Histórias de famílias reais tendem a ser fascinantes. Não à toa seus romances, intrigas e controvérsias continuam a provocar burburinhos entre o público mesmo quando o monarca em questão não tem grandes poderes (como ocorre nas monarquias parlamentares) ou já foi deposto há décadas. Das dezenas de reis e rainhas que governaram a Europa até o início do século XX - quando somente França, Suíça, Portugal e San Marino adotavam o republicanismo -, poucas despertam tanto interesse quanto a última família imperial a governar a Rússia, deposta e assassinada pela sangrenta revolução que transformaria o país para sempre.
Se, por uma lado, a história da família Romanov foi deliberadamente soterrada pelo comunismo - antes da queda da União Soviética, turistas sequer eram informados sobre a localização da residência do czar Nicolau II e sua família, e qualquer um que perguntasse por cartas e documentos históricos passaria por suspeito -, por outro, a tragédia que marcou o fim da dinastia somada ao peso da Cortina de Ferro acabou por fomentar um universo de lendas que extrapolam as fronteiras da Rússia e povoam o imaginário cultural do Ocidente. No cinema, filmes de sucesso como "Anastacia, a Princesa Esquecida" (1956) e "Nicolau e Alexandra" (1971) marcaram gerações, bem como as polêmicas resultantes do paradeiro dos restos mortais da família, encontrados apenas em 1979. Até então, falsos herdeiros dos Romanov apareceram até em Poços de Caldas (MG) e Cuiabá (MT).
Foi este arcabouço de mistérios, curiosidades e perguntas não respondidas (ou pouco conhecidas) que levou o autor Paulo Rezzutti, vencedor do Prêmio Jabuti por seu "D. Pedro - A história não contada", a escrever o recém-publicado “Os últimos czares: uma breve história não contada dos Romanovs” (Ed. Leya). “Eu devia ter 14, 15 anos quando tive o primeiro contato com a história da família Romanov, através do cinema, e o mundo era outro naquela época. Ainda havia o bloco soviético e a Cortina de Ferro. Pesquisar sobre o que havia acontecido na Rússia 60 anos antes era um negócio inimaginável. Além disso, a história tem um quê de conto de fadas trágico: uma família real linda, que podia tudo e acaba morta - não apenas o monarca, mas os herdeiros, as filhas jovens, todos. Essa tragédia me fisgou e acho que está também por trás do interesse geral”, explica Rezzutti, que descreve um universo de “luxo e de prazeres, de amores e misticismo, de belezas e doçuras”. Confira, abaixo, cinco curiosidades sobre a família imperial:
Casamento por amor
Em tempos nos quais casamentos por amor ainda não eram regra, Nicolau II e Alexandra - nascida Alix de Hesse - eram um casal apaixonado. Conheceram-se muito jovens, no casamento da irmã de Alexandra, Ella, com o tio de Nicolau II, Sérgio, e logo se apaixonaram. A maior oposição ao casamento, contudo, partiu da própria Alix, que, criada no protestantismo, resistia à ideia de abraçar o catolicismo ortodoxo para governar a Rússia. Enquanto isso, Nicolau recusava qualquer noiva que não fosse a princesa de Hesse.
Transpostos os desafios, Nicolau II e Alexandra Feodorovna - como passaria a ser chamada - casaram-se em 26 de novembro de 1894 e, embora possuíssem seus próprios apartamentos no Palácio de Alexandre, o casal costumava dormir junto - uma raridade em meio às famílias reais da época. Conta-se que ela era desorganizada e ele rigoroso, mas preferia passar seu tempo livre em meio à bagunça da esposa, a quem costumava chamar com um assobio que imitava um canto de pássaro. "Mesmo depois de muitos anos de casados, ao escutar isso, ela corava como uma adolescente e levantava-se correndo para ir ao encontro dele", escreve o autor.
A doença secreta do príncipe
Pouca gente sabe, mas a czarina Alexandra Feodorovna era descendente direta de uma família real cuja história é bastante popular no Ocidente: Alix era a neta favorita da rainha Vitória, da Inglaterra. Esta linhagem, contudo, haveria de trazer problemas: como muitos antepassados da família materna ligados à coroa inglesa, o czarevich Alexei, o esperado herdeiro dos Romanov, nascido em 1904, era portador de hemofilia, uma grave doença congênita que o deixaria, muitas vezes, à beira da morte, e acabaria por influenciar os rumos do país.
Enquanto tentavam esconder a deficiência do filho até mesmo dos funcionários do palácio, Nicolau e Alexandra se tornariam cada vez mais apartados dos seus súditos, o que ajudava a ampliar o sentimento de insatisfação popular que crescia contra o governo, em meio às bruscas transformações que marcaram o século XX, trazendo fome e miséria à Rússia. Some-se a isto o fato de a czarina - vítima de crises de exaustão física e emocional por conta da saúde do filho - ter se apegado a polêmicas figuras místicas que acabariam por fomentar a antipatia do público e, por consequência, os ímpetos revolucionários. O mais conhecido destes místicos seria Rasputin.
