“O assédio sexual”, escreveram Billie Wright Dziech e Linda Weiner no livro 'The Lecherous Professor: Sexual Harassment on Campus' [O professor lascivo: assédio sexual no campus, em tradução livre], de 1984, “constitui uma das mais persistentes e sérias violações dos direitos humanos na academia”. O livro virou referência naquela década. Foi exatamente este o termo escolhido pela revista esquerdista Mother Jones para caracterizar Florian Jaeger, professor de linguística da Universidade de Rochester, em Nova York, ao contar a história de sua aluna de pós-graduação Celeste Kidd: “Ela era uma estrela em ascensão em uma universidade importante. Então um professor lascivo tornou a sua vida um inferno”. O texto é de setembro de 2017.
Seguiram-se quatro anos de denúncias e tumulto. Em 2021, quarenta estudantes marcharam pelo campus contra Jaeger para “conscientizar os calouros” que haveria um predador sexual na universidade. Os rumores o acusam de ser um abusador e até estuprador. Ele se tornou um pária em sua própria área, a pressão por sua demissão chegou a quase destruir o Departamento de Ciências Cognitivas e do Cérebro. Foram feitas quatro investigações, custando milhões de dólares à instituição. Alguns renunciaram a seus cargos, incluindo o reitor.
Florian é alemão, tem um PhD em linguística e ciências cognitivas pela Universidade de Stanford, e foi contratado ainda jovem, na faixa de idade dos estudantes de pós-graduação, pela Universidade de Rochester: aos 30 anos, em 2007. Foi o mesmo ano em que Celeste foi convidada para uma entrevista para a oportunidade de se tornar estudante de doutorado no local. Ela relata à Mother Jones que saiu perturbada da entrevista, pois Florian a usou para convidá-la para uma festa no fim de semana. Ela recusou. Dias depois, ele mandou uma mensagem no Facebook: “você deveria ter vindo”. Ela explicou que queria manter certa seriedade antes de ser aceita, e ele a tranquilizou que com ele essa preocupação era desnecessária, acrescentando que “Rochester costumava ser um lugar de festas lendárias (com muita nudez etc)”. Celeste passou na seleção, que não foi conduzida apenas por Florian.
As acusações
Em uma festa em 2008, Florian disse que um outro professor achava uma aluna atraente, na frente dela. Ela disse a investigadores que achou o evento “super mortificante”. Ele teve encontros românticos e dormiu com várias alunas, mas nenhuma delas trabalhava em seu laboratório ou estava sob a tutela dele. Agora, depois dos 40, o próprio concorda que isso é problemático, mas diz que não via problema quando tinha trinta e poucos anos.
Uma carta de uma aluna de pós-graduação escrita em 2013 e entregue ao chefe do departamento ilustra o clima em torno do professor Jaeger: “Há um professor aqui que anda fazendo coisas pouco profissionais que me deixam desconfortável”, escreveu Keturah Bixby. “Nunca é alguma coisa muito grande, mas foi se acumulando ao longo dos anos em que estive aqui e não me sinto segura perto dele. Embora eu seja geralmente feliz em Rochester, essas situações me deixaram muito triste algumas vezes. É o Florian.”
Keturah reclama de uma vez em que ele escreveu em um bloco de notas adesivas de pé atrás de uma colega. Em outra ocasião, em uma festa, ela pediu que ele não tirasse uma foto dela, mas ele tirou. “Fiquei com muita raiva, e na foto (se ainda existe em algum lugar) estou mostrando o dedo médio para ele. Pensar que ele tem uma foto minha em algum lugar me faz sentir raiva, nojo, me dá arrepios.” Ela relata que evitou eventos sociais e profissionais por medo de voltar a vê-lo, e diz que nunca mais quis interagir com ele. “Não o quero em uma das minhas palestras. É possível?” Além de escrever ao chefe de departamento, ela também pediu ajuda do orientador.
O chefe falou com duas outras pessoas que Keturah indicou por também terem problemas com Florian, e levou as reclamações, sem dar nomes, ao professor. O alemão disse que estava surpreso e chateado ao saber do incômodo, e também pelos queixosos não terem lhe abordado diretamente. Decidiu mudar de atitude e ficou mais alerta a respeito de como era percebido pelos outros.
As queixas cessaram por alguns anos, e Florian Jaeger encontrou um relacionamento estável com uma professora do departamento. Não saía mais com estudantes. Ganhou também uma posição permanente, foi promovido e nomeado diretor do Centro das Ciências da Linguagem.
O conflito retornou em 2016, quando a morte súbita de um professor abriu uma posição, e um dos candidatos à nova vaga foi atacado por uma colega que também ambicionava vaga por ter se casado com uma ex-aluna. Florian objetou: era ilegal e imoral usar o relacionamento do candidato contra ele. A reunião virou um bate-boca. Jessica Cantlon, a acusadora, insinuou que o candidato tinha comportamentos sexuais predatórios, mas teve de admitir depois que não tinha evidências disso. Ela tinha antes uma amizade com Florian, mas a amizade esfriou quando ele não quis ficar “do lado dela” (na percepção dela) quando ela falava mal de colegas, e ela alegava que ele fazia isso não por imparcialidade diante das duas partes no desentendimento, mas por sexismo.
O candidato acabou contratado, o que inflamou as tensões. Jessica acionou o orientador de Keturah, contando sobre os antigos casos de Florian com estudantes e comparando à suposta imoralidade do novo contratado. Richard Aslin, o orientador, que antes ficou apático com as reclamações de sua aluna Keturah, agora tinha sido cooptado para a causa de Jessica: estava “enojado e com raiva” e não deixaria “o assunto morrer até [Florian Jaeger] sair” do departamento. Os dois parceiros de indignação agora tinham motivo para desenterrar tudo o que pudessem da primeira fase do linguista no departamento, quando ele ainda não estava aclimatado às normas. Ambos fizeram denúncias formais confidenciais à universidade.
