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Na nossa época, o “determinismo social” é amplamente defendido nos círculos intelectuais, onde se acredita que o ser humano é condicionando por forças externas, negando-lhe, direta ou indiretamente, a possibilidade de livre arbítrio e a capacidade de superar as circunstâncias que o oprimem. Essa perspectiva não só permeia as esferas acadêmicas, mas também se insinua no senso comum, que, embora não se expresse por teorias elaboradas e conscientes, emite julgamentos simplistas, como afirmar que “Os Racionais se envolveram com drogas devido à desestrutura familiar”, “Luísa Sonza foi preconceituosa por ser branca, refletindo o racismo estrutural”, “Lula se envolveu em esquemas de corrupção porque, dadas as circunstâncias históricas, a corrupção é inerente a todo político brasileiro”. Enfim, no Brasil, existe sempre uma justificativa sociológica para ser louco, cafajeste ou bandido.
Certamente, o tumulto na infância pode semear desordens psicológicas e escapismos existenciais; no entanto, à luz das palavras de Ortega y Gasset, aqueles que exploram a força da personalidade têm o poder de reabsorver suas circunstâncias. Eu, pessoalmente, chamo isso de ser uma ilha de sanidade em meio a tsunamis de loucura. Só lamento que a força interior esteja se tornando cada vez mais rara, uma vez que os vulneráveis, ao invés de fortalecerem-se, estão sendo ensinados a nivelar a comunidade por baixo.
A ideia de preconceito linguístico ilustra essa tendência. Os pedagogos enxergam um problema: a maioria da população carece do domínio da norma culta. A solução que deveriam encontrar é ensiná-la amplamente, mas os brasileiros têm escolhido o caminho mais curto: a negação da existência de uma forma correta de escrever. Em conjunto com políticas de cotas abrangentes, esse projeto pedagógico resulta em universitários com deficiências ortográficas e limitações expressivas sequer imaginadas nos tempos de Machado. Em vez de reduzir a ignorância, eles promovem a democratização da burrice, onde diplomados se expressam como semianalfabetos. Isso me leva a refletir: qual incentivo há para os oprimidos frequentarem as escolas em vez de recorrer às drogas, quando ambas afetam terrivelmente o cérebro, mas uma é entediante e a outra plena de excitação? Não é impossível recorrer aos livros, mas em tais condições, é preciso de uma força interior homérica.
No caso de famílias desestruturadas, penso que deveríamos nos inspirar na história de José, filho de Jacó. Vendido como escravo por seus próprios irmãos, ele poderia ter nutrido um forte ressentimento pelo resto da vida. No entanto, escolheu trabalhar arduamente para conquistar a confiança do faraó, destacando-se na interpretação de sonhos. Com isso não estou sugerindo uma meritocracia infalível, onde prosperamos sempre que nos esforçamos (insisto em dizer que há pessoas que, mesmo dominando as melhores técnicas de marketing digital, jamais alcançarão a riqueza de seus mentores, por exemplo). Minha ideia é que, até diante da escassez de riquezas, podemos resignar-nos com dignidade. João Batista, Jesus Cristo e Maria do Egito são exemplos notáveis, pois, embora fossem pobres, encontraram felicidade em outro tipo de riqueza, a riqueza espiritual, que poucos milionários poderiam conhecer.
Então, pergunto, até quando vamos culpar as circunstâncias pelos nossos vícios ou preconceitos? Será que alguém precisa de esforços colossais para reconhecer que todos têm a mesma dignidade ontológica? Lembro-me de quando Luísa Sonza agiu de forma claramente racista em Fernando de Noronha... Ela tratou uma turista como servente somente pelo fato de ser negra e atribuiu a culpa às circunstâncias sociais do Brasil:
— Eu reconheço que a maneira como me dirigi à Sra. Isabel traduziu um ato de reprodução do racismo estrutural — ela disse —, o que de maneira nenhuma foi minha intenção.
Da mesma forma, o petista Tarso Genro argumentou que Lula operou em um sistema político amoral, mas não foi ele próprio errado:
— O sistema político, que dá governabilidade no Brasil, é amoral. — Falou — Para qualquer presidente. Se um presidente quer governar, tem que governar dentro desse padrão. Isso qualquer presidente fez. A diferença da presidência de Lula com relação aos demais é que ele utilizou esse mesmo sistema político, vigente até hoje, para implementar determinadas políticas sociais que mudaram os padrões de desigualdade no Brasil. Isso é muito diferente de cometer crime, e é colocar dentro dessa amoralidade um objetivo social que é nobre.
Ficou claro agora o quão absurda é a concepção de que o ser humano é completamente moldado pelo ambiente? Ela obscurece a busca pelas virtudes em um mundo caótico, levando a erros individuais bárbaros enquanto se atribui a culpa à sociedade.
Filosoficamente, a defesa de que o homem é produto do meio não tem pé nem cabeça, uma vez que a noção de “meio” é um artifício retórico, não um conceito delimitado. O que exatamente constitui o seu “meio”? Seria o ambiente familiar, os amigos de infância, a convivência no trabalho, a cultura regional ou a nacionalidade da pessoa? E se não houver nenhuma unidade de influências, a começar pela diversidade de crenças entre a família e os amigos, a tensão entre as ideologias universitárias e os dogmas da igreja? Alguns podem argumentar que o meio é mais preciso quando se refere ao “ambiente histórico”, mas desde quando esta história está sendo contada? Os eventos recentes divergem significativamente de períodos mais longos. No último ano, por exemplo, a tensão entre Israel e Hamas não havia começado, e, antes do governo Dilma, muitos conservadores ainda eram petistas. Por que os acontecimentos históricos transformam o interior de uns e não de outros? São perguntas que mostram como a palavra “meio” carece de uma referência precisa na realidade, pois um mesmo ambiente é atravessado por múltiplas influências, frequentemente contraditórias, nem sempre trazendo impacto à personalidade.
Biograficamente, também se destacam indivíduos que desafiaram as expectativas de suas famílias, comunidades e tendências seculares. Santo Agostinho, filho de Santa Mônica, embora educado para ser cristão desde jovem, se desviou pelos caminhos do mundo. Somente na maturidade voltou a abraçar a visão de mundo cristã. Em contrapartida, Nietzsche, oriundo de uma linhagem luterana de pastores, escolheu trilhar um caminho oposto. Estes exemplos ilustram que, para além da imprecisão conceitual, o determinismo social se choca com as trajetórias de indivíduos que transcenderam influências familiares, contextos escolares, vizinhanças, fronteiras estaduais e nacionais, desafiando as pretensas tendências seculares que deveriam moldar suas origens. De modo que podemos dizer que o homem sempre é influenciado, mas nunca é determinado pelo meio.