Entre milagres e fake-news
Apresentado ao czar no dia 1.º de novembro de 1905, a história de Rasputin com a família Romanov teve tantas implicações para o futuro do país que merece um capítulo à parte. Depois de, aos 28 anos, fazer uma peregrinação ao mosteiro de São Nicolau de Verkhoturye - sim, o mesmo do Papai Noel - em 1897, Rasputin tornou-se um starets - na tradição russa, um homem “tocado pelo Espírito Santo” -, de modo que quando chegou à casa dos Romanov já angariava alguma fama de milagreiro. Depois de supostamente curar o czarevich Alexei, então com dois anos, de uma de suas crises de hemofilia, o místico se tornou parte da corte de Nicolau e Alexandra, exercendo especial influência sobre a czarina.
Se, por um lado, a relação de Rasputin com a imperatriz abriria caminho para muitos “milagres” - em 1912, o monge teria conseguido “curar” uma crise de Alexei através de um telegrama, sendo que o mais provável é que seu mérito tenha sido o de acalmar a mãe -, por outro, a dependência de Alexandra o levaria também a se infiltrar na política e adquirir privilégios. Passou a vestir-se com luxo, gastava muito dinheiro em bares e restaurantes, se envolvia com mulheres casadas e prostitutas. A antipatia geral do público com Rasputin e com a própria Alexandra (no caso dela, por conta da ascendência inglesa) somada à crescente influência do místico levaram à circulação de intensos rumores acerca de um suposto caso entre os dois, além de intrigas familiares que descambaram no assassinato de Rasputin por parte de membros da família Romanov.
"Já disseram que, se não houvesse hemofilia, não haveria Rasputin, e sem ele não haveria revolução. É uma ideia simplista, por um lado, mas que por outro mostra como o drama íntimo da última família imperial russa pode ter ajudado a difamá-la e a alimentar a propaganda contrária ao regime", escreve o autor.
Mártires ortodoxos
Em 1918, a família imperial russa foi brutalmente assassinada pelos revolucionários bolcheviques. Seus corpos foram encontrados em 1979 pelos pesquisadores Alexander Avdonin e Geli Ryabov, mas a descoberta só veio a público em 1989, ano da queda do Muro de Berlim. Oito anos antes, contudo, a família Romanov alcançou um reconhecimento inusitado: Nicolau, Alexandra e seus cinco filhos foram canonizados como neomártires pela Igreja Ortodoxa Russa no exterior, um ramo autônomo da Igreja Ortodoxa que entendeu que Nicolau II fora sacrificado por sua fé, bem como todos os outros Romanov executados.
A Igreja Ortodoxa Russa, por sua vez, levou mais tempo para canonizar o czar e sua família como “portadores de paixão”: pessoas que encararam a morte com resignação. “A evidência disso seria o sinal da cruz feito por Alexandra e Olga antes de morrerem” registra o livro. Hoje, no local onde os Romanov foram assassinados, foi erguida uma igreja conhecida como Igreja do Sangue, de onde uma procissão parte todo dia 17 de julho rumo ao local onde corpos foram depositados logo após a morte.
Viúva-negra da vida real?
Embora os bolcheviques tenham pretendido exterminar toda a dinastia Romanov, dos 53 familiares que viviam na Rússia na época da revolução, 35 conseguiram escapar - sendo a maioria deles mulheres. Uma delas foi a mãe do czar Nicolau II, a imperatriz viúva Maria Feodorovna que precisou ser resgatada pelo sobrinho, o rei britânico George V, avô da rainha Elizabeth.
O livro chama a atenção, contudo, para a história praticamente desconhecida de uma Romanov que escapou ao massacre e cujo nome pode soar algo familiar para as novas gerações. Nascida em Petrogrado em 5 fevereiro de 1917, a princesa Natália Androsova Iskander-Romanov foi levada para o Uzbequistão quando a revolução começou. Quando seu pai foi dado como morto em combate pelo Exército Branco, que lutava contra os bolcheviques, sua mãe casou-se de novo em Moscou e mudou o sobrenome das crianças para Androsov.
De cabelos claros e olhos azuis, Natália Romanov sempre conheceu suas origens, mas precisou escondê-las para sobreviver. Tornou-se motociclista profissional e chegou a se apresentar em números de alto risco, até ser descoberta pela polícia soviética e ser obrigada a se tornar uma agente secreta do governo de Stálin. Serviu na Segunda Guerra Mundial neutralizando e recolhendo bombas alemãs e como mensageira, até retomar sua carreira como motociclista em 1942. Foi descrita como uma mulher “excepcionalmente resistente, forte e carismática” pelo escritor Constantine Pleshakov, e encerrou sua carreira em 1964, ano em que Stan Lee, então editor da Marvel Comics, apresentou ao mundo Natalia Alianova Romanova: a Viúva Negra.
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