É o 20º aniversário do melhor filme do século 21. A.I. Inteligência Artificial, que estreou no dia 29 de junho de 2001. O título sugere algo diferente do que o filme traz. Ele aponta para a alma, o espírito – tema improvável para um filme que nasceu da colaboração entre Steven Spielberg e Stanley Kubrick, geralmente considerado o mais cerebral de todos os diretores. Os homens expressam seus sentimentos e medos. São as piadas internas entre os dois tornadas públicas.
Nenhum outro filme deste século se aprofundou tanto na experiência universal – as necessidades secretas da infância que são esquecidas na idade adulta. Apesar de baseado no conto “Super Brinquedos Duram o Verão Todo”, de Brian Aldiss, ele também recria o clássico “Pinóquio”, de Carlo Collodi.
A animação de 1940, criada por Walt Disney, foi um marco para Spielberg e para a atenção especial que ele dá à inocência infantil. Ele atualiza a história de uma marionete que anseia virar menino e a transforma na história de um robô dotado de sensibilidade, David (perfeitamente interpretado por Haley Joel Osment, de “O Sexto Sentido”), que deseja ser humano. O filme combina a fantasia futurista sombria com a amplitude emocional dos contos de fada clássicos. O conceito da dupla Spielberg-Kubrick confronta o niilismo pop e soluciona, e é por isso que críticos estúpidos detonaram um filme que exige reflexão hoje em dia.
Eu e Ian Simmons, no podcast Kicking the Seat, discutimos recentemente os aspectos proféticos de “A. I.” — sobretudo a divisão de classes do filme, de acordo com o qual os cidadãos ricos do mundo pós-diluviano gozam do luxo da tecnologia humanoide (o robô David é usado como um substituto para o filho doente de um casal rico, Monica e Henry), enquanto a classe trabalhadora rejeita o domínio inumano dos ricos. (Simmons fez uma referência ao Vale do Silício que ajuda a revelar o caráter sociologicamente profético de “A.I.”).
A sequência de Spielberg para uma feira mostra os trabalhadores acenando bandeiras norte-americanos ao som de heavy-metal durante uma corrida de demolição entre brinquedos metálicos cibertrônicos – máquinas da decadente classe ociosa. A festa se assemelha ao comícios “Save America” que a imprensa de hoje ignora ou ridiculariza.
Quando “A.I.” estreou, apenas três meses depois do 11 de Setembro, ninguém imaginava que os Estados Unidos se tornariam o país onde as liberdades dos cidadãos são tolhidas pelos senhores feudais do Vale do Silício, por meio da inteligência artificial e da realidade virtual que substituí a humanidade. Mas essa cena extraordinária antevê as condições do totalitarismo emocional – o ódio visceral, a falta de amor – que desemboca na perseguição política.
Isso se dá de duas formas: pânico entre humanos e também entre os seres mecânicos como David e o robô adulto fugitivo Gigolô Joe (Jude Law), que fogem dos cercos, das caças às bruxas e da captura. Um robô dublado pelo comediante Chris Rock ri para a plateia. Simbolizando os linchamentos históricos, essa imagem evoca a retórica política corrompida de hoje, na qual as elites usam a vitimização racial para bifurcar ainda mais a cultura de classes.
Em 2001, quem diria que essa cena incômoda e perturbadora se inverteria – ou que Spielberg e Kubrick sabiam que a retórica da segregação e da exploração racial renasceria? A ficção especulativa de “A. I.” nos mostra o terror que se tornou realidade.
Quando David foge da Flesh Fair (Feira da Carne), as cenas de sua caminhada pela natureza se assemelham ao esplendor e ameaça de histórias de fada como “Bambi”, “João e Maria” ou “Chapeuzinho Vermelho”, seguidas pelas cenas de sexualismo extremo na Rouge City — da inocência da infância à corrupção infantil — que David precisa percorrer em busca de transformação. David é o contrário de Hal 9000, o computador assassino de “2001: Uma Odisseia no Espaço” e que era produtor de um egoísmo autodestruidor. David se aproxima da religiosidade por meio da ideação, perguntando ao guru Dr. Know pelo paradeiro da Fada Azul. A aventura de David, uma busca pelo amor inefável, resvala no sublime.
Depois do apocalipse, o Pinóquio de “A. I.” usa a razão automotivadora na busca pelo amor e por um sentido na criação. Spielberg redime e transcende a visão niilista de Kubrick quanto à existência humana e ao vazio espiritual. O sarcasmo intelectualizado de Kubrick tão admirado por adolescentes é também o desespero cínico que leva David a tentar o suicídio. Retratado como uma lágrima simulada no rosto caricatural de Gigolô Joe, o salto de David no abismo é a melhor cena do cinema deste século. A cena mais próxima disso é igualmente reveladora: o evangelismo profundo e claro dos que buscam a salvação em 'Batman vs Superman'.
“A.I.” é superior aos demais filmes de Spielberg por explorar a fantasia a fim de revelar as reentrâncias da memória. A fé de David se confronta com nosso presente alienado. A consciência que Disney representou como o Grilo Falante de Pinóquio é mostrada aqui com o ursinho Teddy, que confere à conclusão do filme um quê de gracioso. Ele continua sendo um milagre, sobretudo depois de uma decadência de 20 anos da cultura pop.
Desde o lançamento de “A. I.”, poucos filmes desafiaram a moda de insistir que as questões morais não têm vez. A maioria dos filmes do nosso tempo substituem a questão da existência e da importância do amor e da fé por descrença, pessimismo e distrações políticas formulaicas. “A.I.” brilha na Idade das Trevas de Hollywood.
Armond White é crítico cultural e escreve sobre filmes para a National Review.