Logo emergiu um rumor falso de que Florian continuava namorando estudantes. O recrutamento de denunciantes por Jessica e Richard se intensificou. “Precisamos de soldados do nosso lado”, disse o último em e-mail à primeira. É neste ponto que entra Celeste Kidd, tema da reportagem da revista Mother Jones.
Celeste foi mais ousada que Keturah nas acusações. Alegou que Florian a assediava sexualmente desde 2007. As investigações não fizeram jus às acusações. Ela é descrita por uma pessoa que conhece os dois como similar a Florian no aspecto de ignorar normas sociais. Os dois de fato conversaram sobre sexo, mas Celeste falava de sua vida sexual de forma aberta, chegando a detalhes gráficos, com frequência e para diferentes pessoas. Ela disse a colegas, por exemplo, que tinha uma lista de acadêmicos com quem queria dormir. De fato, ela acabou se casando com um professor do departamento, mas não foi Florian.
Espantosamente, acusadora e acusado moraram juntos por um tempo. Um observador comenta que ele parecia tratá-la de forma paternal, como uma menina, mas que ela parecia admirá-lo muito. Ela nega que a admiração era romântica. Nas mensagens reveladas pela investigação, ela parecia entusiasmada em iniciar e reiniciar contato. Agora, alega que o contato era inconveniente, e só da parte dele. Passou à imprensa uma versão fortemente editada das mensagens, cuja análise também revelou um comportamento típico de uma pessoa enciumada e rejeitada.
As investigações da universidade concluíram a favor de Jaeger, com notas de preocupação pelo seu comportamento entre 2007 e 2010, mas reconhecendo que os namoros estavam na época dentro das regras (que depois endureceram). Florian recebeu punições informais da comunidade acadêmica, como desconvites para eventos, expulsões de conselhos editoriais e, mais injustamente, rejeições a artigos científicos escritos por seus estudantes. Frustrado com o que percebeu como insuficiência nas punições, Richard Aslin renunciou da posição que havia ocupado por 30 anos.
Os acusadores levaram o caso até à Comissão de Igual Oportunidade de Emprego, uma agência federal estabelecida nos anos 60 para lidar com discriminação em ambiente de trabalho. Na queixa de 111 páginas, dizem que Florian é “um predador sexual narcisista e manipulador”. Alegam também que uma das saídas de campo do cientista envolveu “bebida, drogas, música e banho de ofurô”, além de uma “overdose” de um estudante. Na verdade, a esposa de Florian, que obviamente não é uma estudante, comeu um brownie de maconha e passou mal. A pressão dos acusadores envolveu até uma estudante que nunca viu Florian na vida, mas fez uma greve de fome. Até a famosa atriz Alyssa Milano falou a respeito no Twitter, no auge do movimento #MeToo.
Um professor lascivo ou apenas diferente?
Nos primeiros anos da nova posição, o professor publicou dezenas de artigos, ganhou prêmios pela pesquisa. Como é comum no ambiente universitário, o que era brilhantismo para alguns era visto por outros como arrogância. A tendência de Florian a fazer piadas de conteúdo sexual e dar avaliações muito francas e diretas não lhe rendeu muitos favores. Filho de ativistas trabalhistas, ele rejeitava a hierarquia, e via estudantes de pós-graduação e superiores como iguais. “Ele não gosta de aplicar filtros em si mesmo”, disse um estudante à revista Reason, que publicou uma reavaliação do caso este mês com autoria da jornalista Katie Herzog.
A jornalista conta em seu podcast que inicialmente, pelo volume de veículos de imprensa concordando em condenar Florian, tendeu a acreditar nas acusações. Até depois de uma conversa de duas horas com o acusado, não estava convencida de sua inocência. Mas as aparências mudaram assim que ela obteve acesso às investigações e às intrigas de departamento que explicam muito melhor as acusações, junto com o comportamento inicial dele, que acusações mais graves como as de Celeste Kidd. Nenhum dos acusadores quis falar com Katie para a matéria da Reason.
Há muitos elementos nas investigações que apontam que o caso foi que a comunidade universitária não estava preparada para um professor tão excêntrico e com hábitos tão “alemães”. A personalidade e a cultura diferente tiveram um papel importante. Desde a publicação do livro sobre assédio sexual na década de 1980, o que era à época chamado de “politicamente correto” foi tomando cada vez mais a cultura dos campi americanos. O que brasileiros mais estranharão é que as universidades assumiram o papel de investigação de acusações que são no fim das contas criminais e, portanto, assunto de polícia, não de professorado. A instituições acadêmicas também têm regras com efeitos na vida privada, a respeito por exemplo de relacionamentos românticos e sexuais entre professores e alunos já adultos. E já é quase universal que as universidades americanas cobrem de candidatos a professor que façam uma “declaração da diversidade” em que basicamente precisam expressar adesão ideológica ao identitarismo (política de “inclusão”, “diversidade” e “equidade”) se quiserem ser contratados.
Aqui, na América Latina, temos um ponto de vista privilegiado de uma cultura menos tensa que a americana e outras em assuntos sexuais. Mas muitas modas intelectuais são importadas para as nossas instituições, e o denuncismo identitário, que põe especialmente “homens brancos cis héteros” em um banco automático dos réus, é uma delas. Pessoas excêntricas como Florian Jaeger, que não entendem ou rejeitam regras que estão no limiar entre segurança para pessoas em posição mais baixa na hierarquia e intrusão de empregadores na vida privada de empregados, são alvos fáceis. O identitarismo já causou injustiças, e deve causar mais.
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