Pintura de Nikita Chebakov mostra o jovem Pavlik Morozov denunciando o pai: obra foi feita em 1952 para servir de propaganda do regime soviético| Foto: Reprodução
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Poucos soviéticos foram tão patriotas quanto Pavlik Morozov, de apenas 13 anos, morto em 1932. Entusiasta da coletivização agrícola promovida pelo regime comunista, ao ver seu pai e seu tio escondendo trigo do governo, não teve dúvidas: denunciou ambos às autoridades. Por cumprir seu dever, pagou com a vida: seus avós e seu padrinho o emboscaram na floresta e o mataram a facadas. Seu nome foi dado a ruas em toda a União Soviética, poemas e livros foram escritos e estátuas foram erguidas para homenagear o jovem delator. Uma linda história para inspirar o país comandado por Josep Stalin.

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Espera aí! Eu disse “escondendo trigo”? Não, o pai de Pavlik na verdade estava vendendo documentos aos kulaks, ricos fazendeiros que resistiam à coletivização das terras agrícolas, verdadeiros inimigos da revolução. Eu disse Pavlik? Não, não, seu nome era Pavel "Pashka" Morozov.

Desculpe se tudo soa muito confuso, mas a história de Pavlik/Pashka Morozov mistura algumas doses de verdade e outras tantas de mentiras fabricadas sob medida pelo regime stalinista. O objetivo, em um país que buscava destruir a religião e estimular a vigilância estatal, era criar um santo que fosse um exemplo para outros jovens, um estímulo para delatar qualquer inimigo da revolução bolchevique, até mesmo os próprios pais.

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A verdade

Pavlik e seu irmão Fyodor foram encontrados mortos em uma floresta próxima da vila de Gerasimovka, nos Urais. Um agente da OGPU (antecessora da KGB) foi designado para investigar o caso. Ele prendeu os avós, um primo e o padrinho (casado com a tia de e um primo de Morozov. Eles seriam kulaks e estariam contra a coletivização das terras — uma faca suja de sangue teria sido encontrada na propriedade dos avós. Levados à capital do estado, foram sentenciados à morte acusados de terrorismo contra o estado soviético.

A história continuou sendo contada desta forma, sem contestações, até a década de 1970, quando um escritor chamado Yuri Druzhnikov começou a desconfiar da história. Após questionar publicamente, foi procurado por agentes da KGB que recomendaram a ele deixar tudo como estava. O efeito em Druzjnikov foi o contrário: a reprimenda só fez atiçar sua curiosidade.

Ele viajou a Gerasimovka, onde a verdade aos poucos foi aparecendo. Pashka, que era como os amigos e familiares chamavam Pavlik, vendido pelo regime como estudante modelo e chefe local dos pioneiros (uma organização comunista voltada para os jovens, parecida com os escoteiros), era quase analfabeto e nunca foi um pioneiro.

Pavlik de fato denunciou o próprio pai. O motivo, porém, teria sido outro. Sua mãe havia sido abandonada, junto com Pavlik e seus quatro irmãos, e por isso viviam em absoluta necessidade. Amargurada, a mãe de Pavlik o convenceu a dedurar o pai.

Quem matou Pavlik?

Yuri Druzhnikov mais tarde se refugiou nos EUA e se tornou professor de alemão e russo, até morrer em 2008, não sem antes escrever o livro 'Informer 001: The Myth of Pavlik Morozov' (Informante 001: O Mito de Pavlik Morozov). Em 1982, 50 anos depois da morte de Pavlik, ele encontrou o agente da OGPU designado para o caso, Spiridon Kartashov. Como agente, Kartashov recebeu a missão de forçar os camponeses a aceitar a coletivização das terras. Qualquer um que resistisse perdia tudo: os animais, seus pertences e a liberdade — eram enviados para a Sibéria. Milhões morreram nos gulags e milhões morreram de fome.

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Em Gerasimovka as coisas estavam especialmente difíceis. A população local resistia à coletivização e o avô de Pavlik era um dos que mais se opunham. Havia, no entanto, gente que estava a favor da ditadura comunista, e um deles era Ivan Potupchik, primo de Pavlik. Ele era informante da OGPU e hospedou o agente Kartashov em sua casa. De forma suspeita, foi quem liderou o grupo que recolheu o corpo de Pavlik da floresta.

Em depoimento ao escritor Druzhnikov, o ex-agente Kartashov contou o que se passou em Gerasimovka. Ele foi enviado à vila com uma lista de kulaks para enviar para a Sibéria — preparada previamente por Potupchik. Nunca houve uma investigação de verdade sobre o assassinato. Druzhnikov acredita que foi Potupchik quem tenha assassinado o jovem Pavlik, sob ordens da OGPU. Décadas depois, em 1961, Potupchik foi preso pelo estupro de uma adolescente.

Por que assassinar Pavlik? Para assustar os camponeses que se opunham à coletivização. O uso político de sua morte foi algo não planejado, mas que serviu bem aos interesses da ditadura soviética.

A queda da União Soviética deveria ajudar a expor a verdade, mas a FSB, agência que sucedeu a KGB, nega acesso aos arquivos alegando que o caso continua aberto. Quase 90 anos após sua morte, Pavlik permanece como símbolo, mas não de heroísmo. E sim de como o comunismo não hesita em jogar pais contra filhos, destruir a família e mesmo usar a morte de crianças para o “triunfo da revolução”.

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