Era outubro de 1550 e os habitantes da cidade de Rouen, no noroeste da França, estavam agitados. O rei Henrique II e sua esposa, Catarina de Médicis, chegavam à cidade. Uma grande festa foi elaborada para recepcionar solenemente o soberano.
A chamada “entrada real” tinha caráter teatral e ao mesmo tempo litúrgico. Seria mais um dos tantos festejos costumeiros para bajular a corte entre os séculos 16 e 17. Não fosse por um detalhe: índios Tupinambás em carne e osso foram levados ao Velho Mundo e exibidos ao público exatamente como viviam nas suas aldeias.
A historiadora Ana Cláudia Pitol, autora de uma dissertação de mestrado sobre o tema pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), conta que um dos cenários presentes no evento visava recriar uma América artificial. “De acordo com a descrição apresentada pelos documentos históricos, até as árvores da praça foram ‘fantasiadas’ para se parecerem com as árvores da América”, relata.
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Além da flora, a fauna brasileira também estava representada. “Havia papagaios, macacos e saguis. Alguns dos animais foram trazidos da América para o espetáculo, outros pertenciam às coleções da burguesia local”, afirma Ana Cláudia. Ao todo, eram 50 índios e para fazer volume outros 250 marujos franceses estavam nus e pintados fazendo de conta serem indígenas para a encenação real.
Esse é apenas um episódio que mostra como os índios que habitavam as terras da América eram levados para os países europeus. Durante pouco mais de dois séculos (fim do 15 até o 17), incontáveis navios cruzaram o Oceano Atlântico repletos de índios ou para serem escravizados ou mostrados aos europeus como “seres exóticos”.
Assim, o Novo Mundo tinha os seus habitantes tirados, na maior parte das vezes, à força e levados até os países colonizadores, como França, Inglaterra, Espanha, Portugal e Holanda. Alguns índios, de acordo com relatos históricos, eram convencidos a ir espontaneamente. Não há, porém, uma quantidade precisa de quantos foram traficados para o continente europeu nesse período.
Alguns desses índios, a exemplo do que ocorria na França, eram usados como figuras exóticas e mostrados ao público como seres “diferentes”, conforme explica a Ana Cláudia, que escreveu a dissertação “O exótico cruzou o Atlântico”. Nas demais localidades, a maioria foi escravizada. “Foram colocados para trabalhar como domésticos e em minas. As mulheres eram abusadas”, afirma Ana Cláudia.
Colombo
O tráfico de índios para a Europa começou no momento em que os europeus descobriram o continente americano, em 1492. A comitiva formada por Cristóvão Colombo foi, até onde os vestígios documentais apontam, a pioneira nesses embarques de índios para a Europa.
Na primeira viagem, foram levados três para serem escravos. Na segunda, cerca de 500. “Colombo chegou a ter um projeto escravista”, comenta a pesquisadora.
Nas quatro viagens que Colombo fez da América para a Europa, cerca de 3 mil índios foram traficados. “Muitos dos indígenas que foram levados pelos homens brancos para lá não suportaram a viagem de quase dois meses no navio. Outros morriam ao chegar na Europa por não suportarem o clima e por não terem anticorpos para se proteger de doenças locais”, ressalta a historiadora.
Lei espanhola foi burlada pelos traficantes de índios
Em 1500, a Coroa Espanhola proibiu os embarques de índios americanos. No entanto, as leis promulgadas nos anos posteriores abriam possibilidades para que os embarques continuassem. “Somente em 1542, leis mais restritivas ao embarque e também à escravidão de ameríndios em terras americanas seriam promulgadas”, conta a historiadora Ana Cláudia Pitol.
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Segundo ela, o tráfico de índios para o continente europeu só não teve um vulto maior devido às próprias legislações. “No entanto, como a corrupção sempre existiu em qualquer lugar do mundo, muitos conseguiam burlar essas leis. Alguns subornavam os guardas da Coroa”, comenta.
Além disso, as leis eram vigentes na Espanha, mas não nos demais países. Dessa forma, muitos traficantes desembarcavam em outras nações. “De Portugal, por exemplo, índios do Brasil eram levados para a Espanha”, afirma.
Para europeus, índios podiam ser “salvos”
Se a sociedade pudesse ser comparada a uma pirâmide o índio estaria no meio. No cume, estariam os homens brancos e no andar mais baixo, os negros. Essa era a realidade social entre os séculos 15 e 17. A historiadora Ana Pitol explica que a partir dessa concepção, os europeus pensavam que com a ajuda de um tutor (branco) os índios poderiam ser “salvos” por meio da religião.
“Ou seja, eles poderiam aprender uma religião. É mais ou menos como dizer que os índios têm alma e a possibilidade de chegar a Deus. Era isso que eles pensavam. Por isso, os doutrinavam”, relata. Os índios eram selvagens primitivos e, segundo ela, eram como crianças que precisavam de ajuda de um tutor.
Os negros, por sua vez, só poderiam ser salvos no sentido de que catequizados poderiam alcançar o céu. “Mas continuavam inferiores como seres humanos”, afirma.