Os motociclistas formavam um grupo de jaquetas vermelhas e roupas escuras, alguns com o rosto coberto, acelerando suas motos em frente a mil manifestantes em Caracas. Jogaram bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a multidão. Então, segundo testemunhas, puxaram suas pistolas e atiraram.
Uma pessoa caiu. Carlos Moreno, de 17 anos, estava no chão com uma poça de sangue ao redor da cabeça.
“Metade do cérebro dele estava saindo”, contou Carlos Julio Rojas, líder comunitário que testemunhou o tiroteio fatal na capital da Venezuela em 19 de abril.
Metade do cérebro dele estava saindo
Testemunhas dizem que os homens uniformizados que atiraram em Moreno não eram das forças de segurança do governo; na verdade, eram membros de grupos armados que se tornaram os principais assassinos do presidente Nicolás Maduro, que tenta sufocar um crescente movimento de protesto contra seu governo.
Os grupos, chamados de coletivos, ou colectivos em espanhol, começaram como organizações comunitárias pró-governo e há muito tempo fazem parte da paisagem da política de esquerda venezuelana. Civis com formação policial, seus membros são armados pelo governo, dizem especialistas que os estudaram.
Esses grupos controlam um território vasto em toda a Venezuela, financiados em alguns casos por extorsão, venda de alimentos no mercado negro e setores do comércio de drogas, agora que o governo faz vistas grossas em troca de lealdade.
Atualmente, parecem desempenhar um papel chave na repressão à dissidência.
Centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas de Caracas e outras cidades exigindo eleições na Venezuela. Unidos por uma economia em ruínas que gerou a escassez de alimentos básicos e medicamentos, bem como uma fracassada tentativa dos esquerdistas de dissolver o Congresso do país, no mês passado, eles representam a maior ameaça aos governantes do país desde um golpe de estado que derrubou por um curto período o antecessor de Maduro, Hugo Chávez, em 2002.
Maduro respondeu através do envio da Guarda Nacional, armada com canhões de água e balas de borracha para dispersar a multidão. Mas, além das forças de segurança, segundo peritos e testemunhas, há o reforço dos colectivos, adeptos de uma intimidação mais acirrada e muitas vezes mortal.
“Esses são os verdadeiros grupos paramilitares da Venezuela”, disse Roberto Briceño-León, diretor do Observatório Venezuelano da Violência, um grupo sem fins lucrativos que analisa a criminalidade.
A presença dos colectivos não acaba com as manifestações nas ruas.
Conforme o aumento da dívida externa e a queda dos preços do petróleo pelo mundo vão esvaziando os cofres venezuelanos, o governo cada vez mais usa os colectivos como força repressora. De disputas trabalhistas com sindicatos até manifestações estudantis em campus universitários, esses grupos aparecem em qualquer lugar onde o governo vê cidadãos saindo da linha, dizem os venezuelanos.
Neste país, é proibido discordar
Eladio Mata, um líder do sindicato dos hospitais, diz que foi baleado no ano passado, quando as negociações com o Hospital da Universidade de Caracas chegaram a um impasse.
Mata disse ter ido à porta da frente do hospital e visto membros do colectivo bloqueando-a. Foram chamados, segundo ele, pela administração do hospital. Ele conta que membros da equipe tentaram ajudá-lo a passar, mas um integrante do grupo atirou nele pelas costas. Mata foi então levado para dentro para uma cirurgia de emergência.
“Neste país, é proibido discordar”, afirmou.
Oscar Noya, um pesquisador de doenças tropicais infecciosas, disse que seu laboratório foi vandalizado quase 30 vezes por membros de colectivos, que haviam destruído o equipamento e levado cabos elétricos.
Noya acredita que o vandalismo foi ordenado porque ele publica informações sobre epidemias de doenças infecciosas que o governo não relata, particularmente a disseminação da malária.
O pesquisador contou que suas repetidas queixas às autoridades foram em geral recebidas com o silêncio e que os colectivos “chegaram a um nível de impunidade total”.
Especialistas dizem que esses grupos começaram a se formar nos primeiros dias do governo Chávez, que originalmente os concebeu como organizações sociais para espalhar sua visão da revolução socialista que transformaria os bairros pobres da Venezuela. Muitos usavam seus próprios nomes, bandeiras e uniformes. Por fim, o governo lhes forneceu armas e treinamento de segurança, usando-os como uma milícia à parte.
Conforme os grupos iam se tornando mais poderosos, começaram a exercer sua própria influência, independentemente do governo, mais precisamente no controle do crime organizado, como o tráfico de drogas nos barrios de Caracas.
Seu poder era tão grande que alguns até entraram em confronto com a polícia, em 2014, na tentativa derrubar um ministro do interior que havia tentado dar um fim a eles. Mais recentemente, outros entraram em tiroteios com soldados em operações militares para acabar com o crime organizado.
Se amanhã a revolução perder a presidência, esses grupos irão migrar para a guerrilha urbana
Hoje, de acordo com Fermín Mármol, criminologista da Universidade de Santa Maria em Caracas, os grupos controlam 10 por cento das vilas e cidades na Venezuela. E afirmou que a profunda tendência ideológica de esquerda desses grupos significa que eles defenderão Maduro a qualquer custo.
“Se amanhã a revolução perder a presidência, esses grupos irão migrar para a guerrilha urbana”, disse o criminologista.
Os colectivos foram acusados de vários ataques a jornalistas que cobriam suas atividades nas ruas. No entanto, em raras entrevistas no passado, líderes dos grupos negaram a atividade criminal e disseram que basicamente defendiam a causa da esquerda.
Apesar de seus ataques contra os dissidentes, para alguns venezuelanos pobres, os colectivos são uma fonte de ordem na qual passaram a aceitar.
No dia 20 de abril, no bairro de La Vega, área da classe operária de Caracas conturbada por protestos, moradores observaram quando um bando, que identificaram como membros de um colectivo local, parou em uma rotatória durante uma patrulha.
Eles atacam seus vizinhos que estão nas filas de alimentos e são identificados como membros da oposição, atacam os donos de lojas, que são extorquidos, atacam padeiros, tirando-lhes parte de sua produção, que depois vendem no mercado negro. Eles não são coletivos de verdade, nem políticos, são criminosos
Haide Lira, de 58 anos, assistente administrativa que vive no bairro, disse que os confrontos entre manifestantes e os colectivos haviam assustado os moradores. E deixou de ser solidária aos protestos. “Você não destitui um governo assim”, disse ela.
Sobre os grupos, ela falou: “Eles trazem a ordem onde há desordem. É verdade, eles são civis armados, mas o que se pode fazer em um mundo que está de cabeça para baixo?”.
Porém, os ataques contra a população traumatizaram muitos manifestantes em Caracas, como Rojas, que testemunhou a morte de Carlos Moreno, o adolescente.
Segundo ele, as pessoas tentaram em vão salvar Carlos, arrastando seu corpo para uma moto para ser levado para um hospital, onde foi declarado morto.
Alguns tentaram perseguir os atacantes, mas foram impedidos por outros que disseram que seria inútil, segundo testemunhas.
Rojas, que trabalha com políticos da oposição, disse que já está acostumado aos ataques, que são uma característica de seu ativismo.
“Eles atacam seus vizinhos que estão nas filas de alimentos e são identificados como membros da oposição, atacam os donos de lojas, que são extorquidos, atacam padeiros, tirando-lhes parte de sua produção, que depois vendem no mercado negro. Eles não são coletivos de verdade, nem políticos, são criminosos.”
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