ninguém se moverá buscando melhorar a atual condição das coisas. Essa mentalidade de acusar privilégios mata a fé necessária que os indivíduos precisam ter em sua própria capacidade de melhorarem suas condições. Quando isso ocorre, eles ficam inertes e derrotistas, enxergando um mundo malévolo ao seu redor em vez de buscar melhorar suas próprias realidades.”
O mercado, composto pela reunião das decisões de todos os agentes, incluindo você e eu, o pipoqueiro e o grande industrial, não se pauta por questões de justiça ou meritocracia, mas pelo valor gerado por cada indivíduo. Mesmo assim, como conclui Joel, trata-se de “um mecanismo poderoso de melhora social, que é perdido na medida em que as pessoas optam apenas por contestar e acusar o mundo injusto por não haver plenas condições de igualdade”.
A desigualdade boa e a ruim
Em um país tão desigual quanto o Brasil, o termo igualdade está sempre no debate público. Há muitos “brasis dentro do Brasil”. Ao ver Bettina, hoje milionária, expondo sua fortuna, um Brasil distante dela a questionou, rotulou e afirmou que seu sucesso foi possível tão somente por conta de seu ponto de partida.
É preciso ressaltar que, tal como o colesterol, há dois tipos de desigualdade: uma ruim e outra boa. A boa é a que resulta dos talentos, do esforço e da inventividade de cada indivíduo. É permitida a partir da isonomia perante a lei e da igualdade de oportunidades. Os resultados diferentes alcançados são perfeitamente naturais. Essa desigualdade é positiva, já que os agentes econômicos são incentivados a buscar inovação e geração de riqueza.
Entretanto, há ainda a desigualdade ruim, que ocorre quando agentes econômicos enriquecem por outras razões que não o valor gerado à sociedade. Isso costuma se dar por meio da prática do lobby, corrupção e capitalismo de laços, por exemplo.
Em um país em que parcela considerável da riqueza de agentes é dada mediante a existência de instituições extrativistas, é compreensível até certo ponto que se questione a origem do patrimônio de alguns indivíduos. Estudo do IPEA, por exemplo, evidencia que o Estado brasileiro é responsável por cerca de um terço da desigualdade de renda.
A atuação do BNDES na última década e as regras atuais da Previdência Social são grandes exemplos de responsáveis pela geração de desigualdades ruins. O próprio orçamento brasileiro beneficia de forma desproporcional os brasileiros de maior renda, segundo o Banco Mundial.
No entanto, nada do que se sabe até agora depõe contra os méritos de Bettina. Pelo contrário: é possível dizer que, dadas as suas opções, ela decidiu usar as qualidades em seu favor e fazer melhores escolhas do que outros fariam em condições semelhantes. As reações críticas, portanto, são apenas a representação de como brasileiros continuam a dar razão a Tom Jobim.